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MÁRCIO-ANDRÉ


Lisboa nunca existiu para além desse instante


Lisboa nasceu de um terremoto. O mesmo que dizer: nomearam os escombros diante do rio: deram nome ao nome cidade: o nome de outro lugar que coube no mesmo lugar. Essa cidade inventada por um poeta e esquecida por outro. E no meio dela, esse meiopoeta desejando profundamente o sonho mínimo que sonham as tainhas no rio em frente. E que pára para ouvir o canto de pedra desses peixes de pedra e almeja para cimento do próprio corpo o limo das barbatanas [para conhecer a pedra, sê pedra]. Minor queria a palavra perfeita e Dominic Matei refez-se jovem para continuar buscando a origem das línguas, e, no entanto, este rio é uma sentença impronunciável e cabe inteiro na janela. Sem tradução. A Paisagem na janela é a mesma que está lá fora, com seus cargueiros à óleo diesel [todo lugar é cópia de si mesmo – os turistas só conhecem a cópia]. Nem o sucesso nem a razão nem a ruína nem o flagelo das saias das raparigas de pernas grossas subindo as ladeiras da bica e rindo com suas bocas pequenas e bêbadas e mandando sorrisos e beijos aos meiopoetas que passam, nada disso é desculpa para levar essa cidade a sério e acreditar que estamos ali mais do que realmente estamos. Ela só existe enquanto é caminhada. Ela é uma circum-navegação em torno da medula da cabeça e da mão. A cidade é a parte mais encantadora das pessoas. E, assim como esse rio corre sem a porra da bênção dos santos e detém na língua laminada do seu muco-pedra polida o sacro-saber de ser rio, não é preciso querê-lo para sempre. É preciso querê-lo agora, enquanto rio. Como o querem as roupas nos varais quando o chamam balançadas pelo vento. É nesse meiopoeta, que recusa a ser feliz nesta cidade e envelhece sem jamais ter sido jovem, que Lisboa se refaz a cada pisada cambaleante. Da mesma forma que vamos seguindo assim, todos meiopoetas e meiobêbados e meioapaixonados e sem saber afinal para que a vida foi feita e para que se apaixonar ou ser poeta (inteiro ou pela metade). A infelicidade é um vício, mas todo o resto é diversão.

Fonte: http://intradoxos.blogspot.com/2010/09/lisboa-nunca-existiu-para-alem-desse.html
POEMAS

DE MÁRCIO-ANDRÉ





OS PLANETAS



3 batimentos
2 céus do lado esquerdo – malcolados



um campo de parabólicas
para azeite de antenas
e o mar com sedimento de planetas



[o mar fez-se a si mesmo de seu celofane verde
tirou das tripas o ocidente
traçou na pele um autómato de estrelas
– iluminuras no dorso de um dromedário]



no princípio foi o giro
e sua sinfonia de esferas



[só é verdade a parte que se desconhece]



a partitura do architeto
sua planta fotogramétrica







A SOMBRA



teu olho é vidro de morder



e o dorso improvável soprado no gás
queimado a sais de prata
nascido do primeiro sonho
não termina e não começa codificado nos objectos



ainda não existia encaixe entre as coisas
nem as formas nem as cores
                  siemens
                 designers for life



tirando tua sombra sobra o mundo inteiro









AS LIBAÇÕES



e depois de orar e polvilhar farinha
degolam e destroncam bois
esfolam touros
coxas cortam pernis apartam
envolvendo em gordura de dupla camada
e talhos crus lançados sobre



velhos queimam a carne na brasa
derramam por cima o vinho agridoce
com garfos moços manejando bifes



pernis tostados
saborear filetes degustar entranhas



o resto retalham em tiras e assam no espeto
peritos



ao fim do trabalho o banchete:
cada um a seu gosto: ancas e nacos
homens se nutrem em farta festa
vertem plenas crateras de vinho
delibam lambendo boca
graxa de tripa nos dedos



e assim pelo dia com cantos e danças
dânaos aplacam Apolo – péã para o guardião



que alegra-se no coração ao ouvi-los







Poemas retirados de Intradoxos, livro publicado por Márcio-André (Rio de Janeiro, Brasil, 1978) em 2007. A sua poesia foi considerada por Boaventura de Sousa Santos (para além de sociólogo, um poeta que Portugal deveria ler com outros olhos mais esclarecidos) como “uma das mais notáveis da sua geração”: “[…] é uma luta permanente com a língua. O seu experimentalismo não é abstracto (ou seja, concretista), é antes a sua maneira de interpelar uma tradição asfixiante e ao mesmo tempo vazia.
AMADEU BAPTISTA




DOZE CANTOS DO MUNDO

(alguns excertos)







WILLIAM BLAKE: NIGHT THOUGHTS (1797)



Não há síntese,



mas só mundos paralelos
onde a graça e a desgraça
se encontram
para delimitar o inferno
e o acrescentarem



com a essência e o erro,
a tontura e o desequilíbrio.
[…]







GOYA: A FAMÍLIA DE D. CARLOS IV (1801)



[…]
Preciso de água forte para dessedentar
o rumo a que o desespero obriga,
pincéis de cerdas duras,
espátulas cortantes,
paletas invisíveis
onde as cores, fortíssimas, latejem.



Preciso de fulgores
e circunstâncias
onde uma ardência nos olhos possa ser
um sinal de redenção,
[…]







GUSTAVE COURBET: A ORIGEM DO MUNDO (1866)



[…]
Eu crio:



estrume,
ou esterco,



crio,



para que o meu testemunho,
sob o efémero,
possa aguilhoar as almas
e consumar
a união entre o diverso e o transitório,
e não haja mais escândalo
que o escândalo
de ser a soberba a nossa ignorância



e a nossa ignorância a desventura.
[…]







FRANCIS BACON: STUDY FOR CROUCHING NUDE (1952)



[…]
No osso inciso,
na grande obra incompleta,
sou uma válvula de vácuo
e um transístor,
a desfragmentação
e o cromatismo
que resiste à vileza
e vê no crime
o imparável modo de estar vivo,
a aprofundar a refrega dos subúrbios,
como arte,
dissipação,
incandescência.
[…]



[…]
[…] os cães estão em todo o lado,
e devoram as casas,
e sobem aos telhados para devorar
os livros,
e, nas jaulas,
amontoam cadáveres,
instantes peregrinos
com cabeça de rádio
e desorbitados olhos
pelo terror do urânio,
as múltiplas engrenagens.
[…]









MARK ROTHKO: NUMBER 207 – RED OVER DARK BLUE ON DARK GRAY (1961)



[…]



Coube-nos viver num tempo de assassinos,
mas é a claridade que almejamos,



não a que veio ao quadro convocar-nos,
mas a que, pelo poder da pintura,
se instala em nós,
a modular a noite
e a apaziguar-nos.



É essa claridade que procuro,
– e o silêncio.



O silêncio das cores e o seu apelo
irrevogável,
de que nada há a temer,
mesmo que atemorize.



A vida é isso mesmo:



o medo à nossa frente,
imóvel como a esfinge,



e nós sempre a enfrentá-lo,



transparentes,
aflitos,
condenados,



mas prontos para ver



as cores do infinito.





Doze Cantos do Mundo está entre os melhores livros de Amadeu Baptista. Foi galardoado com o Prémio Oliva Guerra, na edição de 2008. A colectânea foi publicada em Setembro de 2009 pela Câmara Municipal de Sintra (organizadora do concurso), numa tiragem infelizmente restrita.
Casé Lontra Marques


Avesso ao monumento, isto que ainda sinto ser esforço dedica seu artesanato à confecção de um instante que, apesar de precário, recusa cair nas engrenagens do espetáculo.

(in A densidade do céu sobre a demolição, 2009)


*


Compartilhamos, como poucos, ligações de rara reprodução:
nossos laços varam veias dos circuitos que
sustentam o combate
à comunicação. Parecemos seres de palavra
fraca, sintaxe
faminta; ruminando rumores,
no entanto, inauguramos
pactos de fala
que consagramos
à inutilidade. Movimentamos - quase digo -
signos sem
função. Não saudamos
nenhuma autoridade,
contudo
celebramos qualquer insuficiência.

(id.)


*


confrontar-se com o real faz trepidar o mundo duplicado que se enuncia como superação da realidade? não perguntar sobre a sua incidência permite que se suspenda o confronto com o real? seria a suspensão um circuito de atrocidades? a ficção construída como recusa constitui tanto um afastamento quanto uma proteção contra a dúvida?

(in Saber o sol do esquecimento, 2010)


*


CONTRACANTO

Não esperamos em vão porque não construímos
o que esperar (porque não
arriscamos
uma mediocridade maior): acreditamos

numa dor sem sofrimento: podemos
confessar
nossas insônias, às vezes com

entusiasmada autoridade, mas calamos
sobre o nosso sono;
calamos
sobre as vozes arrastadas pelos

cômodos que exigimos
cada
vez mais calmos, cada vez

mais nítidos, penso que habito
este corpo; meus músculos, no entanto,
continuam
despovoados: movimento
algum
lábio; digo que

habito este corpo: meus braços,
no
entanto, continuam

abandonados: preciso
falecer para falar: sem morrer

as mortes que me amordaçam,
não
conseguirei tocar
a
palavra com
que
aprenderei a me despreparar

(id.)


Casé Lontra Marques nasceu no Brasil em 13 de novembro de 1985. Vive no estado do Espírito Santo.



QUATRO POEMAS
DE LUIS ARTURO GUICHARD






Contrários que se tocam

Estou do lado da névoa.
Primeiro, porque cai.
Sempre é menos pretencioso do que elevar-se.
Depois, porque faz truques de magia, como nas festas das crianças:
põe o lenço, oculta as coisas por momentos
e logo as deixa como estavam.
Faz com que os campos mais comuns
se convertam em bosques artúricos,
permite que o dedo escreva na vidraça.
É simples e não serve para nada.
Chega e parte por si mesma.

Estou do lado da névoa,
ainda que ganhem sempre os adoradores do fumo.

(in Nadie puede tocar la realidad, 2008)





Já não há caminhos

Só existiram caminhos
enquanto a terra foi plana.
Avançavam rectos, decididos,
senhores da realidade da linha,
sem se cruzarem antes de chegarem ao abismo
e caírem, ainda mais longos, em busca de outra terra.
Só nesse tempo existiram os viajantes,
os que tinham os olhos habituados
a um horizonte imóvel,
os que sabiam onde dormir apenas nessa noite,
os que não conheciam a debilidade do círculo
nem o consolo de voltarem ao ponto de partida
se iam caminhando perdidos.
Agora todos os caminhos têm indicações
e já não podemos perder-nos
a não ser dentro de nós mesmos.

(in Nadie puede tocar la realidad, 2008)




Os sinos do lugar onde nascemos
Estão sempre a tocar. Não os ouvimos
Mas nunca nos deixam. Medem
As badaladas que nos sobram com a precisão
Que só o pêndulo tem. Soam
Naquele lugar de casas brancas
Com longos passeios sem saída
Onde a mesma criança continua
A correr sem encontrar a saída
Com o mesmo olhar do velho
Que ensina ao menino um ponto para além
Do poente.
                A despedida soa
Nos ouvidos como um pêndulo. Comecemos
A desempenhar o ofício de crer e de esperar.
Entre estas doze badaladas devem estar
Os sons verdadeiros.

(in Los Sonidos Verdaderos, 2000)



Serei matéria

… la bibliothèque était le point de réunion d’une secte pythagorienne…
JACQUES ROUBAUD – La bibliothèque de Warburg

A biblioteca tem quatro pisos:
Palavra, Imagem, Acção e Fundamento.
Ordenados os livros do banqueiro
como um exército disposto em círculo
o seu general é a oliveira plantada no pátio.
Os livros sabem que os persas nunca ganham.
Os livros sabem como se constrói a barca de Ulisses.
Os livros sabem qual é o caminho para cima e para baixo.
Por isso, os livros têm um escudo.
Por isso, os livros têm piedade dos seus donos mortos.
De súbito, recordo Simónides:
Sou um morto, e um morto é merda, e a merda é terra
e se sou terra, então não sou um morto: sou uma divindade.
Todos os donos estão mortos.
São vaidade os seus nomes nas capas.
Um dia li o que um poeta dissera aos seus amigos:
Serei esse copo de água que estou bebendo.
Serei matéria.”
Não me comove a matéria, mesmo sabendo
que através dela pode haver uma saída,
nem a água, o que mais luz sobre a terra,
mas este “serei”, escrito por Quevedo
há quinhentos anos
e que não tem peso nem medida.

Todos temos um galo para Asclépio
já curados da vida.
E o livreiro a meu lado é todo Metamorfosis.

Antes de entrar nesta biblioteca
eu não sabia que era pagão.

(in Nadie puede tocar la realidad, 2008)



LUIS ARTURO GUICHARD (Tuxtla Gutiérrez, Chiapas, México, 1973) é professor na Universidade de Salamanca, onde lecciona Filologia Clássica. É autor dos livros de poesia Los Sonidos Verdaderos (México, 2000) e Nadie puede tocar la realidad (Villanueva de la Serena, 2008). Para além de várias publicações científicas da sua especialidade, é ainda autor de Hacia el equilibrio. Lecturas de poesía española reciente (México, 2006). [Tradução de RV]
POEMAS DE RENATO SUTTANA




TALVEZ



O ouro de amanhã é talvez,
a certeza dos portos é quem sabe.
A verdade de amanhã,
engastada no fundo das minas –
é uma hipótese a que nos confiamos,
mas que não se confirma no vento.
(Que motivo teria para tudo se confirmar?)
De hoje até amanhã tudo é hipótese –
e o vento, que não se esclarece num mapa.





SÃO SEBASTIÃO

(De uma gravura de Egon Schiele)



As flechas que o atravessam
(dardos de sol que o contestam) –
querem passar além dele
(eis a intenção que as impele).







NO MAIS FUNDO



No mais propício e no mais fundo
descobre-se que ter estado escavando
adulterou o sentido da procura:
e que o ouro que nos pôs nas mãos
(quanto irrisório triunfo!)
nos tornou mais pobres a cada vitória
conquistada.



Poemas publicados em Fim do Verão, livro editado pela Virtual Books (Pará de Minas, Minas Gerais, Brasil). O seu autor, Renato Suttana, nasceu em Barroso (1966), sendo professor na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Grande Dourados, em Dourados, Mato Grosso do Sul. Como ensaísta, publicou os livros João Cabral de Melo Neto: o poeta e a voz da modernidade (São Paulo, 2005) e Uma poética do deslimite: Poema e imagem na obra de Manoel de Barros (Dourados, 2009). Coordena a página Arquivo de Renato Suttana.
AVELINO DE SOUSA




QUATRO QUASE-SONETOS



1.

Noite escura da alma. Altas portas
que se entreabrem, nos gonzos rangendo.
Como em lagos parados, horas mortas,
vai em meus olhos a luz anoitecendo.


A vela sobre a mesa. Linhas tortas
são as que a mão, tremente, vai escrevendo.
A cera derretida. A quanto exortas
exangue coração que estás ardendo!


Noite escura da alma. São João,
o Baptista, o da Cruz – o que é que importa?
Tudo são coplas, glosas de outras vidas.


Noite escura da alma. Até o cão,
adormecendo, a cabeça deixa cair, absorta,
no vale negro das esperanças perdidas.



2.
Altas as portas nos gonzos rangendo.
Ferrolhos que retinem com fragor.
Espiral de escadarias. Ascendendo
vai a alma. Escuro é o corredor.


A mão que inúteis versos vai escrevendo.
Que ritmo é que a guia, que rumor?
Embalada no rito, nada vendo,
vai a alma. Estreito é o corredor.


Súbito, no patamar ao fim da escada,
uma forma de luz, subido raio,
logo surge em todo o esplendor.


A noite dá lugar à alvorada.
A mão, tremendo, já não escreve nada.
A alma é estrela, enfim, de raro fulgor!



3.
Altas portas fechadas, sem entrada.
Altas portas fechadas, sem batentes.
Todo o céu exterior é uma estrada
que as estrelas polvilham de sementes.


Essa estrada conduz a uma entrada
de um palácio trancado a cadeado.
Altas portas que não se abrem para nada.
Altas portas fechadas sem telhado.


Para sempre fechadas para tudo,
só para a Alma-Estrela sempre abertas
no palácio do seu ser mais profundo.


Todo o céu interior se fecha, mudo,
atrás de portas altas mas secretas,
as mais altas portas do Profundo.



4.
A vela sobre a mesa. Linhas vagas
são as que a mão, tremente, foi escrevendo:
versos velhos, puído ouro de sagas.
E logo a fraca chama escurecendo.


Ali ao lado o escudo e as adagas.
Um som, ao longe, de gonzos rangendo.
Um galo está cantando horas pressagas.
E nos meus olhos a luz esmorecendo.


O cão fiel num sono sem rebate
é uma glosa da alma em noite escura.
Silêncio nos jardins da alvorada!


Só num compasso certo bate, bate
o coração – são coplas de resgate
p’la Alma: Estrela transfigurada!


(in Pastor de Estrelas, edição do autor, 2009)

VIRNA TEIXEIRA



Detox


Enrolou os ferimentos em gaze. Feridas cicatrizam com o tempo. Ainda que restem entalhes. Memórias desenhadas nos ossos, adornos.

Tirou fotografias como registros. Meses após o trauma. Sem sangue nas conjuntivas.

Deixou para trás a câmera. Travesseiro, lençol branco, a água morna do banho. Inverno, lembrança noturna.

A transformação do rosto. Quando retirou as ataduras, as suturas.

No dia da partida, árvores. De perfil no trem, a luz sobre os cabelos, castanhos.



Titan


contava histórias
nos desenhos
da pele


mensageiro do submundo
mercúrio


um vulto
de mãos velozes
na poeira lunar


em trânsito
visões onde


se escondeu
das crateras
sulcos - mofados


na outra
superfície


Virna Teixeira nasceu em 1972 na cidade de Fortaleza, mas vive desde há vários anos em São Paulo (Brasil). Os dois poemas publicados são retirados do seu livro Trânsitos, recentemente publicado na Lumme Editor. Gostei da sua maneira de escrever logo na primeira leitura, acontecida numa antologia da nova poesia brasileira publicada entre nós. Da maneira como lida com uma linguagem elíptica, criadora de segredos e de um mundo suspenso, prestes a acontecer ou ainda acontecendo. Do "quase", do não-dito ou por-dizer. Corpos, os poemas não se abrem; deixam que sejamos nós a abri-los lentamente. Ou permitem a construção de uma relação interactiva, sempre inacabada e, por isso, incessante.
FABRÍCIO MARQUES


Mini Litania de Política Editorial

Me suplica que eu te publico
Me resenha que eu te critico
Me ensaia que eu te edito
Me critica que eu te suplico
Me edita que eu te cito
Me analisa que eu te critico
Me cita que eu te publico
Me publica


(Publicado por Wilmar Silva na página 214 da contrantologia Portuguesia, recentemente editada.)

WILMAR SILVA





arranjo de gaivotas e pampulha, dia 31


eu-menino-do-campo, te faço conviva
e digo que a palavra que escrevo é
origem, invento gaivotas no sertão
ilha é meu corpo de encontro ao teu
aqui, longe, após o inverno da tempestade
verto o amálgama da pampulha veleiro
arco-íris que choram de solidão, eu
agora impávido e celeste, anjo de fogo
eu-espelho d' agua, narciso e orfeu
flautas e flores, eu-pássaro cais e flora -



Creio que este poema é a chave que nos permite entrar na poesia de Wilmar Silva, recentemente publicada em Portugal num volume intitulado Yguarani (Edições Cosmorama). Autor de uma obra invulgar e inclassificável no espaço lusófono, Joaquim Palmeira (outro dos nomes com que assina os seus textos) nasceu a 30 de Abril de 1965 em Rio Paranaíba (Minas Gerais, Brasil) e coordena o projecto Portuguesia, cuja primeira contrantologia foi lançada no passado mês de Julho em Seide, no Centro de Estudos Camilianos. Conhecer melhor o seu trabalho é possível através do seu blogue Cachaprego.

ALGUNS POEMAS
DE RUI ALMEIDA

O brilho da névoa
Uma febre luminosa arrastada adiante
Todos os pés de quem passa sem ruído
Sempre longe o mínimo tremor
E o vento, uma toalha solta agitada
Há os que dizem coisas por não as saberem
E os que olham passam suspensos
Os dias são sinais, são tardes inteiras
Corrosão que pode ser dita
Actualizada a cada momento
Tentativas sem sucesso para avançar
A destreza dos barcos nos dias de chuva
Ou a lentidão observada à distância.


*


1.
A nitidez da folha rasgada
Da falha corroída no centro
Sugere o movimento de quem caminha
De quem não sabe aonde ir

Mas que não espera, mas que não se esconde


2.
Quando se projecta no vidro a sombra
De um ser que voa e voando surge
Nunca pássaro, nunca anjo, sempre sombra
Que se ausenta sendo visível e certo

Então de luz o olho de repente arde


3.
Da deslocação para a margem se envolve
A presença da minúcia, o reflexo
Raro a sedução pela distância ou
Qualquer tentativa de aumentar a queda

Porém de novo se alimenta o sopro da pobreza


Saídos do seu primeiro livro, Lábio Cortado (uma estreia que não envergonharia ninguém – tanto mais que recebeu o Prémio Manuel Alegre – 2008, instituído pela Câmara Municipal de Águeda), estes poemas de Rui Almeida são, quanto a mim, os pontos mais luminosos da colectânea. Não dispensam contudo a visitação da obra inteira – editada pela Livro do Dia Editores, sediada em Torres Vedras –, a qual conta com o posfácio de Paulo Sucena, um dos membros do júri que decidiu galardoá-la.

ALGUNS POEMAS DE
JOÃO MIGUEL HENRIQUES



A ideia


e no momento exacto da compreensão
no preciso fulgor do entendimento
esse fugaz instante gasoso
entre a apreensão da língua
e a ideia consagrada
decidi fechar os olhos
apertar os punhos com força
retorcido sobre mim mesmo

era para ver apenas
se poderia suceder
a palavra ser só palavra
nada mais que linguagem
nada mais que um som despido
liberto de todo o sentido
matéria sem peso violento

a ausência da ideia
essa puta opressora



P. M.

eles vão sobreviver-te, tu sabes disso

por isso odeia-os profundamente
desprezas os membros ágeis
os olhos com dúvida e tempo

sabes que as tuas palavras sábias
não ecoarão para além da morte

e eles vão sobreviver-te, naturalmente
sem a tua linguagem
e esquecidos da tua memória



A erva alta

teria podido escrever os outros versos
soubesse eu da erva alta lá por fora
a que cresce nociva
junto ao muro da casa
e a mais distante, junto à estrada,
rasteira e inútil

teria alcançado a estância mais pura
soubesse ainda dizer as verdades
da erva a roçar-me pelos flancos



Poemas publicados em Também a memória é algum conhecimento, recentemente editado no Brasil na Lumme Editor, sediada em São Paulo. João Miguel Henriques (Cascais, 1978) estreou-se com O Sopro da Tartaruga, tendo divulgado desde aí textos seus em várias revistas e páginas em linha. É autor do blogue Quartos Escuros (www.quartosescuros.blogspot.com).
Este livro, para além das suas linhas de sentido e de fuga (que me dispenso de comentar, incitando o leitor à descoberta e à sua silenciosa indagação), deveria obrigar-nos a reflectir seriamente sobre as razões que levam cada vez mais poetas portugueses a verem publicados no estrangeiro os seus escritos, quando dentro de casa são relegados para um lugar que não merecem.
CILADA

Wilmar Silva


a
sayonara
flautas e agreste



flauta agreste I

esculpo minha boca dentro de teus ouvidos
onde ninfas e duendes cometem o sonho
trilham o caminho da vertigem e vivem
à beira da estrada comendo verde poeira
as cores sobradas da última festa campestre
bichos e lendas no ermo dos seres

o olhar de ceres rompendo o teu abandono
cansada de tanto cuidar dos campos
dos cereais e do gado que se perde






flauta agreste II

envergo meus olhos e desfolho os deuses
encontro na enchente o bico sibilar
de um pássaro vindo de muito longe
voando nesta primavera onde nascem
floradas tão ímpias que não me calam
pétalas que se arvoram ao encanto do sol

gasto meu tempo mirando esse pássaro
no crepúsculo onde fadas gelam no inverno
insones sôfregas e úmidas por mim







flauta agreste III

canto esta quimera como quem se despe
e desnudo alça a godiva da fantasia
deságuo meu corpo em busca do teu
febril e descalço meu faro é de lobo
e a floresta e a selva entre árvores a cilada
mesmo de longe é por ti que espero

anseio uma noite e verdejo entre ramagens
meu disfarce é virar camaleão o bicho delicado
e picar teu sexo com meus tentáculos







flauta agreste IV

disperso abelhas e marimbondos em nevoaças
um réptil de puro veneno para espantar
aquele que vier contigo cantar-me
levo um tigre atado em minha pele
para assustar esse cúmplice sempre notívago
que te persegue pelas noites adentro

desenho em minhas mãos o rumo das setas
que irão mirar o coração de teu amante
sim eu serei bálsamo e lanço os dardos





flauta agreste V

guardo agora a sombra da lua e do medo
nuvens que debruam olhos e cabelos
dissipo a legião de andarilhos que me caça
sou pássaro e as penas de safira e rubi
errante e de músculos viris risco
esse amor tão doentio que me estrangula

eu pinto os meus lábios de carmim
e esqueço o meu orquidáceo em tua língua
serei mais ou serei menos basta o ópio









flauta agreste VI

orvalho as maçãs maduradas de vermelho
e ofereço fálicas papoulas que matam
afoito em teu motim armo orgias e festim
deslumbrado por ti minha avícula é ave
em teu ermo o esboço é um bote de áspide
árido mas esperando que se umedeça

o clima que invento é mais do que ruminar
é uma matança é uma carnificina é uma vingança
onde medra o meu pânico todo vândalo







flauta agreste VII

varo entre eclipses os meus olhos de jade
escamas e cactos em minha boca o meu sexo
a oferenda eu perfaço e amarelo
de tanto mirar teu corpo primavera
teus músculos que suam vertem fisgam
teu quadril onde afogo minha insânia

tuas coxas que ventam em meus lábios e cílios
o susto a culminar em vindima a vigília
e todo ardor enseada de montanha







flauta agreste VIII


habito a mesma noite em que habitas
como o mesmo pasto que ruminas
mas sou todo insônia e amálgama de heras
desejo apenas adivinhar o que escondes
ouvir o modo como respiras e as pausas
que tanto me crispam de gelo e paixão

a noite onde dormimos tem uma constelação
ela orna teu semblante e recria em mim
esse medo visceral de me entregar







flauta agreste IX

levo árvores flutuadas sobre cerrados
para o fundo da memória onde guarneço
divindades e a fome e a sede por ti
não esta fome cotidiana de cada ser vivo
mas a fome que é pranto rito fixação
fome de amor fome de carne fome de meter

a tua boca quando vergasta sons
é uma cadência que me iça doidivanamente
misturado a terra careço de adubo







flauta agreste X

arrumo mil disfarces à beira do instante
inverto o gume da ventania
mas o que seria o instante que anseio
o talhe de teu corpo que me doura
sim eu furto as palavras eu fuço as cores
e falo apenas no sangue que me escorre

meu disfarce é o simples ato de colorir
teu baile tão longe de ficar em mim
eu me ofereço após a incidental floração







flauta agreste XI

floresço na selva noturna que me espanta
onde aninham serpentes e estrelas
floresço prisioneiro em ti e os girassóis
são objetos servidos de adorno e pasto
mais do que florescer esse poema
floresço meu sexo no meio da chuva

no ápice da tempestade brenha e escuro
onde empunho armas de fogo e visgo
esse cúmplice a desbravar os descaminhos







flauta agreste XII

anoiteço e uivos dentro dos ouvidos
onde as corujas delatam os invasores
as axilas plenas de suor calor e deserto
rasgam-me a pele até o incêndio
caço teu corpo misturado de verdes coágulos
e receio não alçá-lo antes do amanhecer

emendarei os meu dedos aos teus
e calarei teus gemidos com os meus gestos
a noite é um segredo e estás dentro dele







flauta agreste XIII

durmo povoado de imagens que me escapam
sobre essa relva onde passeiam insetos
também sonho lamber os teus meandros
tuas coxas de outono quase orfeu
sonho deter tua ânsia tão estranha
e balbuciar nos ouvidos o que me consome

eu ávido caminhante dilacero o meu sangue
e desenho um oásis no céu
que purifique os meus pulsos de lâminas






flauta agreste XIV

vivo por ti o floral devaneio do vento
sopram teus quadris cedros quadrantes
como águias no espaço imitam sombras
revelo em tua direção alvo e flecha
e todos os ritmos que hajam em setas
junto a ti esse impávido minotauro de abril

aborígene e andrógino alado e condor
minha boca tem marfim e tem azul
eu ensurdeço teus ganidos até o clímax







flauta agreste XV

azulo por inteiro as ancas vindas de ti
os músculos que escondem meus semens
eu gralha a foragir agonia e agouro
azulo os cabelos a dourar este pássaro
não somente a miragem mas o que houver
falo por mim o que jamais diriam

canto a junção entre bambus e flautas
sísmico e fixo devoro eu narciso em eros
e todo o afogamento será ausência e mar






flauta agreste XVI

amadureço o verdor que brota dos dedos
uníssonos caminheiros de vertigens e ilhas
sulcam a direção de uma messe
vértebras fisgam meu olhar de falcão
virilhas derretidas de pêlos e suor
eu sigo a vertente das cabras e longe

uma camponesa atravessa ladeiras
o vadio está desnudo e mais uma vez afoga
em ti o pênis a verdejar até a raiz






flauta agreste XVII

ouço as batidas que aceleram e sobram
no domínio agreste a desmantelar o hímem
retido pelo aluvião e varado a muque
não somente a forma de miná-lo e ferí-lo
mas esdrúxulas disformas alinharam neles
ouço falos que me açoitam nesse outono

quebro as folhas coladas em meu ventre
e endoideço a lembrança da água no umbigo
eu vejo o mapa sem plexo e sou fatigado






flauta agreste XVIII

domino as retinas e flexos flautins
nu e ávido com o meu arco e flecha
espanto-me entre árvores as aves de rapina
armo a cilada e por completo o que falta
salto como tigre os laços de seiva e sangue
eis que esparge em meu sexo um oceano

ele eriçado vem escampar-me como fera
de tocaia ruge e arma o bote
sobe em meus ombros e vira amazonas







flauta agreste XIX

atravesso fauna e flora antes do inverno
o sol entre as folhas vara as montanhas
e inunda o córrego com o seu fulgor
descubro sargaços que me enleiam à água
e arremedo a dança que salta do verde
vívidos comemos nácares vivemos em tríade

a essência em nós é um laço ou cipó
nascidos da terra somos nós a passarada
e o amante assassinado também sou eu







flauta agreste XX


escondo em ânforas a paisagem das papoulas
e o que vislumbro é sempre emboscada
andarilhos do mato somos os herdeiros
e remoemos os cabelos vindos dos jasmins
sim içamos os pêlos até emergi-los na água
remoemos a alcatéia que foge pela lonjura

eu guardo em mim a derradeira cilada
fisgarei os olhos que me seguem afoitos
e prestes ao orgasmo o meu pênis é todo seu

Lucilio Santoni

CORPO DE GUERRA

1 (até ao fundo)

Sobretudo de noite, os reflexos prateados excluíam a necessidade de uma conclusão, a iminência de uma conclusão. Mas os olhos rapidamente se dissolvem, se perdem nas cavidades do firmamento num atormentado abraço com a terra.
A luz deste dia não deixa imaginar um poder ser, nem um ser presente, nem um ter sido. Resta tão só um deslizar para o fundo, para buscar quem ainda não se transformou em sombra, silêncio puro.


2 (em exposição)

Se alguém viu a história dos vivos
separados da carne
transformados em ar
água terra e fogo
transformados no sal do mundo,
se alguém viu a história
pela primeira vez,
então pode encontrar também um corpo
exposto aos confins,
em exposição
para dar testemunho da própria vida infame.


3 (fogem)

É um ódio
que vem de outro tempo;
é um desejo que deriva dos séculos.
E agora mesmo eles se perderam,
Perderam a sua própria cidade sem nunca a possuírem.
Por todo o lado, a chuva, os camiões que viajam lentos,
o cansaço, o casaco pesado como um sudário.
Fogem.


4 (quatro)

E não fala
nada diz do seu tormento,
fechada numa língua cheia, pela metade,
de consoantes, confiando-se
à voz dos vingadores e enquanto sonha
delira no final da tarde
chama os mortos, para que venham
à sua festa. A sua respiração leve
é daquelas que deixam imaginar
a perda de tudo.


5 (o ódio)

Quando o sangue e a memória são uma única coisa
não faz falta cumprir a nudez, não faz falta
evitar a tortura, não faz falta salvar a alma.
Basta gritar “odeio todos esses rostos, odeio-os”.


6 (vós)

Fostes chamados
fostes chamados para produzir escombros
para viver o tempo da mentira e das sentinelas.
Assisti agora à corrida dos uniformes
na direcção do mar
também corrompido pelas cidades de areia.
Oh, as fugas… os regressos
as ruínas da primavera, o vidro
opaco que se quebra na mão do viajante antes de chegar à terra prometida.
Os vossos olhos voltarão ao horizonte, para não o verem,
numa inútil dor submersa pela etnia do pó.


7 (pai)


Não é justo que as coisas durem demasiado,
pensou enquanto olhava o desertor que não queria cair.
A claridade seca debaixo da ponte era quase acolhedora
e aquele corpo agitava-se, talvez pela primavera
ou talvez pelas balas que o preenchiam sob a pele.
Imaginou os milénios e os povos, e notava um doce langor
como se a matéria das estrelas lhe entrasse nas artérias.
Pai, recordo que também a ti te custava estar de pé…
Por que não se cai?


8 (oito)


Queimar-se no corpo de outro,
assim sem dar nas vistas
haverá decerto um motivo, um critério, uma razão
e no entanto sustenho a respiração para não chorar
quando a toda a volta não há mais do que aquele corpo imerso no furor
dos soluços. Os documentos queimados, oriente ocidente imenso
desorientado por um corpo e uma voz
que nunca soube de quem fosse ou que razão a mantinha calada.


9 (a brisa entre as oliveiras)

Recordais certamente quanto era triste a brisa entre as oliveiras
naquela hora precisa daquela tarde.
Afirmo, contudo, que a desejei
como por vezes se deseja um coágulo de sangue e de esperança,
Deus que fizeste deste reino um jardim
faz que chegue quanto antes a ressurreição da carne.
A minha boca empastada de palavras irá em procissão, todos os dias até ela
e fá-lo-ei de tal forma que as tuas obras venham em procissão até mim, ao meu corpo
que quer ressuscitar e nada lhe importa, nada mais.


10 (esgotada)

Não haveis visto nada da minha cidade.
Viestes, trouxestes comida e medicamentos, trouxestes armas,
mas nada haveis visto. Tentastes aliviar a nossa via sacra,
experimentastes o fel e a amargura, viestes dar-nos uma oferta régia,
mas não vistes nada.
Eu, senhores, reclinada sobre o flanco, esgotada
ao ponto de não me reconhecer, rogo-vos que não queirais cobrir
que não queirais esconder o meu corpo, para que todos possam ver, finalmente,
a cidade que me dá a alegria, a agonia e a páscoa dentro deste silêncio.


11 (noutro lugar)

Diz que vê, ali, debaixo daquela ponte, que vê os seus semelhantes
em caravana. Abandonam a cidade, seguindo as grandes estradas para norte
até ao norte do mundo. Diz que também ela queria partir
do que lhe resta, deixar aquele corpo, aquela memória imensa
não mais sentir o bafo dos sobreviventes. Diz que vê…
mas enquanto não observa, tem os olhos fechados sobre o tempo
que se esfarela. As perguntas da existência estão todas ali, com calma
se juntam para além do novelo dos sentimentos. Diz que vê
que intui o milénio que está lá fora, mas fora está a história
jogada nas barricadas, cheia de névoas e lendas;
há outro lugar infinito.


12 (doze)

Aqui se cumpre a minha história, ainda que a vida não queira partir, não possa partir. Começa agora o gotejar das palavras vazias, das horas sem sentido. Sinto-me a cair nas cavidades do ser, onde não há voz, onde a escuridão se abriu à escuridão e a terra à terra.


13 (nada mais)

No fim, nada mais. Continuo, porém, a viver, num tempo imprevisível, tão misterioso quanto o passado, nas carícias, e o futuro em que perco o sangue.



NOTA: Estes treze poemas de Lucilio Santoni, primeira parte de Corpo di guerra, livro publicado em Grottammare (Stamperia Dell’ Arancio), na Itália, em Outubro de 2002, serviram de base a uma obra musical homónima, divulgada pela “I CD del Manifesto”,

QUATRO POEMAS
DE ÁLVARO VALVERDE



Então, a morte


1

Na cabeça, palavras amargas;
palavras dolorosas
pelo seu peso de morte.
Nos olhos, tristeza.
E de súbito, ali,
numa esquina apertada da terra,
algo te reconcilia com o tempo.
Uma árvore devolveu-te a esperança.
Com ela regressou essa verdade,
para o resto sempre precária,
com que se pode justificar até a vida.
Com a visão humilde de um marmeleiro.


2

Junto desta cama de hospital,
utilitária e branca, em que agora
descansa o corpo doente do meu pai,
neste mesmo sítio onde agora
eu mesmo estou sentado,
esteve um dia ele
velando o seu.
Recorda-mo às vezes, lá pela noite,
quando apagam as luzes do corredor
e se ouvem os passos silenciosos
do pessoal de vigia
e a tosse do vizinho e o gemido longínquo
de alguém que sofre alheio
no quarto do fundo.
Em voz baixa, conta outras noites de insónia
semelhantes a esta,
ainda que ele não fosse então
o sujeito passivo dos meus inábeis cuidados
e somente o representante dessa força
que sem dúvida tiramos da fraqueza
para poder estar à altura
de tão penoso acontecimento.
Entre duas luzes,
com a respiração forçada do oxigénio,
enquanto altera as doses no conta-gotas,
penso em mim por momentos
e, sem querer,
vejo-me a mim mesmo
estendido nesta cama,
e, ao meu lado, sentado, como eu,
na mesma cadeira,
um dos meus filhos segurando
com muita força a minha mão.


3

Na realidade, não sei
se vamos ao encontro da morte
ou se provimos já da sua certeza.
Não me recordo, de qualquer modo, alheio
à sua larga sombra sigilosa.
Ali estava, no escuro, na enfermaria,
ao fundo do corredor, na penumbra
daquele mesmo canto em que agora
estou encolhido contra o tempo.
Estava nas palavras sussurradas
e estava nos silêncios clamorosos
e nos olhos tristíssimos e húmidos
dos meus pais voltando da igreja
sem outras explicações para além das naturais.
Estava ali, sem dúvida,
e sempre estivera
fazendo-me a mesma companhia
e sei perfeitamente como cheira
e a formas que adopta e reconheço,
como se fossem minhas, as suas mentiras.
Por isso tenho dúvidas se vamos morrer
ou de uma vez por todas deixaremos
de estar já nesta vida mortos.


4

Tudo me leva a ti; assim, esta tarde
aberta ao céu azul que sucedeu
ao irado negrume da tormenta,
sob esta luz que, mais do que vespertina,
me parece ofuscante e matinal,
quando atravesso o vale
e volto a Jerte, sem conhecer a razão,
seguindo não sei bem que raro impulso,
curva a curva, bem sabes, leito acima,
até às mesmas nascentes da vida.
É tudo igual, porém também diferente,
e me remete para ti. E as cascatas,
e os talhões e o rio e as cerejeiras
parecem ser olhados pelos teus olhos
e através deles ainda me falas
e voltas a explicar-me o importante:
sentir-se aqui feliz e rodeado
de quanto qualquer homem necessita:
a luz, o campo, a árvore, a montanha,
coisas, talvez, vulgares ou anacrónicas
mas que nos confortam e nos salvam;
os seres e as forças desse mundo
solar onde vivias;
onde, para meu bem, comigo vives.


Álvaro Valverde (Plasencia, Espanha, 1959) é autor de livros de poesia (Las aguas detenidas; Una oculta razón; Ensayando círculos; Mecánica terrestre), de ficção (Las murallas del mundo e Alguién que no existe) e de relatos de viagem (recolhidos em Lejos de aqui) – sendo considerado em Espanha um dos poetas mais importantes da sua geração. Os poemas aqui traduzidos pertencem à sua colectânea mais recente, Desde fuera, editada em 2008 pela Tusquets Editores (Barcelona) na sua colecção “Nuevos textos sagrados”.

Pedro Du Bois

ALÉM

Além do pensamento
riscar ao autor
o fósforo
incendiado
no desafio
de se fazer
luz

incinerar a idéia
do autor na velocidade
antecedente.

A consumação estrófica
deixa o desejo ardente
da febre mortal da exceção.

Na luz inconsumida
piora o desentendimento:

rouba ao autor
a solidez da pedra
deslocada: a entrada
ilumina o inexistente.

Outros poemas do autor:
http://www.globoonliners.com.br/icox.php?mdl=pagina&op=listar&usuario=5812

LUIS ARTURO GUICHARD


Las campanas del sitio en que nacimos
Están sonando siempre. No las oímos
Pero ellas nos están siguiendo. Miden
Los golpes que nos quedan con la precisión
Que sólo aprende el péndulo. Suenan
En aquel lugar de casas blancas
De larguísimos pasillos ciegos
En los que el mismo niño sigue
Corriendo sin encontrar la salida
Con la misma mirada del anciano
Que señala al niño un punto mas allá
del ocaso.
La despedida suena
el los oídos como un péndulo. Empecemos
a cumplir el oficio de creer y de esperar.
Entre estos doce golpes deben estar
los sonidos verdaderos.

(in Los sonidos verdaderos, México, 2000)

CASÉ LONTRA MARQUES


Alguns poemas
de
Mares inacabados
(2008)


O corpo ultrapassa a parede de argamassa, mas continua
estreito, concreto, como um pulmão trancado
em crise de asma. A liberdade
vendeu as asas em troca de paisagem.
Encontro um detrito
entre as pernas, apesar da velocidade dos afetos.
O pássaro
que inventamos era só mais um pássaro.


*


Através da vidraça trincada, dá pra ver a cara calma
da calçada. Prédios em vez de asas.
Quando escurecer, o corpo edificará sua cota
de argamassa. Algo branco
seduz a cidade com solidez de fumaça.
Depois de respirar, aceito
o sol na medida exata do furo de uma bala.


*


Lá está a esquina prevista, a cidade evidente. Mares inacabados
que o sol do sarcasmo
infeccionou. Dois desempregados cruzam o asfalto, equilibrando pássaros
dentro dos sapatos. Cultivar o corpo como pedras
que o sol do sarcasmo
infeccionou. A violência também exercita nem tão sutil melodia.


*


Móveis novos há tanto depredados. Setembro quase de todo
vertical. Uma gaveta que ninguém ousaria
comparar a um pulmão. Apesar de desfalcar o tórax
do armário. Outubro não virá
até que se abra outro janeiro no colo desta hora.


*


Pouco importa se o fogo voltará. Alguma cabeça
no mais alto degrau da escada. Ainda
o martelar daquele prego
incomodamente mudo. Resta agora a camisa pra lavar.
REDENÇÃO

Só um bom poema pode apagar da memória os vestígios de um poema mau ou lamentável.
Depois de ter lido, numa antologia oferecida com um jornal, um punhado de versos de José Saramago que dificilmente seriam reivindicados pelos mais assolapado e coxo poeta do parnaso oitocentista, eis que a repulsa se apagou ao receber - vindo de Espanha - o novo livro de poemas de Luis Arturo Guichard, Nadie Puede Tocar la Realidad, editado pela colecção Litteratos, na muito digna Littera Libros.





É realmente oposto: um volume que nos oferece uma poesia forte, situada - como é necessário - nos limites entre o tangível e o intangível. Sinto-me privilegiado ao ser um dos (poucos) leitores portugueses deste belo livro... Embora tencione traduzir alguns dos seus textos, não quero deixar-vos sem algo deste livro. Aqui fica um dos poemas, no original:


SERÉ MATERIA

... la bibliothèque était le point de réunion d'une secte pythagorienne...
JACQUES ROUBAUD, La bibliothèque de Warburg

La biblioteca tiene cuatro plantas:
Palabra, Imagen, Acción y Fundamento.
Ordenados los libros del banquero
como un ejército dispuesto en círculo
su general es el olivo plantado en el patio.
Los libros saben que los persas nunca ganan.
Los libros saben cómo se construye la balsa de Ulises.
Los libros saben cuál es el camino hacia arriba y hacia abajo.
Por eso los libros tienen un escudo.
Por eso los libros se apiadan de sus dueños muertos.
De pronto recuerdo a Simónides:
"Soy un muerto, y un muerto es mierda, y la mierda es tierra
y si soy tierra, entonces no soy un muerto: soy una divindad."
Todos los dueños están muertos.
Son vanidad sus nombres en las portadas.
Ayer leí que dijo un poeta a sus amigos:
"Seré ese vaso de agua que estoy bebiendo.
Seré materia."
No me conmueve la materia, aunque sé
que a través de ella puede haber una salida,
ni el agua, lo que más brilla sobre la tierra,
sino este "seré", escrito por Quevedo
hace quinientos años
y que no tiene peso ni medida.

Todos tenemos un gallo para Asclepio
ya curados de la vida
Y el librero a mi lado es todo Metamorfosis

Antes de entrar en esta biblioteca
Yo no sabía que soy pagano.