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A ESCOLHA DE MÁRCIO-ANDRÉ

O poeta brasileiro Márcio-André resolveu partilhar com os leitores do seu blogue um poema meu. Espero que também vos agrade!

HOMENAGEM
AOS JUDEUS DE CASTELO DE VIDE

Ao transformar um conjunto de edifícios na judiaria em espaço museológico, a Câmara Municipal de Castelo de Vide decidiu usar um dos compartimentos para lembrar os judeus desta terra do Norte Alentejano supliciados pela Inquisição. Significativa, esta iniciativa. Há nomes que nunca deverão ser esquecidos e atitudes que nunca deverão ser apagadas. Sugiro, apenas, que esses nomes fossem colocados num local central da vila, gravados em granito da região para o tempo e a estupidez dos homens tenham maior dificuldade em apagá-los.
Visitei o museu - localizado no que se julga ser a antiga sinagoga - no passado mês de Agosto, acompanhado pela minha filha. Ao conversar na recepção com a sempre disponível e generosa Maria do Carmo Alexandre, falou-me dum nome estranho inscrito nas paredes do monumento: Catarina Dias, a Purgatória. Respondi-lhe, emocionado, ser minha antepassada, sobre quem escrevi há tempos um pequeno poema.
A fotografia documenta o seu nome entre o de muitas outras vítimas dessa negação da religião e da religiosidade. O poema aqui fica, de novo, conforme se publico no blogue de Nuno Guerreiro Josué, "Rua da Judiaria": http://ruadajudiaria.com/?p=514



Catarina Dias, a Purgatória



cantava, nesse tempo,
a oração dos mortos,
ligando no tear
os fios da memória –

devolvia a água
à raiz da oliveira
para que o sangue
pudesse alimentar
a luz (e as sombras)
dessa terra –

lançava sobre o lume
o sabor e a sabedoria
para que o fermento
envolvesse a solidão –

bebia na fonte
o brilho da pedra,
guardando no cântaro
a angústia das palavras –

guardava no peito
o fogo e a fuga,
o leito que um dia
fechara a garganta –

– quando vieram, sem sombra,
impor sobre o corpo esse peso
sem vida

e a vestiram de noite,
embora fosse branco
o hábito perpétuo.



NotaCatarina Dias, a Purgatória foi uma judia do século XVIII residente em Castelo de Vide. Foi condenada pela Inquisição de Évora a usar o chamado “sambenito”. Outros familiares seus foram queimados em auto-de-fé na capital da então província de Entre-Tejo-e-Odiana. Ao construir a minha árvore genealógica, deparei-me com um nome estranho: Catarina Dias, a Purgatória. Tentei investigar de onde viria essa designação. Achei Catarina membro da família Narigão (de Castelo de Vide) que, em conjunto com os Tirados, fora severamente atormentada pelos sequazes da Inquisição. Catarina estava incluída no número dos sofredores: embora não tivesse visto as suas cinzas misturadas à terra de um terreiro eborense, fora obrigada a usar durante toda a vida o odioso “sambenito “. Daí o alcunha.

UM POEMA DE
"INSTRUMENTOS DE SOPRO"




1.
nascente








há objectos dentro do nevoeiro
sob o local do nascimento.
nenhuma arquitectura. algumas palavras.
um prenúncio de morte
ao contemplar a fechadura desta porta.
com nitidez, um lugar (interrompido) –
uma voz vinda de longe, do fundo
dos tempos.



*



uma árvore cresceu.
afasta as raízes. atravessa
uma estrada tantas vezes percorrida.
não há caminhos semelhantes.
apenas veredas.
entre a raiz e o tronco da árvore –
uma presença. um lugar
sem espaço, ainda sem memória.
este nascimento – sem tempo
nem lugar.



*



o espaço consegue estender-se.
torna-se memória.
as imagens misturam-se.
o som prolonga-se
sem que consiga separar-me
do seu voo.
os fotogramas dividem-se.
alicerces e pilares
vislumbram o edifício
onde guardámos
uma lápide quebrada.



*



o texto desaparece.
foi escrito a sépia, muito claro.
o mundo emerge. revela
imagens, uma data
impressa sobre a pele,
alicerces, estilhaços
que ficaram no cabelo.
para sempre.



*



sob a estrada, junto das águas –
vestígios de sangue.
consolidam
(fazem oscilar)
todo o edifício.
procurámos uma cidade.
encontrámos a ruína:
um lugar – pedaço de pele
arrancado à superfície
do nosso corpo.



*



um livro
prestes a regressar
à forma da origem?
um texto
sem legenda?
a eloquência permanece
apesar da água.
o mundo avança.
espera, entre a sombra e a ruína,
chuva lavando a tarde
e esta ferida.



*



algumas palavras
traçam a sangue
um caminho diferente.
nenhum isolamento nos protege.
as telhas estalam. o tecto
é desenhado pela água.
o vento e o granizo quebram
a vidraça.



*



a rapidez da erosão desfaz
o terreno, a rocha, a estrada.
tudo.
o tronco da árvore estala.
as perguntas ficam.
o incêndio separou dois mundos
sem que possível fosse
analisar o sangue (ou a água).



*



o corpo desaparece
dentro da cidade.
as raízes rebentam
a calçada.
uma casa cresceu.
uma casa cresceu
mas só aqui a posso encontrar.
DOIS POEMAS
DE INSTRUMENTOS DE SOPRO






criámos este mundo. e outro mundo ainda.
a voz e o sangue. este corpo a dançar na escuridão.
a sombra da cerejeira nesta tarde sem vento.

retiro, sem calor, o barro com que rebocámos a nossa alma.
assim, despida, a pedra esboroa-se.
somos apenas terra sem estrume que nos fertilize.
guardamos nos olhos a semente – e alguns grãos de areia
na alvenaria com que desenhámos esta ponte.

recriámos esse mundo. e outro mundo ainda.
os pilares rodeiam esta dança –
os mortos descendo ao centro da noite.

a água destrói o vinho e as videiras.
a janela guarda no poço uma língua estranha
que nesta face podemos decifrar.

destruímos este mundo. e outro mundo ainda.
amassámos sobre a eira a distância
com a fértil viagem ao poente.

a lama regenera a nossa sede. a água desfaz esses carvalhos
que um dia regressaram à nascente.

destruímos este mundo. e outro mundo ainda.
voz e sangue. corpo e dança.
na escuridão.







matéria



sangue ou tinta? nada substitui o corte
na paisagem. pedra ou tinta? não interessam
as formas nem as figuras dispostas no paramento
que rompe a linha das casas. os vitrais escondem

a passagem de um navio por entre os dedos.
não existem imagens que os olhos reconheçam.
na memória avultam movimentos mínimos –
lábios recebendo no negro esplendor

a torre inteira, arquitectura de sangue.
pedra ou sangue? esqueço o horizonte.
contemplo os vitrais. gritos explodem
como sinos num dia de nevoeiro.

ou tocarão os sinos como gritos nesta torre
que permanece sobre o livro?



*



sangue, tinta, pedra. a inexistência
sobre o espaço, substituindo a existência sobre a terra.
a pedra como símbolo do sangue – o sangue
como tinta, elevando na superfície
da carne outra torre feita de vulcões e de memória.

nada resiste contudo ao efémero das raízes.
a erosão e a humidade desfazem e apodrecem
o corpo, a torre, a paisagem.

os átomos subsistem. mas no fim dos tempos
ninguém poderá distinguir no deserto
a torre do corpo, o corpo da tinta e do papel
que um dia registaram a transfiguração

da pedra, do sangue – nas palavras.



In Instrumentos de Sopro, Águas Santas, 2010
LLAVE DE IGNICIÓN



comulgo un fuego inmenso esta noche.

sin voz. sin tiempo.
devoro esta salada carne
por el soplo que arrulla el mar
y las montañas.
abro estas alas. bebo sin cesar
el néctar y el corazón. ninguna sombra
nos protege. el sol y el agua queman
la superficie de este cuerpo
en que la negra flor
traslada de raíz el aroma de esta luz
que pocos ven.

[...]




É este o início da tradução de Marta López Vilar de um dos poemas do meu livro mais recente, Chave de ignição, publicado em 2009 pelas edições Labirinto. Pode ser lida aqui: http://laberintodepapel.blogspot.com/2010/03/llave-de-ignicion.html
LIVRO DE RUY VENTURA
TRADUZIDO NOS ESTADOS UNIDOS

Acaba de ser publicada nos Estados Unidos da América, em San Francisco (Califórnia), uma tradução do livro de poesia de Ruy Ventura intitulado Assim se deixa uma casa. A obra agora dada a lume com o título How to leave a house surge no âmbito do projecto “Second Mind”, contando com uma versão inglesa da responsabilidade de Brian Strang, que já antes publicara nessa língua poemas do autor de Arquitectura do Silêncio, nomeadamente na revista 26: A Journal of Poetry and Poetics, editada também na cidade californiana, e em publicações electrónicas.
Brian Strang vive em Oakland, sendo professor na San Francisco State University e no Merritt College. Publicou, entre outros, os livros Incretion e machinations. Tem traduzido, em conjunto com Elisa Brasil, poemas de vários autores contemporâneos de língua portuguesa. Pintor, tem quadros que podem ser vistos na sua página on-line, “Sorry Nature” (http://sorrynature.blogspot.com/).
Assim deixa uma casa, cuja tradução agora se publica, teve a sua primeira edição em Portugal no ano de 2003, pelas edições Alma Azul, de Coimbra. Tratou-se de uma edição bilingue, em português e espanhol, com versão e prefácio de Antonio Sáez Delgado (Cáceres, 1970), um dos mais importantes estudiosos e divulgadores da literatura portuguesa dos séculos XX e XXI em Espanha. Sobre esta obra, escreveu Pedro Sena-Lino em 26 de Janeiro de 2004 na página “Canal de Livros” (http://www.canaldelivros.com/data/Novidades/640.htm):
Desde o seu primeiro livro, [...] Arquitectura do Silêncio, que a poesia de Ruy Ventura se constrói numa tensão obsessional pelas coordenadas de espaço e tempo, pelos seus limites e capacidades. A inscrição, através do poema, visa simultaneamente reconciliar o visível e o invisível, o tempo anterior, o presente e o passado, e criar no lugar-tempo do poema um espaço fixo de imutabilidade, uma estrutura do eu em sintonia e coerência. / Donde que neste seu quarto livro, Assim se deixa uma casa, esta temática se manifeste em tonalidade diferente da do primeiro livro, ou mesmo de Sete Capítulos do Mundo, recentemente editado pela Black Sun. A Casa, baluarte identitário e veículo do espaço absoluto do poema, é uma entidade simultaneamente materna e protectora; abandona-lá significa um corte, com qualquer coisa de injusto: / […] / Porém, o valor espiritual da casa é desenvolvido com larga perspectiva pela pena de Ruy Ventura: / […] / Mais um aspecto da inscrição do natural (outro tema caro a esta poesia), ou seja, da identidade da natureza face ao tempo, que Ruy Ventura tem levado a cabo, com assinalável coerência, num processo de escrita que cada vez mais se condensa numa sucessão de imagens estranhantes, perturbadoras, misteriosas.”
José Mário Silva, por seu lado, referiu no “Diário de Notícias” de 8 de Janeiro de 2004:
Este é um universo fechado, somatório de enumerações e enquadramentos fotográficos. Os versos são degraus por onde sobem imagens duma despedida, de uma ausência em curso. A casa esvazia-se mas permanece de pé – “estátua de areia / num jardim de inverno”. Há um cântaro que guarda o “caminho entre a fonte / e a alegria”. O texto, esse, arde na sua opacidade. Porque é “ao mesmo tempo / luz e interpretação da luz”.”



Poemas no Brasil

Foram recentemente publicados em páginas brasileiras alguns poemas do coordenador deste blogue. No sítio de Antônio Miranda, director da Biblioteca Nacional de Brasília e escritor, saíram alguns originais pertencentes a Vale dos Homens, livro ainda inédito. Na Cronópios, por sua vez, podem ser lidos alguns textos que fazem parte do futuro Parábolas e Alegorias.
Agradeço desde já a vossa leitura!
fundição


corta. atravessa. une e divide
os ossos de uma mão cujo metal
sustenta a carne na lâmina
e no ventre – para que as vísceras
não espalhem sobre a laje
o ouro e o odor dos excrementos.

recolhe-se o fogo na fusão
do esqueleto. a faca corta
os músculos e os tendões, sem deixar
nos poros uma gota (apenas
uma gota) de água negra
ou verde, povoada.

a faca corta o fogo
e a distância. o fogo e a cinza
dessa madeira de deus
que a circulação divide
para melhor retalhar e poluir
o grito lançado no abate.

fogo e ignição dividem entre si
a contramina esfaqueada pela fome.
nesta viagem, a faca corta o fogo
e o espaço. lança na boca
o metal e o cimento, os resíduos
(que somos) desse forno
cuja abóbada caiu sobre as cabeças.


*


o fogo corta o fogo. a faca
corta a faca. fogo e faca
existem, coincidem, sobre o
corte que é faca, fogo – gente.
nada existe. tudo coexiste –
como a carne, os ossos e as vísceras
que o tempo liquefaz
ou a mão desmancha, separando
(e reunindo) os elementos.

congela-se o metal para que a chama
nascida na hora do incêndio
possa fundir (e difundir) o aço
sobre o molde de que renascemos.

e, na mesma hora, em retrocesso
escrevemos do fogo o que os olhos
não vêem nem poderão tocar.
porque o fogo só cortado adquire
a têmpera do vento e do minério.
só cortado (e cortado sobre a forja)
é expressão da estrutura que entreabre
o sopro sobre a voz, pelo abismo.


*


há símbolos sem têmpera. não cortam.
são escórias espalhadas sobre a terra.
não adubam – nem podem derreter-se
para talhar enxadas e forquilhas.
só no corte o fogo será fogo. só
no corte a faca será faca. faca e fogo

cortam este mundo. dividem. reunindo
multiplicam o globo que rolamos
sobre a terra. sem faca e sem fogo
comeríamos outro fogo sem luz, outra
presença que uma faca meteria entre as costelas.
assim, cortando o fogo com a faca
(ou a faca fundindo nesse fogo
que o fole alimenta na garganta)

fundimos entre os ossos o metal
que nos faz criaturas de madeira.






HOMENAGEM A CRISTOVAM PAVIA

Faz hoje 40 anos que morreu em Lisboa Cristovam Pavia, aí nascido em 7 de Outubro de 1933. Estes dois poemas, da autoria do coordenador deste blogue e retirados do seu livro inédito Vale dos Homens, são os primeiros passos de uma homenagem alargada que aqui se publicará em primeira mão, visando uma futura edição em livro. Enquanto a poesia do filho de Francisco Bugalho não sai do limbo onde tem sido colocada pelo esquecimento dos editores portugueses de poesia - é mínimo que lhe devemos.



[entre Francisco Bugalho e Cristovam Pavia – 1968]

não pude, meu filho, acolher no peito
a carne e a madeira. nesta terra
reservei de antemão o espaço necessário
para aumentares comigo o fogo
em que fui depositando a minha sede.
perdeste a chave, eu sei. mas fertilizaste com a tua mão
o rosto dessa escultura virada a nascente.
na montanha, a água do tanque ficou límpida.
nela entalhaste o oiro e a agonia. o medo
desfez a porta. colocou sobre os músculos o lintel
dessa torre, como se fora um tronco de carvalho.
o líquido assentou no coração.
só então pudeste beber desse cálice
esculpido pelo mar e pela sombra.


*


recebi, meu pai, o tempo e a sementeira. procurei
nesta terra um veio de água
para lavar e alimentar o coração.
o campo enegrecia.
fui escutando, quando não conseguia vigiar,
essa ponte sobre o mundo.
que lugar me pertencia?
sem olhos, o verbo toldava o movimento.
a água corria entre os lençóis postos de novo.
colei retratos de gente. desenhei mapas, paisagens e rostos.
anotei com minúcia estradas que se cruzavam comigo.
contudo, o campo enegrecia.
transportei a humanidade inteira
no peso dos ossos e da carne.
atravessei a corrente transportando
sobre os ombros a viagem e o desespero.
em silêncio, tentei regressar. a semente ardia entre os dedos
queimando lentamente a pele e as unhas.
espalhada pelo mundo, era preciso reunir essa carne
para com ela fertilizar o vale e a ribeira.
sobre o arco registei o cântico dos mortos.
procurei uma paisagem para alimentar o coração.
diante da imagem tive de novo o corpo reunido.
o sangue desenhou no mármore
o canto da devesa.
entre as ervas e a inscrição do medo – pude descansar.



[p/ Cristovam Pavia]

escreve, sempre de novo,
o vento entre os pinheiros,
uma chuvada, antes da divisão da terra.

no sótão, a mão direita
(os dedos demasiado longos).
fragmentos de um texto circundam
a abóbada, o comboio, o coração.

plantaram carvalhos na encosta
dentro da viagem
na fresta virada a poente.

a legenda continua incompleta.
sob as letras nascem letras ainda mais antigas.
desapareceram as paredes,
a cal onde o texto surgiria.

vizinhos na infância,
resguardaram teu sangue nos limites do campo:

o sopro que escreveste nas ruínas,
o odor que sempre nos iluminou.

[Castelo de Vide, ruínas de S. Paulo]

IN MEMORIAM

É este o meu poema mais recente. Estava neste momento a preparar-me para o enviar a Maria Gabriela Llansol. A morte surpreendeu-a. Surpreendeu-me. Perdemos uma das vozes mais discretas, mas mais significativas da literatura de língua portuguesa. Aqui fica o texto, em sua memória.


[Maria Gabriela Llansol]

a voz coloca a suspensão da frase
entre os sinais que qualificam um tempo sem memória.
ossos e palavras (a saliva e o alimento da estrutura)
derrubam o edifício. corpo ou figura –
rompe de um telhado repartido por vários cantos
da cidade. há homens sem voz, outros sem sombra
mas com flamas descobrindo o cabelo. a nudez da sala
permite o encontro – uma ponte
interrompida onde crescem figueiras
e outros fluidos corporais – sangue e
seiva, sangue e sémen cobrindo a boca
e algumas palavras sem tradução
na linguagem dos pássaros.

nenhuma palavra altera a consciência da metamorfose.
as rochas protegem-nos
da força das águas, mas não conseguem segurar
um corpo (uma figura?) cujos dentes
atravessam a carne e a madeira.

o anúncio divide a estranheza do horizonte.
o corpo escreve, mas nada regista sobre o corpo
que oferece. homem ou linha ininterrupta?
que cor a da serpente? a forma ilude
a cerração. o desejo destrói
essa figura – onde um corpo sem ossos
restaura os objectos e a memória.

cadáver

[Lisboa, igreja de S. Julião]



a vizinhança não poderia consentir tal afronta.
(apesar do incêndio, a vida ressuscitara
entre velas, mármores e frontais.)
era preciso consumir de novo
a brancura do corpo
deixando apenas os ossos
e uma pele brilhante
mas ressequida.

a incandescência das vozes
foi devorada pela incandescência
dos motores. no trono
Mamon reina agora
sobre a falsidade da fachada.

noutro lado – taberna, quarto
de cama, teatro ou sala de jantar.
mudaria o diálogo
mas não mudaria o povoamento.

aqui, Mamon escarra nas paredes.
poderia ser de outro modo?
Mamon “suja o olhar
e sem mistério
”.




Nota: A citação final faz parte de um verso de José do Carmo Francisco, transcrito de memória.

incêndio
[Lisboa, igreja de S. Domingos]



nenhum brilho poderia restaurar o esplendor do canto.
só uma flama nocturna seria capaz de devolver ao tempo
toda a fuligem que fora depositando sobre as paredes
(da alma?). mesmo depois, o cheiro (dos ossos, da carne,
da pele, dos cabelos) permanecera sobre a cidade.
a cinza ficara, talvez, na argamassa das casas.
não havia forno que queimasse
o sangue caído sobre as colunas, as manchas
de sal no pavimento, os gritos misturados com a terra
e com a tijoleira das abóbadas.


*


o incêndio purificou a pedra e a memória.

sem tecto, a casa soube então receber
a água do baptismo, libertando o mármore e a madeira
do hábito perpétuo e da falsa cruz
que destruíra as veias por onde circulavam
o ouro e o coração.

era preciso um incêndio
para apagar o fogo no terreiro.


*


corroídas, as colunas sustentam
a fragilidade da matéria. enegrecidas
recordam a oscilação das células
e a loucura.

resta-nos a pureza da imagem –
livre da tinta e do cinzel. sustenta
com o braço os pilares do edifício.

nada nos pertence. repugna-nos
a soturnidade da estrutura.
mas tudo em redor reflecte
a nossa face – reconstruída
incêndio após incêndio
cicatrizadas as feridas da memória.
escuridão
[Carreiras]



a mão desapareceu sob a madeira?
a luz escondeu os dedos – ligando
o norte e o sul, o sul e o sudeste?
a dor, debaixo de algumas palavras, dividiu
e recompôs o reflexo do vidro sobre os olhos.
a pedra renasce depois do negrume.
o ouro envolve três quartos desse rosto:
a legenda.

dissolvi esta parte do meu corpo
para melhor dirigir o olhar
aos alicerces da montanha. poderia subir
deixar entre os rochedos a chama
que iluminaria as asas e o farol.
dissolvi, porém, o clamor, a cinza
e o testemunho. pedaços de metal ficaram
como linhas na água e no trevo, junto da parede.


que ficou dos alicerces
na tiara que ostentas sobre as veias?
que estilete registou sobre o ouro, entre a seda e o damasco,
a palavra – o rosto em que o gelo descreve o canto
negro, ecoando entre os castanheiros e os filamentos
de nojo na sarça e no navio onde tentámos rever-nos?


a luz atravessa a muralha entre excrementos
e pastas de sangue. a flama dirige a sua língua
até muito perto de nós. o cabelo arde. o som
parece idêntico, mas guarda no interior a união
entre o rosto e a seara. mudamos de edifício,
o lintel segura-nos no tremor. as telhas estalam
durante a noite. a mão escreve sobre a cal
a voz do imperador. transporta para dentro
peso da madeira – tantos séculos sepultada a nascente.


olho a imagem. as interrogações surgem nesta agenda.
não consigo encontrar uma única hora
em que não estejam presentes o sangue e o fogo.
a mão desaparece. desaparece apesar do segredo.
a veste alcança o universo. a paixão
revolve a legenda que procuramos colocar
junto do mapa para conseguirmos encontrar o destino.
o friso estoura. quebra cada um dos selos
desta vinha e deste campo. um outro mar
a cidade que vemos. a dança e a morte
nos degraus do altar.

nenhuma celebração nos redime. a tinta esconde
apenas um pigmento mais antigo. que nome possuo?
grande, talvez, a linguagem dos pássaros e das pedras,
do tronco desta árvore, da lombada deste livro
em que escrevo sem cessar. tudo dissolvo com o tempo:
a minha mão abençoando o vazio, a tua mão
acariciando essa criança
crescida demais para a idade, a mão do pastor
a semear insectos nas águas e no futuro, a mão
do mártir atada à distância, os estigmas do fogo
nessa mão que segura a morte e a vida.
tudo dissolvo.
só assim sei reunir as cartas que escrevi:
respigo primeiro, procuro depois a essência –
uma sombra, o milagre do reencontro,
a resistência e o desejo, a assinatura e o alimento.
a autópsia revela algumas palavras no estômago.
algumas palavras. o coração aberto sobre a cama.
a língua recolhendo na carne e na pintura
o escopro e o cinzel para fabricar
o sopro e a memória.

melodia
[Portalegre]


subimos por fim até ao firmamento
na dor cantada nesta noite
em que as palavras elevaram (no seu lamento)
a celebração da luz, atributo da voz e do tempo.


Gaspar, o entalhador, lembrou ainda a Afonso, contemplando:
não viste de antemão o percurso desta melodia.
acompanhou no entanto o nascimento das colunas,
o cruzar das abóbadas, as estrelas
que semeaste por todo este mundo.
ficaste, sustentando o lugar da música,
aguardando todos estes séculos
a sua chegada à tua arquitectura.


desculpa-me, Gaspar”, pronunciou Morales, el divino,
nenhum de nós esperou este momento.
de entre as notas, desde o local do nascimento,
aquela voz traçou uma outra veneração
entre a dor e a alegria.
imagens, altares, retábulos e resplendores,
a pintura nossa narrando a própria vida,
permaneciam na imperfeição
que só a palavra e a melodia conseguiram resgatar.


Stabat mater dolorosa...
a tua voz traduziu durante a noite
a angústia que nos conduz,
mas também a esperança,
lendo nos sinais o brilho no corpo e no gesto.
o perfume desce pelos teus ombros,
caminha pela encosta ao encontro do rio e da terra
.”

nenhum dos quatro respondeu:
nem Gaspar, nem Luis, nem Afonso
ou Fernão, sempre em silêncio.
as sílabas haviam nascido de um outro espaço,
de uma casa onde eram apenas o alicerce.
a (sua) obra ficara completa.
há porém um retábulo. uma pauta. permanecem ainda no início.
NOVOS LIVROS DE RUY VENTURA
Acabam de ser publicados no Brasil, em edição electrónica,
dois livros novos do coordenador deste blogue.
e
estão disponíveis no Arquivo de Renato Suttana.
Boas leituras!

No próximo mês encontrar-me-eis neste e noutros locais. Mas não aqui. Desejo-vos boas férias!



epifania


veios de luz atravessam a nascente.
asas e ventos dividem esse corpo –
o calor da pedra iluminando o coração.

a majestade dispensa esta viagem.
a nave (se existiu) desaparece
para ficar apenas fortaleza
que o fogo foi dobrando
e seccionando.

o carro avança
sobre o espelho de cinza
quando a tarde escurece?

a fonte divide a fortaleza,
dissolve essa sombra no oceano.

a voz da esfera
ouve-se na terra.
este corpo desaparece
no incêndio
das ondas.