terça-feira, 27 de abril de 2010

Cara Carmen: cometi a indelicadeza de te roubar este vídeo imperdível.

segunda-feira, 26 de abril de 2010



SECO NO MOLHADO





Sabe o que faz

recolhe-se no obscuro, desconhecido

não se deixa escapar

resigna-se

sabe o que faz

execra, insulta

ergue uma parede

suja, marcada

pintura fresca

cimentada, bloqueada

não sabe o que faz

ambiciona, procura, deseja, espera

não encontra

não sabe o que faz

mas vive a dizer que sabe.





Por Pedro Paulo
(Ler mais poesia sua em http://hermeticidadeconcisa.blogspot.com/)
Fotografia de Robert Parkeharrison



domingo, 25 de abril de 2010



AS ESCADAS DE INCÊNDIO

(Autor não identificado. Escadas de incêndio em ferro. Data desconhecida)




Há algo de indiscreto nesta fotografia



no brando sentar da tarde

um esgar de medo se descobre



é a interrupção de um muro



assim tão intestinal e exposto

neste rosto irremediável da cidade

encontrou-se ao que parece

a sua dimensão interior



aquela que mais fala aos seus habitantes

o belo que guarda em si



acontece muito nesta cidade de todos



começou no rosto a palavra

mas não foi morrer aí.





Por António Amaral Tavares
(Ler mais poemas desta série em http://vidraguas.com.br/wordpress/ )

sábado, 24 de abril de 2010



A COMPAIXÃO





Algum tempo depois alguns amigos

abeiraram-se de mim abeirado

do poço de onde só o eco vinha

aos meus apelos: disseram-me é em

vão pousando ternamente as mãos nos

meus ombros nos meus braços ternamente

as mãos nas minhas mãos que era melhor

desistir: rareavam os retornos

das quedas àquela profundidade.



Já em casa tive ao telefone outros

amigos amigos que vivem no

outro lado do mundo perguntando

como te sentes? dizendo que a viram

quase hesitante – alguns juraram mesmo

que ela hesitou – abeirada do poço

mas o poço varava o mundo e não

havia perto possuidor de

corda bastante para o meu resgate.



Afectei acreditar e também

que sabendo de todas estas coisas

era deveras menos infeliz.





Por António Gregório
Quadro de Edvard Munch

quarta-feira, 21 de abril de 2010



FUGIDIO





Vem em favos,

de suspense verde dura um átimo.

Num cicio silencioso

- solta-

se do ca-

cho –



Desliza maduro em meu rosto

o seu afago.





Por Fernanda Marra
(Ler mais poesia sua em http://mareseressacas.blogspot.com/ )

terça-feira, 20 de abril de 2010

APOCALIPSE, AGORA





Eis o arame do teu nome vibrando no nevoeiro. As palavras aladas de Homero enchem também os ouvidos das ruas, chamando por ti. É de manhã dir-se-ia o olhar ensonado dos pássaros, um lampejo de esperança, o cheiro primitivo do pão.
Abrem-se persianas. O piano de Schubert invade o corpo da música. Estremecem os gonzos da imaginação. Desaparecem assim abracadabra os noventa e sete apartamentos do Mário Bruno, as noventa e sete prisões dos coelhos mansos.
Contam que é uma festa no cais das colunas, com a chegada do primeiro remador.
Somos, finalmente, descobertos.
Já podes vir, meu amigo, vestido de pombo branco, comer o arroz integral da minha mão.
Se soubesses como é boa agora esta vida rústica, sem automóveis, sem helicópteros fiscalizando as pontes, os desesperos, os suicidas, sem neo-realistas e peixes de pântano congelado.
Já podes enroscar-te no meu tronco flectido, num acto solene de libertação do vento do amor. Acariciar a nuca dos jardins. Ternamente, como um pintor ingénuo




Por Manuela Parreira da Silva
Excerto vídeo de Apocalypse Now, de Francis F. Coppola

domingo, 18 de abril de 2010



O HOMICÍDIO


( Weegee. Assassinato em Hell’s Kitchen. 1944)





É a reportagem de uma morte



um homem jaz no passeio que outrora

o viu caminhar



na construção vã do seu orgulho

a cidade reclama vítimas



é mais funda a solidão nesta morte pública



o rosto no chão esmaga-se

por não poder cair mais



a pistola caída é um ponto final no abandono.






Por António Amaral Tavares
(Ler mais poemas desta série em
http://vidraguas.com.br/wordpress/)



algures aonde eu nunca viajei,alegremente além de

qualquer experiência,osteus olhos têm o seu silêncio:

no teu gesto mais frouxo há coisas que me prendem,

ou que eu não posso tocar de tão próximas que estão



o teu mínimo olhar há-de facilmente desprender-me

embora eu me tenha cerrado como dedos,

tu sempre me abres pétala a pétala como abre a Primavera

(tocando hábil,misteriosamente)a primeira rosa



mas se teu desejo for encerrar-me,eu e

minha vida fecharemos em beleza,de repente,

como quando o coração desta flor imagina

a neve em tudo cuidadosa descendo;



nada do que existe para ser sentido neste mundo iguala

o poder da tua extrema fragilidade:cuja textura

me submete com a cor dos seus domínios,

representando a morte e para sempre em cada alento



(eu não sei o que é que há em ti que fecha

e abre;apenas alguma coisa em mim entende

a voz dos teus olhos mais profunda que todas as rosas)

ninguém,nem mesmo a chuva,tem tão finas mãos





Por e.e. cummings
Tradução de Jorge Fazenda Lourenço
Quadro de Van Gogh

sexta-feira, 16 de abril de 2010



[TEM O POETA UMA FISGA]





Tem o poeta uma fisga

E um caroço de azeitona

E dele ninguém se pisga

Sem levar uma na mona



O poeta é como um puto

Não há muros que não salte

Nem árvore cujo fruto

Lhe negue o sabor de malte



E mesmo que o tempo passe

E na barba nasça neve

Em cada dia ele faz-se

E desfaz-se no que escreve





Por Xavier Zarco
Fotografia de Lewis W. Hine


IMINENTE ABISMO DAS DELÍCIAS




eu sei, eu percebo, eu pressinto. ela vai me pegar pelos olhos, me arrastar pelas pálpebras, me levar e me fazer cativo das suas inseguranças, da sua solicitude, do seu ninho. ela vai me enredar sem fios, vai me enredar pelo que não possui e pelo que necessita e pelo que eu não tenho a lhe dar. ela vai me consumir com disciplina, afinco, assiduidade. ela vai encomendar minha alma aos infernos, vai me fazer subir aos céus da boca, do quarto, aos céus – como se já fossem meus. vai me comer até ao tutano, vai me preencher de si, vai me embalsamar num casulo de carinho e braços e pélvis e gozo e comida na boca. e serei cada vez mais seu e mais meu e mais nada do que era. e vou crescer dentro dela. e não saberei mais gozar nem andar nem sonhar sem que ela esteja pelo menos num fiapo dos meus não-pensamentos e numa nesga do meu corpo.






Por Eugênia Fraietta
(Ler mais poesia sua em http://bichodesetecabecas-ge.blogspot.com/ )
Fotografia de Federico Bebber

quinta-feira, 15 de abril de 2010



BALADA DA ÉGUA AUSENTE





Uma oração pelo cowboy.

A sua égua fugiu.

Ele caminhará até a encontrar,

a sua querida, a sua vadia!

Os rios transbordantes,

as estradas inundadas,

as pontes destruídas, no terror da perda.

Não há nada que seguir,

nenhum lugar para ir.

Ela foi-se como o verão,

ela foi-se como a neve.

E os grilos partem-lhe o coração

com o seu cantar,

e o dia desaba-lhe em cima,

e a noite está toda errada.



Ele sonhou que ela passava

galopando.

E afastava os fetos,

e fazia um carreiro no meio da relva,

e moldava na lama

o ferro e o ouro

que ele pregara nos seus pés,

quando o senhor era ele.

E embora ela pastasse,

há um minuto atrás,

ele persegue-a toda a noite,

ele persegue-a todo o dia.

Cego para a sua presença,

excepto para comparar

a sua ferida agora

com o seu castigo depois.



Então em casa, no seu ramo,

na mais alta árvore,

uma ave canta,

subitamente.

O sol é quente,

a suave brisa corre

nos salgueiros junto ao rio.

O mundo é doce

o mundo é grande.

E ela está ali, onde a luz

e a escuridão se dividem.

O vapor eleva-se do seu suor.

Ela é grande, e é tímida.

Ela caminha na lua,

quando pisa o horizonte.



Ela vem à sua mão,

mas não está realmente domada.

Ela anseia ser perdida

e ele anseia o mesmo.

E ela vai fugir,

vai escapar, na primeira oportunidade.

Para se esfregar e se alimentar

na tenra erva da montanha.

ou dará uma volta

no mais elevado planalto,

onde não há nada por cima

e nada por baixo.

É tempo para o fardo,

é tempo para o chicote.



Assim ele se prende

à égua galopante,

e ela se prende a esse cavaleiro.

E não há espaço,

esquerda, direita.

E não há tempo,

dia, noite.

Ele inclina-se no seu pescoço

e murmura baixinho:

“Irei onde fores”

Eles tornam-se um,

apontam-se para a planície.

Nenhuma necessidade do chicote,

nenhuma necessidade do freio.



Agora o cimento desta união,

que a mantém apertada,

que a desfaz, em pedaços,

logo na noite seguinte,

alguns dizem que é o cavaleiro,

alguns dizem que é a égua,

ou que o amor é como o fumo,

irreparável.

Mas, diz Leonard:

“Deixa-a ir,

essa silhueta no grande céu do Oeste”

Por isso eu escolho uma música

e eles vão-se embora.

Eles vão-se, como o fumo.

Eles vão-se, como esta canção.





Por Leonard Cohen
Tradução de José Alfredo Marques
Música de Leonard Cohen

quarta-feira, 14 de abril de 2010



MÁCULA





Desprovido de mácula mancho o passo

com sangue: acetinado preço

do inocente declarado; o pecado

urdido em mortes se rebela

contra o antagonismo da verdade;

o sangue jorra minha vida esvaída

ao sentido de me dizer libertado;

maculo histórias em interpretações

despropositadas, reinvento atos

de coragem em paródias

prosódias



sarcasmo

desprovido em mácula.



O sangue cessa o alvor

do corpo despropositado.





Por Pedro Du Bois
(Ler mais poesia sua em http://pedrodubois.blogspot.com/ )
Fotografia de Robert Parkeharrison

domingo, 11 de abril de 2010



O EDIFÍCIO


(Charles Sheeler. Secretariado das Nações Unidas. 1951)







É vertical e monolítico



de lado as fachadas levantam-se cegas

como um espírito crescente



e paralelo



no alçado frontal a igualdade rigorosa

das janelas alinha-se no mesmo plano



irmão no espaço da cidade

está muito longe do mundo



este edifício



todos o sabemos.





Por António Amaral Tavares
(Ler mais poemas desta série em http://vidraguas.com.br/wordpress/)


FANTASMAS DA MADRUGADA





Até o vento curvar

meus sonhos

as lágrimas vieram por ti.



Musa e Deus!



Tuas sombras mapearam

um corpo ainda vago.



Ao apagar de luz,

agora, dormimos.





Por Carmen Silvia Presotto
(ler mais poesia sua e de outros em http://vidraguas.com.br/wordpress/ )
Imagem de AAT

sábado, 10 de abril de 2010



UMA HISTÓRIA DE AMOR





A história de Bosko e Amira –

fugindo de Sarajevo tentaram atravessar uma ponte

cheios de esperança de que do outro lado

o maldito passado aparecesse com novas formas

que tornassem possível a existência de um futuro para eles –

foi o acontecimento mediático da Primavera.

A morte estava à sua espera no meio da ponte.

O homem que puxou o gatilho usava uniforme

e nunca foi acusado de homicídio.

Toda a imprensa mundial escreveu sobre eles.

Artigos italianos falaram do Romeu e da Julieta da Bósnia.

Jornalistas franceses louvaram a inseparabilidade do amor

capaz de rasgar as fronteiras políticas.

Os americanos reconheceram neles o símbolo comum

de duas nações divididas por uma ponte.

Os britânicos viram os seus cadáveres como exemplo

do absurdo das guerras.

E os russos permaneceram em silêncio.

As fotografias dos dois amantes espalharam-se

na florescente Primavera.

Só o meu amigo bósnio Prsic

que protegia a ponte

foi forçado a ver como dia após dia

os vermes as falsas verdades e os corvos

devoraram os corpos inchados de Bosko e Amira.

Eu ouvi-o blasfemar

quando o vento primaveril trouxe do outro lado da ponte

o fedor nauseabundo da deterioração

e o obrigou a colocar uma máscara de gás.

Mas isto não o mencionou nenhum jornal.





Por Goran Simic
Tradução de Lp, Do trapézio, sem rede
Arte pormenor de Guernica de Picasso


PÁLPEBRA





Pedro Salinas

disse num poema

que não quer deixar de sentir

a dor da ausência

da mulher que ama

porque isso é tudo

o que dela fica:

a dor.

Não me recordo das suas palavras exactas.

Ele di-lo melhor que eu.

Eram outros tempos.

Salinas está morto.

A mulher que ele amava também.

Em breve o estaremos todos.

A vida é uma simples pálpebra.

Abre os olhos

e fecha-os.





Por Roger Wolfe
Tradução de Lp, Do trapézio, sem rede

quarta-feira, 7 de abril de 2010



A PRESENÇA DOLOROSA DO DESERTO





Teu nome é meu deserto

e posso senti-lo

incrustado

no meu próprio território

como uma pérola

ou um gesto no vazio

como o amargo azul

e tudo quanto há de ilusório.

Teu nome é meu deserto

e ele é tão vasto

seus dentes tão agudos

seus sóis raivosos

e suas letras

(setas de ouro e prata

nos meus lábios)

são o meu terço

de mistérios dolorosos.





Por Micheliny Verunschk

segunda-feira, 5 de abril de 2010



PRIMEIRO AMOR





Gostava muito dele

mas nunca lhe disse isso

porque a minha criada tinha-me avisado

se gostar de um rapaz

nunca lhe diga que gosta dele

se diz

ele faz pouco de si para sempre

os rapazes são maus

eu não era bela

nem sabia quem tinha pintado Os pestíferos de Jaffa

resolvi assim escrever-lhe cartas anónimas

escrevia o rascunho num caderno pautado

não sei hoje o que escrevia

mas sei que nunca escrevi

gosto muito de ti

e depois pedia a uma rapariga muito bonita

que passasse as cartas a limpo

eu acreditava que quem tinha uns cabelos

assim loiros e a pele assim fina

devia ter uma letra muito melhor do que a minha

agora que conto isto

vejo que deixo muitas coisas de fora

por exemplo que o meu primeiro amor

não foi este mas o Paulo

o irmão da rapariga bonita





Por Adília Lopes

domingo, 4 de abril de 2010



OS BAILARINOS


(Irving Penn. Companhia de Ballet, Nova Iorque. 1947)





Juntam-se solidões

neste retrato de conjunto



é uma cidade escondida

e lembram anjos longe dos olhares



os seus pés não tocam o solo

e os olhos não revelam

as riquezas raras que possuem



ocultam na rua o branco das asas



só os vê quem acredita.





Por António Amaral Tavares
(Ler mais poemas desta série em http://vidraguas.com.br/wordpress/ )

sábado, 3 de abril de 2010



MEIA-VERDADE, MEIA-MENTIRA





Juro dizer a meia-verdade

a meia-mentira

o centauro por inteiro



nada mais que a sedução da sereia

o passo em falso, verdadeiro

na beira de um desfiladeiro



juro com a mão direita

sobre a bíblia

e a mão esquerda abanando



em nome de Deus, de Zeus

de Oxalá ou da besta



juro que os que quiserem

somente a verdade

vão perder o melhor da festa





Por Ricardo Silvestrin
(Ler mais poesia sua e de outros em http://silvestrin.blogspot.com/)

sexta-feira, 2 de abril de 2010



SOBRE POSIÇÕES





Deparo-me com o engano do que sou

Fujo dos outros, mas as vitrines subornam:



espelhos

reflexos



adões

evas



josés

marias



Rede de vidas que me dissimulam:



la femme

the man



la donna

don juan



Assim travestida não me enganam…



Sorrio fatal à mulher não fêmea

ao homem não macho

e alço céus e infernos.



Recrio do inventado

revivo minhas criaturas

e me desenlaço dessa divisão.



Feito anjo não caído

sobreponho-me



Feito poeta

visto-me de humanidade.





Por Carmen Sílvia Presotto
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Fotografia de Robert Parkeharrison

quinta-feira, 1 de abril de 2010



A ELISABETH FOI-SE EMBORA


(com algumas coisas de Anne Sexton)





Eu que já fui do pequeno almoço à loucura

eu que já adoeci a estudar morse

e a beber café com leite

não posso passar sem a Elisabeth

porque é que a despediu senhora doutora?

que mal me fazia a Elisabeth

a lavar-me a cabeça

não suporto que a senhora doutora me toque na cabeça

eu só venho cá senhora doutora

para a Elisabeth me lavar a cabeça

só ela sabe as cores os cheiros a viscosidade

de que eu gosto nos shampoos

só ela sabe como eu gosto da água quase fria

a escorrer-me pela cabeça abaixo

eu não posso passar sem a Elisabeth

não me venha dizer que o tempo cura tudo

contava com ela para o resto da vida

a Elisabeth era a princesa das raposas

precisava das mãos dela na minha cabeça

ah não haver facas que lhe cortem o

pescoço senhora doutora eu não volto

ao seu antiséptico túnel

já fui bela uma vez agora sou eu

não quero ser barulhenta e sozinha

outra vez no túnel o que fez à Elisabeth?

a Elisabeth era a princesa das raposas

porque me roubou a Elisabeth?

a Elisabeth foi-se embora

é só o que tem para me dizer senhora doutora

com uma frase dessas na cabeça

eu não quero voltar à minha vida





Por Adília Lopes