(Maria Manuela Corte Real em Mumemo - Moçambique; foto cedida pela própria)
Já despertou para outra realidade? Já sentiu na pele o que é a falta de bens de primeira necessidade? A escassez de água, alimentos, medicamentos? E se o pouco que tivesse fosse arrastado por cheias? Quem vivia no Bairro Chamanculo, em Maputo, procurou sobreviver a tragédia das chuvas. Refugiaram-se em Mumemo, onde puseram mãos à obra para criar: Mumemo 1/2/3 – Fraternidade São Francisco de Assis. E porque estarei eu a contar-lhes isto? Porque a mais recente convidada do Clube das Mulheres Beiras esteve lá. Passo a passo, deixamo-nos viajar pela sua história de vida.
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A menina Maria Manuela Corte-Real considera-se mais beirã ou cidadã do Mundo?
Sou uma beirã de gema que abraçou o Mundo (sorriso). Nasci no Sátão, um meio pequeno e tranquilo, e cresci no seio de uma família humilde. Tinha um padrasto, mas não gostava dele, nem queria viver com ele. Por isso, não deixei a minha casa de infância até casar.
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E com o casamento, surgiram algumas mudanças?
Claro, primeiro pertinho: Aguiar da Beira. Entretanto, tive dois filhos: um rapaz e uma rapariga. Como nas aldeias, só havia a 4ª classe e eu queria que os meus filhos tivessem estudos, pus o meu mais velho no Colégio Via Sacra, em Viseu, em regime de internato. Mas ele não se sentia bem, custava-lhe a distância… Então, desafiei o meu marido: “Ele não estuda mais e vem para junto de nós ou vamos para Viseu para o bem dele”. E lá fomos.
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E aí irrompe o desejo de trabalhar com crianças?
Este desejo já estava entranhado em mim desde nova.
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Quando concretiza esse sonho?
Tinham passados poucos meses depois do 25 de Abril e nada de trabalho. Chorava muito porque estava sozinha em casa: marido no trabalho, filhos na escola, casa construída, e eu inactiva. Arregacei as mangas e criei uma creche. Eduquei lá muita criança e dei trabalho a quem precisou. Ocupar-me de crianças desde as 7h da manhã, era uma felicidade enorme para mim. Preenchia-me de tal forma, ninguém imagina.
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(Crianças do Bairro de Mumemo - Moçambique; foto cedida por Manuela Corte Real)
Até aparecerem nuvens no seu Paraíso?
É verdade: a doença de Alzheimer do meu marido e o meu cancro do colo do útero. Naquela altura, sabia-se muito pouco acerca da Alzheimer e nem se falava disso. Durante 10 anos, andamos às voltas com tratamentos para outros males. Eu ajudava-o e tínhamos enfermeira ao domicílio. Mesmo assim, fazia questão de manter a casa num brinco. Quando ele deixou de trabalhar, por coincidência ou não, deram-nos outra médica. Foi uma luz nas nossas vidas. Os melhores neurologistas de Coimbra examinaram-no e caiu o veredicto: Alzheimer. Foi difícil, mas tentei ao máximo dar-lhe toda a qualidade de vida possível até nos deixar. Ele faleceu 5 dias depois do casamento da filha. Acho que ele pressentiu porque nesse dia, ele estava na cadeira de rodas, tranquilo, estávamos prestes a dar-lhe a refeição por injecção. Subitamente, ele ganhou forças e comeu com os talheres como se nada fosse. Foi a prenda que ele nos ofereceu antes de partir…
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E a sua batalha?
Depois veio a minha vez de ser eu própria a lutar contra uma fatalidade. Aos 55 anos, estava muito desgastada com a morte do meu marido, mas mesmo assim ia trabalhar para a creche. Passado um ano, fui ao ginecologista. Notícia: Cancro do Colo do Útero em estado avançado. Pensei: “O quê? Eu estou muito cansada mas é do trabalho. Já fiquei caída debaixo de um pinheiro e quebrei duas costelas, e agora isto?”. Fui logo internada para uma catrefada de exames. Depois quis dar-me um momento só para mim antes de enfrentar outros. Fui para Fátima sozinha, rezei, cantei, meditei, nem dormi…
De volta à casa, fui ao hospital com os meus filhos. Acabei por lhes revelar o que tinha, explicando-lhes a operação no IPO de Coimbra. A cirurgia foi demorada porque me retiraram tudo. A minha filha esteve uma semana comigo, dando-me apoio contínuo. Fiz radioterapia intra-vaginal e medicação. O meu corpo rejeitava isso e nem me segurava em pé. Cortei o cabelo e vim para Viseu com a condição expressa de não receber visitas. O Dr. Santos Paulo e uma enfermeira foram os meus amigos nessa luta. Fiz um tratamento experimental e deu resultado. Nas piscinas do Fontelo, pratiquei hidroginástica com uma professora incrível, a quem muito agradeço, porque me amparava para entrar e sair da piscina, escolhia os exercícios em função do meu problema: uma bênção.
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Na próxima 4ª, não perca a 2ª parte: Maria Manuela foi voluntária em Moçambique!!!