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quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Especial Clara Nunes - Parte 5 (Final)

Última morada


Recuperada do baque e da cirugia, Clara voltou à cena no desfile da Portela no carnaval de 1980. Em seguida, deu-se sua aproximação com Chico Buarque, que a convidou a participar de uma caravana de artistas que se apresentaria em Angola. Durante a viagem, os dois se tornaram amigos e Clara pediu uma música ao compositor para incluir no seu próximo disco. O repertório já estava praticamente fechado quando Chico entregou-lhe "Morena de Angola". A canção foi o grande sucesso de Brasil Mestiço e tornou-se, para sempre, mesmo depois que o próprio Chico a gravou, associada a Clara. No clipe da música gravado para o Fantástico a cantora apresentou seu novo visual, com um penteado de inspiração afro-brasileira idealizado pelo maquiador Guilherme Pereira. A participação de modelos caracterizados como nativos africanos dançando em meio a grandes plantações evoca a realidade do continente. A imagem de Clara dançando e cantando é uma das mais fortes lembranças que se mantêm no imaginário dos fãs da cantora.



Puxado pela canção que transformou o disco em mais um grande sucesso na carreira da cantora e rendeu-lhe o cobiçado Troféu Roquette-Pinto, Brasil Mestiço trazia mais uma vez composições de Candeia ("Dia a dia", em parceria com Jaime, e Regresso"), Nelson Cavaquinho ("Ninho Desfeito", em parceria com Wilson Canegal), quatro de Paulo César Pinheiro ("Meu castigo", "Sem companhia", com Ivor Lancellotti; "Brasil mestiço santuário da fé", com Mauro Duarte; e "Estrela Guia", com Sivuca). O disco foi levado aos palcos em um espetáculo intitulado Clara Mestiça, no qual a cantora foi acompanhada pelo Conjunto Nosso Samba acrescido de um naipe de metais. Pode-se sentir o clima do espetáculo neste vídeo de "Peixe com coco", um samba rasgado de Alberto Lonato, Josias e Maceió do Cavaco, que se converteu no outro grande destaque do disco.



Na esteira do sucesso do álbum e do show, a cantora entrou em estúdio novamente para gravar Clara. Ao lado de Nação, que seria o último da carreira da cantora, é um dos melhores representantes da riqueza e da diversidade de ritmos e gêneros musicais brasileiros interpretados pela cantora. As vendas, entretanto, já não repetiam os grandes êxitos do passado. Em 1978, Maria Bethania superou a marca de 1 milhão de discos vendidos com Álibi, número jamais alcançado até então por qualquer outra intérprete na história da música brasileira. A baiana consolidava-se como a cantora de maior sucesso comercial do país enquanto alguns veículos de mídia alardeavam o declínio nas vendas dos LP's de Clara. A cantora, como de costume, não se deixou abater. Reconheceu a queda, mas justificou: "prefiro vender 300 mil cópias a 600 mil, com uma proposta mais consistente do ponto de vista do repertório". E realmente, além do onipresente samba, os repertórios de Clara e Nação trazia afoxé, ijexá, congada e forró.

Alguns anos depois de ter se apresentado no Midem, em Cannes, Clara foi convidada a voltar à Europa. Agora, se apresentaria na Alemanha e seria novamente aclamada por público e crítica. "Portela na Avenida", grande sucesso de Clara levava os estrangeiros ao êxtase. Era o princípio de uma carreira internacional. Em agosto de 1982, Clara chegava ao Japão, onde, além de fazer shows, gravou um especial para a televisão japonesa.



Depois do Japão, Clara se apresentaria ainda em Cuba, integrando mais uma caravana organizada por Chico Buarque. De volta ao Brasil, gravou o clipe de "Nação" para o Fantástico e começou a se preparar para o carnaval, tendo programado uma cirugia plástica para a retirada de varizes para logo depois da folia. Embora já houvesse chegado aos 40 anos, Clara mantinha-se uma mulher exuberante, como se pode ver no clipe de "Ijexá", último gravado pela cantora, em Salvador. Mas as pequenas imperfeições estéticas em suas pernas feriam a sua vaidade. Em 5 de Março, Clara deu entrada na Clínica São Vicente para submeter-se à cirugia. Auto-suficinete, a cantora chegou sozinha dirigindo o próprio carro. Uma suposta reação alérgica causada pelo anestésico fez com que Clara sofresse uma parada cardíaca que redundou em um estado de coma e conseqüentemente em morte cerebral. A cantora ficou 28 dias nesse estado, causando uma comoção nacional. Os fãs faziam vigília na porta da clínica. Teses sensacionalistas, as mais estapafúrdias, eram levantadas pela imprensa até a sua morte em 2 de abril de 1983.

Como última homenagem do Blog do Pindzim, apresentamos esta colagem de clipes que terminam com a imagem emblemática de Clara, em vestes alvas, entoando versos de "Conto de Areia": "era um peito só, cheio de promessa, era só..."

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Especial Clara Nunes - Parte 4

Guerreira da esperança


Em 1977, o disco Canto das Três Raças foi levado aos palcos em um espetáculo homônimo no recém inaugurado Teatro Clara Nunes, um empreendimento bancado pela própria cantora em parceria com o marido Paulo César Pinheiro, até hoje em funcionamento no Shopping da Gávea, no Rio de Janeiro. Além das canções presentes no disco, Clara apresentava no show músicas de Caetano Veloso, Chico Buarque, Mauricio Tapajós, Nelson Cavaquinho e Paulinho da Viola que havia gravado ao longo de sua carreira. A partir do repertório, Clara procurava se afastar do rótulo de "cantora de samba" para consolidar-se como uma cantora de música popular brasileira sem restrições de gênero e estilo. Embora o espetáculo tenha sido mais um grande acerto da cantora em sua carreira, os mesmos críticos da Veja e do Jornal do Brasil encontraram motivos para criticá-la.

No final do ano, foi lançado As Forças da Natureza, disco repleto de músicas que se tornaram clássicas, com destaque para os sambas "As forças da natureza", de Paulo César Pinheiro e João Nogueira, "P.C.J. (Partido Clementina de Jesus)", de Candeia, "Coisa da Antiga", de Wilson Moreira e Nei Lopes, "Coração Leviano", de Paulinho da Viola, e "Palhaço", de Nelson Cavaquinho. Em "Senhora das Candeias", dos onipresentes Romildo e Toninho, "Sagarana", de Paulo César Pinheiro e João Aquino, e "Fado Tropical", de Chico Buarque e Ruy Guerra, Clara segue por veredas outras que não o samba e em "À flor da pele" apresenta sua primeira música como compositora, em parceria com Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós, na qual ela criou a melodia.

Com mais um sucesso nas ruas, Clara foi convocada pela EMI para recepcionar o Príncipe Charles nos novos estúdios da gravadora localizados na rua Mena Barreto, em Botafogo, no Rio de Janeiro. O detalhe é que ela não falava inglês. Problema nenhum, o que importava era que Clara era a mais popular cantora do casting da EMI Brasil. Em seguida, integrou o show coletivo Sabor bem Brasil que cruzou o Brasil de Norte a Sul, ao lado de Luiz Gonzaga, Altamiro Carrilho, Waldir Azevedo e João Bosco, entre outros.

A notícia de uma nova gravidez obrigou-a a abandonar o espetáculo, mas não a impediu de entrar em estúdio para gravar Guerreira, cuja faixa-título composta por João Nogueira e Paulo César Pinheiro apresenta traços da personalidade combativa e lutadora de Clara. O disco ainda não estava na rua quando pela segunda vez a gravidez foi interrompida prematuramente. Apesar do enorme baque, o show tinha que continuar. Em outubro, a cantora gravou um clipe de Guerreira nas Cataratas do Iguaçu para divulgar o disco no Fantástico.



O fim de 1978 trouxe mais uma má notícia para Clara: a morte de Candeia. O compositor portelense fora um dos primeiros a acolher a cantora no seio do samba e teve suas músicas gravadas por Clara em muitos discos. Guerreira trazia "Outro recado", parceria entre o compositor e Casquinha, e o disco seguinte, Esperança, traria outras duas em parceria com Jaime: "Minha Gente do Morro" e "Ê favela". Antes de entrar em estúdio para gravar seu novo disco, Clara fez uma participação em Marçal interpreta Bide e Marçal, homenagem à dupla de compositores que participou da fundação da escola de samba Estacio de Sá, uma das mais tradicionais instituições do samba carioca, idealizada pelo filho do segundo, o Mestre Marçal. Veja abaixo depoimento da cantora falando sobre sua participação no disco



O ano de 1979 começou com uma viagem à África onde a cantora se apresentou ao lado de João Nogueira que a impediu de desfilar pela Portela. De volta ao Brasil, ela se empenhou em participar da fundação do Clube do Samba, um movimento pela valorização e o reconhecimento da música brasileira, uma vez que o país vivia a febre das discotecas e da disco music impulsionada pelo grande sucesso da novela Dancin Days, exibida na TV Globo.

Foi com esse espírito de representante da música popular brasileira na grande mídia e sob influência da triste realidade africana que Clara gravou Esperança. Na capa, a cantora aparece de mãos dadas com duas crianças humildes moradoras de uma favela no bairro da Saúde, localizado na região portuária do Rio de Janeiro, transmitindo uma mensagem de fé na renovação que emana do povo em sua luta pela sobrevivência, em suas manifestações culturais, mesmo quando condenado a viver em condições de pobreza degradante. Calcado em uma sonoridade marcadamente afro-brasileira, muitas músicas de Esperança retratam o viver das pessoas mais pobres e humildes. Porém, a primeira música a estourar e que levou ao delírio a multidão que compareceu ao show de lançamento do disco no Pavilhão de São Cristovão, quando Clara a executou acompanhada de um de seus compositores, foi "Feira de Mangaio", de Sivuca e Glória Gadelha.



Na ocasião do lançamento de Esperança, Clara estava em período de gestação pela terceira vez e acreditava que daquela vez a gravidez finalmente iria vingar. Mas o mioma em seu útero havia crescido, provocando mais um aborto espontâneo. Para enterrar de vez seus anseios maternais, o crescimento do mioma obrigou-a a se submeter a um cirugia para retirada do útero. O disco repetiu o sucesso dos anteriores emplacando outros sucessos, como "Banho de Manjericão", de João Nogueira e Paulo César Pinheiro, e "Na linha do mar", de Paulinho da Viola, mas, emocionalmente, Clara passava por um momento delicado.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Especial Clara Nunes - Parte 3

Claridade
O sucesso do espetáculo Brasileiro – Profissão Esperança foi arrasador. Foram 127 apresentações entre setembro de 1974 e abril de 1975. Ao mesmo tempo, Alvorecer se tornava o maior sucesso de vendas da carreira de Clara até então. Vivendo um momento de glória, Clara finalmente se sentiu completamente realizada ao casar-se com Paulo César Pinheiro. A sintonia afetiva que havia entre os dois estendeu-se ao campo profissional e foi determinante para a carreira artística de um e de outro.

Porém, Paulo César não quis se envolver diretamente na produção de Claridade, primeiro disco gravado por Clara após o casamento. Contribuiu apenas como compositor em parcerias com Guinga (“Valsa de Realejo”) e João Nogueira (“Bafo de Boca”). O violonista Hélio Delmiro assumiu a produção e se empenhou em montar um repertório impecável que reuniu composições de Cartola (“Que seja bem feliz”), Nelson Cavaquinho (“Juízo final”), Ismael Silva (“Ninguém tem que achar ruim”) e dos portelenses Monarco e Walter Rosa (“Vai amor”), Alberto Lonato (“O sofrimento de quem ama”) e Candeia, presente com duas composições: “O último bloco” e “O mar serenou”. Esta última foi um dos grandes sucessos do disco – que superou a marca de 500 mil cópias vendidas – ao lado de mais um hit da duplaRomildo e Toninho - “A deusa dos orixás”.



Paulo César Pinheiro já era um letrista reconhecido quando ele e Clara se apaixonaram. Suas parcerias com Baden Powell haviam feito grande sucesso na voz de Elis Regina (“Lapinha”, “Vou deitar e rolar”, “Aviso aos navegantes”). Embora não tivesse experiência como produtor, assumiu, naturalmente, a produção executiva dos discos de Clara a partir de Canto das três raças, além de assinar a faixa título, que abre o disco, em parceria com Mauro Duarte. Embora não haja em Canto das três raças nenhum outro grande sucesso, talvez “Lama”, também de Mauro Duarte, o disco repetiu a vendagem do antecessor e a temporada de lançamento, no Teatro João Caetano, no centro do Rio, confirmou no palco a comunhão entre a cantora e o seu público devotado.

Assista abaixo uma versão de “Canto das três raças” na voz do próprio Paulo César.



Show e disco renderam vários prêmios a Clara: cantora do ano pela crítica, mais popular intérprete brasileira pelo público e o Troféu Imprensa foram alguns deles. A incompreensão – ou má vontade, ou incompetência mesmo – de alguns críticos de publicações importantes como a Veja e o Jornal do Brasil, que a despeito do enorme sucesso popular da cantora, ousavam fazer restrições ao seu trabalho, não tiravam a felicidade da cantora. A única coisa que faltava para Clara era a confirmação de uma tão esperada gravidez e ela veio no fim do ano de 1976. Orfã desde muito cedo, Clara sempre prezou pelos valores familiares. Sonhava em ser mãe para poder se dedicar à criança, nutri-la com carinhos e cuidados que ela mal chegou a ter. Porém, este seria um desejo jamais realizado devido a existência de miomas em seu útero que impediam qualquer gravidez de ir adiante.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Especial Clara Nunes - Parte 2

O samba é meu dom

O fracasso comercial de Você passa e eu acho graça desnorteou ainda mais a jovem Clara Nunes e também os diretores da Odeon. E o disco seguinte, A beleza que canta é um reflexo perfeito da falta de rumo da carreira da cantora. O samba foi posto de lado. Os arranjos ficaram mais leves sem, no entanto, perder a imponência. No repertório predominam canções românticas, como no disco de estréia, misturadas a três composições do versátil Carlos Imperial, que assina a assistência de produção. Também é neste disco que Clara flerta com a Jovem Guarda em duas músicas de importantes compositores do movimento: "Gente boa", de William Prado, e "Graças a Deus", de Fernando Cesar. A capa é o mais perfeito retrato de tais contradições: traz uma Clara sorridente, vestindo calça e colete de couro sobre uma camisa social branca fechada até a gola. Quem sabe uma tentativa de torná-la uma cantora para ser ouvida em família, ao mesmo tempo interessante à parcela mais recatada da juventude e aos pais saudosos das cantoras do rádio. Em pelno furacão tropicalista, o resultado não poderia ter sido outro: mais um tiro n'água. Porém, em "Guerreira de Oxalá", uma das composições de Imperial, já se ouve a voz da cantora limpa, sem impostação, com o timbre e o estilo vocal com os quais ela se consagraria em um futuro próximo.

Os homens da vida de Clara tiveram participação importante nos rumos musicais seguidos pela cantora. Seu futuro namorado, o produtor Adelzon Alves, seria o responsável por sua guinada para o samba, no ano de 1970. Após três discos insignificantes, tanto artística quanto economicamente, Clara estava decidida a tomar as rédeas de sua carreira. A experiência nos terreiros de candomblé e o sucesso de "Você passa eu acho graça" indicavam um caminho a seguir. Ao entrar em estúdio, ela estava firme em seus propósitos de explorar as raízes musicais afro-brasileiras. Para tanto, gostaria de ter como produtor Hermínio Bello de Carvalho, vetado pela gravadora em um jogo de bastidores orquestrado por Carlos Imperial. Por sugestão da própria Clara, Adelzon, radialista que comandava um programa dedicado ao samba na Rádio Globo, assumiu a produção do disco tendo em mente transformá-la na sucessora natural de, pasmem, Carmen Miranda. Clara Nunes é um disco de transição, ainda há uma ou outro arranjo orquestral, mas Clara empunha com garra o estandarte do samba. Também há um baião (“Sabiá”), um frevo (“Novamente”), gênero que poucas vezes foi cantado por ela, e duas vinhetas do folclore litorâneo (“Puxada da rede do xaréu”). Se o disco não foi um grande sucesso, também não repetiu os fracassos anteriores e ao menos uma música estourou: "Ê baiana", um samba rasgado com bateria acelerada. Clara finalmente encontrava uma identidade própria.

Na seqüência, saiu “Clara Clarice Clara”, disco que marca a entrada de Clara no universo dos grandes bambas do samba. Se o disco começa com “Sempre Mangueira”, de Nelson Cavaquinho e Geraldo Queiroz e a terceira faixa é “Alvorada no Morro”, de Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho, o maior sucesso foi Ilu Ayê (Terra da Vida), samba-enredo de Cabana e Norival Reis que deu à Portela o terceiro lugar no carnaval daquele ano.

Em 1973, Clara apresentou-se ao lado de Vinicius de Moraes e Toquinho no espetáculo Poeta, Moça e Violão. Quase ao mesmo tempo, era lançado Brasília, seu primeiro grande clássico. A faixa de abertura, “Tristeza pé no chão”, samba de Mamão, um compositor de Juiz de Fora, foi o grande sucesso de um disco que tem canções de Chico Buarque (“Umas e outras”), Nelson Cavaquinho mais uma vez, agora em uma parceria com Guilherme de Brito (“Minha festa”), e Dorival Caymmi em uma interpretação dramática de “É doce morrer no mar”. Na versão abaixo de “Quando vim de Minas”, também presente no disco, Clara interpreta a canção de Xangô da Mangueira entre Martinho da Vila e Dona Yvone Lara, cuja voz se faz ouvir no coro. Em estúdio, ela inseriu um “ora veja, Chilau” entre os versos do refrão, como quem diz: “mano velho, sua irmã agora é uma estrela”. Clara se consolidava como a mais popular cantora brasileira.

Logo, seria uma estrela internacional. Em janeiro de 1974, Clara se apresentou no MIDEM, em Cannes, e arrebatou o público francês. Sua performance no palco, acompanhada pelo conjunto Nosso Samba, está registrada na capa de Alvorecer, disco que sucedeu Brasília. Puxada pelo sucesso de "Conto de Areia", a vendagem atingiu a impressionante marca de 400.000 unidades vendidas, uma cifra sem precedentes para uma cantora brasileira. Com a sua popularidade no auge, Clara era presença constante não só no rádio, mas também na televisão. Aqui ela interpreta "Meu sapato já furou" no programa Globo de Ouro.



No mesmo ano, Clara foi convidada por Bibi Ferreira a participar do espetáculo Brasileiro Profissão Esperança, ao lado do ator Paulo Gracindo. Tratava-se de uma homenagem ao jornalista e compositor Antonio Maria e à cantora e compositora Dolores Duran. Paulo Gracindo atuava como o cronista narrador enquanto Clara era responsável pelos números musicais em que interpretava canções dramáticas que nada tinham a ver com os rumos que sua música havia tomado. De certo modo, foi uma segunda volta por cima, pois o espetáculo permitiu que ela mostrasse todo o seu talento enquanto cantora e intérprete para além do universo do samba e da música popular. Foi então que ela conheceu Paulo César Pinheiro. Acometidos por uma paixão fulminante, os dois se casaram. Se o sucesso havia ampliado as liberdades de Clara dentro da Odeon, ao lado do marido ela assumiu autonomia total sobre as escolhas artísticas que iriam pautar sua carreita até o acidente que lhe tirou a vida.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Especial Clara Nunes - Parte 1

Quando eu vim de Minas


Consagrada em palcos mineiros, Clara Nunes resolveu trocar Belo Horizonte pelo Rio de Janeiro em 1965. Tratava-se de um passo necessário para quem almejava seguir a carreira musical. Contou com a ajuda do namorado Aurino Araujo que a hospedou em seu apartamento em Copacabana, no número 41 da rua Francisco Otaviano, onde já estavam instalados o cantor ligado à Jovem Guarda, Eduardo Araujo, irmão de Aurino, e o playboy Carlos Imperial, figura conhecida no meio artístico.

O terceiro lugar no concurso "A Voz de Ouro ABC" havia dado alguma projeção nacional a Clara. Isto aliado à força de alguns amigos fez com que Clara fosse encaminhada à Odeon, onde a diretora do departamento de divulgação da empresa, Alayde Araujo, a recebeu. Com o aval de Alayde, o diretor artístico da gravadora, Milton Miranda, resolveu apostar em sua conterrânea. Em 21 de julho de 1965, não muito tempo depois de ter chegado ao Rio, Clara entrou em estúdio para gravar "Amor quando é amor", de Othon Russo e Niquinho, canção lançada em um compacto simples e que posteriormente seria a primeira faixa do lado A do LP de estréia da cantora - A Voz Adorável de Clara Nunes -, cujo repertório era baseado em canções românticas com orquestrações grandiosas, estilo já há época um tanto fora de moda. Foi um fracasso absoluto, tendo somado apenas 3.100 cópias vendidas.

O número abaixo está presente no filme Os Reis do Iê-iê-iê, que marcou a estréia da dupla Renato Aragão e Dedé Santana no cinema.



É curioso que a cena reproduza o ambiente de um festival da canção em que Clara fica com o segundo lugar. Os festivais eram os grandes eventos musicais da época e serviram de palco para consagração dos artistas que acabariam entrando para a história da música brasileira. Não foi o caso de Clara. Poucos compositores acreditavam na mineira e menos ainda foram os que confiaram suas músicas para que ela as defendesse. Apresentando canções de compositores menores, Clara Nunes não obteve destaque durante a era do festivais. Invariavelmente, as músicas que interpretava não ficavam entre as primeiras colocadas. Pior, raramente chegavam às finais. "Sou filho de rei", de João Mello e Fernando Lobo, foi uma das raras canções com a qual ela alcançou a final, embora não tenha ficado nem entre as cinco primeiras colocadas. Foi em 1969, no V Festival da Música Popular Brasileira, em que "Sinal Fechado", de Paulinho da Viola, saiu consagrada como a grande vencedora. Veja a apresentação de Clara no festival:



Antes deste festival, ainda no ano anterior, Clara havia obtido seu primeiro sucesso, não sem o auxílio providencial, ainda que a contragosoto, do famigerado Carlos Imperial. Pressionado pelo amigo Aurino Araujo, Carlos Imperial resolveu ceder um samba que havia composto para Clara gravar. No intuito de conferir autenticidade à música, Carlos Imperial providenciou uma reunião com o bamba Ataulfo Alves para lhe apresentar a Clara e também à canção. Ataulfo ficou encantado com a cantora, fez alterações em um ou outro verso e terminou por assinar, em parcerica com Imperial, "Você passa, eu acho graça". A canção foi inscrita no festival O Brasil Canta no Rio, promovido pela extinta TV Excelsior. Imperial se encarregou do esquema de divulgação radiofônica e a música tocou bastante. A interpretação de Clara classificou a canção para a grande final, em que foi defendida pelo próprio Ataulfo. Mesmo estando entre as favoritas, "Você passa, eu acho graça" conquistou apenas o quinto lugar. Mas, pela primeira vez, Clara conseguia uma relativa projeção. E foi cantando um samba.

Bem, isto é o que conta Vagner Fernandes em Clara Nunes - Guerreira da Utopia. Confira abaixo a versão da cantora para a história, na qual ela faz apenas uma breve menção a Carlos Imperial e credita sua entrada no universo do samba exclusivamente a Ataulfo Alves.



Você passa e eu acho graça seria o nome do segundo LP de Clara Nunes, que conta ainda com outra composição da dupla Carlos Imperial e Ataulfo Alves ("Você não é como as flores"), mas a faixa-título não foi suficiente para garantir-lhe o sucesso. Embora tenha se configurado em mais um fracasso inapelável, neste disco, Clara fez sua primeira incursão para valer no universo do samba em músicas de compositores como Noel Rosa ("P'ra esquecer"), Martinho da Vila ("Grande Amor"), Darcy da Mangueira ("Cheguei à conclusão") e Chico Buarque ("Desencontro"), além da canção que dá nome ao LP. Tal opção, parece ter sido antes uma aposta comercial em função do relativo sucesso de "Você passa, eu acho graça" do que uma opção consciente da cantora ou de seus produtores. A produção musical seguiu privilegiando o canto empostado e os arranjos grandiosos, fiel ao conceito romântico no qual a cantora foi enquadrada pela gravadora. E mesmo contabilizando mais um fracasso, o terceiro disco de Clara Nunes não apresentaria nenhuma novidade em relação aos primeiros.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Livro: Clara Nunes - Guerreira da Utopia


Orfã de pai e mãe desde os seis anos de idade, caçula da prole de seis filhos de Manoel Pereira de Araújo e Amélia Gonçalves Nunes, Clara Francisca Gonçalves foi criada pelos irmãos mais velhos, José Pereira Gonçalves e Maria Pereira Gonçalves, mais conhecidos na pequena Caetanópolis como Zé Chilau e Mariquita. Na noite de 3 de setembro de 1957, em defesa da honra da irmã, ele assassinou a facadas o menor Adilson Alvarez da Costa, cujo pecado mortal foi expor a amigos supostas intimidades que havia tido com a bela menina Clara. Delatado pela vítima antes de desfalecer, não restou outra alternativa a Zé Chilau a não ser fugir. Na ausência do verdadeiro culpado, Clara assumiu a condição de ré perante o julgamento moral infligido pela população de Caetanópolis. O verdito? Foi condenada sem direito a apelação, excluída de toda e qualquer atividade social, e se viu obrigada a partir para Belo Horizonte. Se os primeiros tempos na capital foram de dificuldades e privações - trabalhava o dia inteiro em uma tecelagem e morava de favor em um barraco de três cômodos dividido com parentes distantes -, a tragédia que se abateu sobre a sua vida, e que ainda a acompanharia por alguns anos, foi decisiva para que ela viesse a ter a oportunidade de tentar a sorte como artista.

O primeiro do capítulo do livro do jornalista Vagner Fernandes emprega artifícios literários para colocar o leitor no centro do furacão que tomou de assalto a vida da menina Clara, então com 15 anos recém completados. Evento que, por vias tortas, foi definitivo para que ela se tornasse Clara Nunes, a cantora brasileira mais popular de sua época.

Clara Nunes - Guerreira da Utopia narra os primeiros anos da vida da cantora com riqueza de detalhes. O autor reporta os fatos como se tivesse acompanhado a gênese da família Pereira Gonçalves e a juventude de Clara. Em um segundo momento, a partir da mudança para Belo Horizonte, a narrativa abandona eventuais pretensões literárias e assume a objetividade jornalística que vai pautá-la até o fim. Vagner Fernandes dá voz a testemunhas fundamentais do ingresso da jovem no ambiente musical capital mineira, aos avalistas de seus primeiros contratos radiofônicos e àqueles que apostaram em sua consagração regional definitiva no concurso "A Voz de Ouro ABC". Os depoimentos de Aurino Araujo, primeiro namorado sério de Clara e que seria o responsável por facilitar sua mudança para o Rio de Janeiro, revelam a insegurança e os dilemas vividos pela cantora em sua chegada à antiga capital federal. Foi na casa que ele mantinha no Rio de Janeiro que Clara conviveu com Carlos Imperial, que, embora não acreditasse no potencial daquela "caipira", como ele costumava se referir a ela em conversas com o amigo, foi o autor de seu primeiro sucesso: "Você passa, eu acho graça". A essa altura, Clara já tinha contrato assinado com a Odeon, gravadora que lançou seu primeiro LP - A Voz Adorável de Clara Nunes -, cujas vendas foram um fracasso absoluto.

Estes são fatos mais ou menos notórios. As revelações mais interessantes que o autor faz a respeito deste período dizem respeito ao flerte indeciso que Clara travou com a Jovem Guarda - mais uma escolha infeliz haja visto que a febre musical do momento era a Tropicália, capitaneada por Gil e Caetano, cujas propostas estéticas e intelectuais ousadas empurraram para o limbo midiático os roquinhos de Roberto, Erasmo e sua turma -, às suas participações sem destaque nos diversos festivais da época, ao rolo com a ditadura por ter gravado "Apesar de Você" - em contrapartida teve que gravar o Hino da Olímpiado do Exército -, e à descoberta da umbanda, evento que de alguma forma seria um primeiro passo inconsciente rumo à consolidação da identidade artística e espiritual da cantora, até então kardecista.

A partir do momento em que Paulo César Pinheiro entra na vida da cantora, o autor afasta a narrativa do núcleo íntimo de Clara para recorrer muito mais à memória coletiva da época, à pesquisa bibliográfica e a pessoas não tão próximas, do que àqueles que conviveram diretamente com ela. Um pouco disso está explicado nas entrelinhas: depois do casamento com Paulo César, muito em respeito ao novo companheiro, Clara torna-se mais reclusa. O autor faz questão de sublinhar que não foi Paulo César, sozinho, o responsável por esta mudança de atitude. Provavelmente não foi mesmo. Sempre muito expansiva, frequentadora da quadra da Portela, das rodas de samba, dos terreiros de candomblé, da casa de amigos, Clara queria ter filhos, constituir uma família e havia encontrado em Paulo César o parceiro ideal.

Mesmo agora, muitos anos depois, ele parece negar-se a uma maior exposição da época em que foram casados. Pouco se fica sabendo deste período pelas palavras do ex-marido. Este escudo em nome de uma privacidade póstuma, mantém algumas lacunas a respeito da atividade musical da cantora a partir do momento em que Paulo César assume a produção de seus discos e, juntos, os dois amplificam a pesquisa de gêneros e estilos musicais brasileiros que Clara já vinha desenvolvendo.

Clara manteve ao redor de si ao longo da carreira um círculo de compositores fiéis como alguns bambas da Velha Guarda da Portela, Nelson Cavaquinho, a dupla Romildo e Toninho, Mauro Duarte, João Nogueira, assim como sempre foi acompanhada em suas apresentações ao vivo pelos músicos do Conjunto Nosso Samba, desde sua adesão ao gênero até os últimos shows. De sua relação com eles pouco se fica sabendo através do livro. É verdade que, por outro lado, o convívio com Chico Buarque ganha bastante espaço em suas páginas, assim como é esclarecedor o depoimento de Paulinho da Viola sobre uma amizade que na verdade se resumiu a encontros ocasionais e a apenas duas músicas dele gravadas pela cantora: "Na linha do mar" e "Coração Leviano".

Não soa verossímil também a idealização da personagem operada pelo autor em afirmações recorrentes subtraindo todo e qualquer defeito ou incongruência que Clara pode ter demonstrado em um ou outro momento de sua vida. Não é algo comum ao ser humano, quanto mais no meio artístico, e a rivalidade com Beth Carvalho, assunto que injustamente é o que tem rendido mais espaço na mídia a propósito do lançamento da obra, mesmo sendo o único contraponto a uma conduta sempre irrepreensível, serve como prova em contrário. Com isso não se pode dizer que Beth tenha razão em suas críticas, pois sempre foi e sempre será uma sambista de menor estatura diante da multiplicidade musical de Clara, independentemente de qual das duas tenha sido a primeira a gravar um samba ou se vestido de branco para cantar. Pelo contrário, soam ainda mais levianas quando se leva em consideração que Clara não está mais aqui para dar a sua versão da história. Beth recorre a fuxicos como esse para não ser esquecida em vida, pois há tempos sua música sobrevive de regravações moribundas. Postas lado a lado, as obras de uma e de outra falam por si. A História com H maiúsculo Clara Nunes escreveu cantando. Historinhas menores como a de Beth existem muitas por aí.

Nos próximos dias, aproveitando o lançamento deste belo documento à memória de Clara Nunes, o Blog do Pindzim prestará a sua homenagem revivendo alguns momentos musicais e curiosidades biográficas daquela que foi em sua época a mais popular entre todas as cantoras e, hoje, sem dúvida, ainda que não seja totalmente reconhecida por isso, é a maior influência, consciente, inconsciente ou, talvez, sobrenatural, sobre a nova geração de mulheres que vai buscar no samba e nos ritmos regionais brasileiros a inspiração para os seus cantos. Guerreira, todas devem reverência a você. E todos nós à sua música.

Oxalá, Clara Nunes.