Agora aviso quando um texto é ficção porque, quem me conhece, tem a incrível mania de achar que me coloco no que escrevo. Coloco, mas nem sempre e nem em tudo. Nos contos “Fascinação” e “Encantação”, não há uma palavra que tenha relação comigo e, ainda assim, tive que explicar, por exemplo, que a personagem do texto “Fascinação” não era eu.
Ao colocar os dois títulos juntos, “Fascinação” e “Encantação”, vejo que tenho fascinação, que me encanta, o nosso “ão”. Como dizem que a origem de tudo está na infância, lembrei-me de meu avô. Ele era grego, veio para o Brasil com 37 anos, ou seja, em idade já tardia para a assimilação de todos os fonemas de uma língua estrangeira. Eu tinha um gosto especial em pegar meu avô com uma palavra que ele não conhecia: a primeira vez que o peguei foi com a palavra “obsoleto”, ele não soube dizer o que significava. Certo, o assunto detonador foi o “ão”. Ele não conseguia dizer as palavras que tivessem o “ão”. Eu, netinha chata, ficava: “Diga pão, meu avô”. E ele: “Pon”. E eu: “Pão, pão, pão, tão fácil; diga João”. E ele: “Jon”. Não sei como ele me agüentava. Para meu querido avô, que de tão longe veio, dedico todos os textos que tragam “ão” no título.
Que não é o caso deste abaixo: um conto, ou uma crônica na tênue fronteira com o conto, intitulado “As sem-razões da paixão”. Pura ficção, está avisado. GD
Ao colocar os dois títulos juntos, “Fascinação” e “Encantação”, vejo que tenho fascinação, que me encanta, o nosso “ão”. Como dizem que a origem de tudo está na infância, lembrei-me de meu avô. Ele era grego, veio para o Brasil com 37 anos, ou seja, em idade já tardia para a assimilação de todos os fonemas de uma língua estrangeira. Eu tinha um gosto especial em pegar meu avô com uma palavra que ele não conhecia: a primeira vez que o peguei foi com a palavra “obsoleto”, ele não soube dizer o que significava. Certo, o assunto detonador foi o “ão”. Ele não conseguia dizer as palavras que tivessem o “ão”. Eu, netinha chata, ficava: “Diga pão, meu avô”. E ele: “Pon”. E eu: “Pão, pão, pão, tão fácil; diga João”. E ele: “Jon”. Não sei como ele me agüentava. Para meu querido avô, que de tão longe veio, dedico todos os textos que tragam “ão” no título.
Que não é o caso deste abaixo: um conto, ou uma crônica na tênue fronteira com o conto, intitulado “As sem-razões da paixão”. Pura ficção, está avisado. GD
----------------------------------------------------------------------------------------------------- AS SEM- RAZÕES DA PAIXÃO
Gerana Damulakis
Nem me pergunte sobre ela, sobre ele, sobre ambos. Não sei de nada. Para explicar as razões de uma paixão que não se realiza são precisos conhecimento e muito mais arte que qualquer psicologia possa achar factível nas palavras. No poema “As Sem-Razões do Amor”, Carlos Drummond de Andrade dá um show de entendimento e a última estrofe coroa o poema, coroa o sentimento, de forma única e, para dizer melhor, de forma completa. Trata, porém, do amor. Paixão é outra coisa.
Aqui, no entanto, não há palavras, versos, estrofes. Aqui há a paixão. Certo é que por vezes arrefece, depois volta. Nunca se tocaram, nem me pergunte qual a razão, mais uma vez garanto não saber. Um dia, faz anos, ele disse que teve uma paixão enrustida por uma amiga e em oportunidade surgida, não criada, calhou de ficarem a sós. Não trocaram uma palavra sobre sentimento ou sobre tesão, apenas se tocaram. Deste toque foram direto para um amasso total. Grudaram. Tinham represado muito desejo. Bastou tocar e explodiu. Excitante, claro que é excitante.
Pensando direitinho, acho que ele contou a historinha já sabendo que ela ficaria excitada, tentada a fazer igual, e a guardaria para sempre na memória. Não deu outra. Ela guardou na memória. O que intriga é a razão da paixão no ar entre os dois. Da parte dela, acho que vem da admiração, da maneira que ela imagina que ele sente as coisas da alma. Da parte dele, não vejo qual razão poderia ser; talvez física, talvez a expansividade dela seja atraente. Quem pode atestar as sem-razões da paixão?
Os anos foram passando e nada fora acrescentado ao suposto romance. Estava ali, entretanto. Estava ali o desejo. Ele ia envelhecendo, ela também obviamente. Mas ele tem duas décadas na frente dela e seu envelhecimento é mais visível nesta etapa da vida. Os pés-de- galinha ao redor dos olhos dele estão tão profundos. O olhar, todavia belo. No total, porém, ele não emanava atração, não tinha qualquer parte ou detalhe sensual. E como despertava essa coisa invisível e poderosa? Ela fica toda contente quando sente isso. E nem pensa em explicações. Quem pensa sou eu, quem matuta razões sou eu.
Um dia tudo retorna, a tensão no ar, ele sem as rugas no rosto, só a poesia na alma. Ela, querendo flutuar nas nuvens, nas nuvens – lugar onde apenas a paixão é capaz de nos colocar. Ela entra no escritório dele, fala coisas inteligentes, tenta impressioná-lo, tenta reter aquele olhar de admiração que voltou e, pronto, ela está totalmente enamorada outra vez. Ele pensa bastante no que não houve. Não sei se pensa no que pode haver. Será? Ele está velho e ela está velha. Continuamos sem entender as razões da paixão. Ano entra, ano se vai. E a vida está passando. Mas nós, seguramente, nos apaixonamos.
Gerana Damulakis
Nem me pergunte sobre ela, sobre ele, sobre ambos. Não sei de nada. Para explicar as razões de uma paixão que não se realiza são precisos conhecimento e muito mais arte que qualquer psicologia possa achar factível nas palavras. No poema “As Sem-Razões do Amor”, Carlos Drummond de Andrade dá um show de entendimento e a última estrofe coroa o poema, coroa o sentimento, de forma única e, para dizer melhor, de forma completa. Trata, porém, do amor. Paixão é outra coisa.
Aqui, no entanto, não há palavras, versos, estrofes. Aqui há a paixão. Certo é que por vezes arrefece, depois volta. Nunca se tocaram, nem me pergunte qual a razão, mais uma vez garanto não saber. Um dia, faz anos, ele disse que teve uma paixão enrustida por uma amiga e em oportunidade surgida, não criada, calhou de ficarem a sós. Não trocaram uma palavra sobre sentimento ou sobre tesão, apenas se tocaram. Deste toque foram direto para um amasso total. Grudaram. Tinham represado muito desejo. Bastou tocar e explodiu. Excitante, claro que é excitante.
Pensando direitinho, acho que ele contou a historinha já sabendo que ela ficaria excitada, tentada a fazer igual, e a guardaria para sempre na memória. Não deu outra. Ela guardou na memória. O que intriga é a razão da paixão no ar entre os dois. Da parte dela, acho que vem da admiração, da maneira que ela imagina que ele sente as coisas da alma. Da parte dele, não vejo qual razão poderia ser; talvez física, talvez a expansividade dela seja atraente. Quem pode atestar as sem-razões da paixão?
Os anos foram passando e nada fora acrescentado ao suposto romance. Estava ali, entretanto. Estava ali o desejo. Ele ia envelhecendo, ela também obviamente. Mas ele tem duas décadas na frente dela e seu envelhecimento é mais visível nesta etapa da vida. Os pés-de- galinha ao redor dos olhos dele estão tão profundos. O olhar, todavia belo. No total, porém, ele não emanava atração, não tinha qualquer parte ou detalhe sensual. E como despertava essa coisa invisível e poderosa? Ela fica toda contente quando sente isso. E nem pensa em explicações. Quem pensa sou eu, quem matuta razões sou eu.
Um dia tudo retorna, a tensão no ar, ele sem as rugas no rosto, só a poesia na alma. Ela, querendo flutuar nas nuvens, nas nuvens – lugar onde apenas a paixão é capaz de nos colocar. Ela entra no escritório dele, fala coisas inteligentes, tenta impressioná-lo, tenta reter aquele olhar de admiração que voltou e, pronto, ela está totalmente enamorada outra vez. Ele pensa bastante no que não houve. Não sei se pensa no que pode haver. Será? Ele está velho e ela está velha. Continuamos sem entender as razões da paixão. Ano entra, ano se vai. E a vida está passando. Mas nós, seguramente, nos apaixonamos.