sexta-feira, 31 de outubro de 2008
ARRANJOS
quinta-feira, 30 de outubro de 2008
PRÊMIO DARDOS
1- Anema & Core
2- Blag
3- Canto dos contos
4- Carlos Vilarinho
5- Cavaleiro de fogo
6- Da Condição Humana
7- Madame K
8- Max da Fonseca
9- Na borda da xícara - revista literária
10- Não leia!
11- poesia-sim-poesia
12- Primeira Necessidade
13-Pseudo-poemas
14- Vestígios da senhorita B
QUIÇA
um dia um poeta, cujos versos desconheço,
talvez tenha dito certas coisas que me esqueço
mas que sei serem tão óbvias que, todavia,
talvez jamais sejam escritas em juízo perfeito.
são coisas tão claras que me cegam, mas,
tão escuras que me assustam agora
e nas quais não quero pensar, apesar,
de que já as tenha falado de outro jeito.
quiçá estejam nas cogitações dos filósofos
quiçá estejam nos desígnios dos deuses
quiçá inscritas em cada nosso cromossomo
contudo, apenas os loucos e as crianças,
cuja inocência não se tenha corrompido,
são capazes de entender o desmedido.
Fred Matos é autor de Melhor que a encomenda (FUNCEB, 2006). Para ler mais poemas de Fred entre no seu blog http://eumeuoutro.blogspot.com/ , ou diretamente pela minha coluna nos "Favoritos".
terça-feira, 28 de outubro de 2008
SONATA AO LUAR
Hoje eu toquei somente para você.
Enlouqueceu, você dirá, como eu poderia escutá-la a toda essa distância? Não sabe você que os sons se propagam a quilômetros e se conservam no espaço, não só a imensas distâncias, como também, possivelmente, através de séculos? Dizem. Eu não sei se há verdade nisso, não entendo dos assuntos da Física, com certeza por isso é que eu tanto admiro os físicos. Mas alguém já afirmou que talvez se consiga ainda detectar alguns ecos das pregações de Cristo. Dois mil anos é muito tempo, eu não sei. Digamos que alguém tenha razão. Por que em minutos apenas, e não em séculos, a quilômetros muito mais curtos que a nossa distância até Jerusalém, os sons do piano não poderiam chegar a seus ouvidos?
Não, não sou delirante a ponto de crer em teses improváveis. Só consigo botar fé nas afirmações que me convençam. No entanto acredito que as pessoas se comunicam à distância, quando um fio imponderável se tece entre elas, uma interação amorosa. Certa vez li uns versos apaixonados, de cujo autor não me lembro e diziam: Não acredito que quando choras / não vejas que uma das tuas lágrimas é minha. O poeta falava da comunicação, até choravam a lágrima do outro. — São coisas de poeta, você dirá, mas poetas, meu amigo, são seres especiais, quase sempre têm razão.
Hoje recebi sua mensagem. Não foi preciso mais que um olhar rápido ao envelope, à sua caligrafia nervosa, uns garranchos riscados às pressas que me fizeram sorrir, àquele traço esquisito com o qual você grafa a minha inicial, para ter acesa aquela flama de cumplicidade muda. E a flama cresceu e me iluminou, iluminando todo o meu quarto, onde eu estava arrumando meus livros. Então, sua foto, que maldade! Sua foto. Não se envia foto para quem está com as mãos tão distantes do seu rosto. A quem está com as mãos frias pelo prolongamento no tempo de ausência. Ou se envia? Para que não se turve a imagem que se traz nas pupilas e o espaço ameace apagar, envia-se foto, com certeza.
Se eu disser que beijei o seu nome que assina a mensagem, ficará tão piegas! Muito mais que piegas, ficará tão ridículo! Por isso não direi. Não se usa mais beijar fotos nem cartas, mas na solidão do quarto, muitos dos pós-modernos que condenam românticos, certamente beijam cartas e fotos, porque amar ainda se usa de vez em quando, e sentir a alegria por se saber amado, ainda se usará por muito tempo.
Hoje estudei outra vez a Sonata ao luar. Não consigo mais tocá-la com a desenvoltura com que o fazia há vinte anos passados, por isso tenho que estudá-la muito, para compensar o tempo do silêncio. Mas hoje, tudo foi tão mais simples. A melodia fluía de mim como se a minha emotividade estivesse deslizando pelas teclas do piano. Sabe aquele trecho no qual eu ainda tropeço? Aquele trecho em que se troca a clave? Hoje não tropecei, hoje não perdi o compasso. Hoje eu quase fui parceira de Beethoven. Será que foi porque hoje eu estava tocando para você?
segunda-feira, 27 de outubro de 2008
ENSAIOS AMADORES... OU NÃO!
Os poemas “Vento” e “Velho guri” são apenas dois exemplos - há outros - que trazem uma complementação ao vigor poético do livro: representam, pois, a inclusão do peso do tempo. E vale dizer mais: dão conta da experiência dos sentidos e, portanto, da sensualidade, tanto as imagens plasmadas em um poema como “O amor”, quanto a fantasia em “Flor da pele”. A uniformidade estilística do livro de Letícia é sinal da segurança no seu fazer poético, porém, sinaliza igualmente a sua persistência no que acredita, sem a necessidade de experimentações várias. O que é o mesmo que dizer que Letícia tem uma maturidade que lhe é inerente e que se materializa no verso, na estrofe, enfim, no poema, pois que não o perde de vista. Sua intenção poética é lançar a emoção e a conseqüente sensação no papel; e, assim como nós fazemos diante de uma impressão que nos comove, a poesia de Letícia suspira... em êxtase!
FORÇA
Gláucia Lemos
Roubam meu deus, meu corpo,
minha hora do sono.
meu sangue roubam. E ruem
as sílabas sutis da minha prece.
O riso e o vigor que remanesce
rompem a fio, desfazem-nos em febre.
Só não podem roubar este meu rumo.
Este travo no dente que me impele,
esta trilha riscada em minhas veias,
este poder de ir de olhos vendados
e retomar o passo após o risco.
Só não podem roubar esta certeza
de que sou como o ímpeto dos rios.
Só não podem secar-me a correnteza.
sábado, 25 de outubro de 2008
MEU PRIMEIRO SÚBITO AMOR
Foto tirada por Gerácimos Damulakis, meu pai, propositadamente em preto e branco para aproveitar o raio de sol que atingia a meu irmão e a mim, conferindo um ar artístico à fotografia.
O FAROL DA BARRA
Numa pizzaria que fica na Marques de Leão, a dois passos do Farol, há uma foto antiga daquela área. Algumas casas, lembrando as antigas casas de veraneio de Mar Grande, uma pra cá, outra pra lá, e o Farol, como sempre sisudo, severo, de poucas palavras, indiferente às intempéries, ao rugido das ondas, às caretas do mar.Aquela área, então, era um nada. Alguns, poucos privilegiados tinham casa naquelas cercanias --- um lugar deserto, afastado da cidade, sem arruamentos talvez, com cercas de arame, capim, areia.
Tudo mudou.
Quando eu era menino, havia um gramado verde no terreno à frente do forte centenário, onde moravam o faroleiro e sua família --- o farol no alto de uma torre, no centro da construção, como todos os faróis. Nos domingos havia uma verdadeira festa nesse gramado. Crianças correndo, meninos empinando arraia, aproveitando o vento firme que vinha do mar, vendedores de algodão doce, pipoca, baleiros, uma fauna humana variada e alegre. Tudo isso sumiu. Primeiro, o gramado, com tanta gente pisando-o, o eterno Carnaval, comícios, encontros religiosos, tudo que promovem ali. Depois, a inocência daqueles tempos --- coisa que não volta mais.
Lembro as barras de ferro numa das encostas, o trapézio para os ginastas, quem era metido a forte. Os negros rochedos ainda estão por lá, talvez um pouco sujos, pichados aqui ou ali. E há as barracas de comida e bebida, o que não havia. Na praia só picolé, água de coco, rolete de cana. Quem quisesse comer que fosse para a sua casa. Beber, nem pensar. Era coisa pra boteco, bares de espanhóis, lugares onde as mulheres não entravam. Beber era só pra homem. Mulher tomava coca-cola. Quando muito, um vinho.
E havia a Sorveteria Oceania, com suas cadeiras de metal, os “sundaes” e “dusty millers” depois do filme (no Cine Oceania), e havia o corso de automóveis. Os burgueses, os filhinhos de papai mostrando suas viaturas, as camisas novas, cabelos ainda molhados --- as moças encostadas nos carros estacionados, como se estivessem numa vitrine.
Tudo isso acabou. Não há mais corso, nem cinema, nem sequer o teatrinho que também funcionou ali, no Edifício Oceania. O tempo passa, as pessoas passam, o vento passa e fica uma sensação de um certo vazio. Como se as coisas, as pessoas, os lugares não tivessem a mínima importância. Fica o quê? O vento que vem do mar, esse mar vezes raivoso nos meses de inverno, cinzento, plúmbeo, irado. Quando o vento, então, sopra mais forte, vira ventania, treina para furacão.
Fica a velha torre do Farol, um marco da cidade, uma espécie de Torre Eiffel dos pobres. Incólume, sempre a mesma, permanente. Que as modas não destroem, nem os governos, os façanhudos da Prefeitura. Tá lá, é um símbolo, um marco. Recebe os últimos raios do sol poente, as costas viradas para a turbulência da cidade, ônibus passando, toda a nossa confusão. Suas luzes iluminam o mar negro, vão às estrelas, saúdam a chegada da lua, o imenso rastro prateado, recebem a brisa fria que vem do mar como um refrigério.
Está lá, permanece, enquanto tudo gira à sua volta. A cidade se transforma, casas são derrubadas, tanta gente morre, tanta gente nasce. Está sempre lá, é como se fosse uma estátua, fosse feita de pura pedra.
Luiz Britto tem uma obra vasta, indo da crônica ao conto, da peça de teatro às memórias.
Foto "Farol da Barra", de twi, retirada do Flickr.
quinta-feira, 23 de outubro de 2008
LEMBRANÇA DE UM AMIGO DISTANTE
Carlinhos era meu melhor amigo. Eu era o melhor amigo de Carlinhos. Um dia nos apaixonamos pela mesma menina. Então Carlinhos e eu brigamos. Carlinhos passou a ser meu pior inimigo. Eu passei a ser o pior inimigo de Carlinhos. Mas, como não bastasse apenas sermos inimigos declarados, provocamos um duelo. Fazia-se necessário saber qual de nós era o mais forte.
Carlinhos era um menino muito magro. Não fiquei intimidado quando arregaçou a manga da camisa e me mostrou seu muque. Em resposta, mostrei-lhe o dedo médio, bastante rígido. Foram contar a meu pai que eu dera o dedo para Carlinhos. Por conta disso, levei uma surra.
Meu pai me batia sempre com o seu velho cinturão de couro. Pude sentir com os dedos as marcas decalcadas nas minhas costas. O meu pai nunca me batera tão forte. A partir daí, criou-se em mim um ódio especial por Carlinhos. Ódio que antes jamais sentira por alguém, e, agora, posso dizer, nem mesmo depois.
Zelito, o novo melhor amigo de Carlinhos, veio me dizer o local.
— Atrás da igreja. Daqui a pouco.
— Vou acabar com ele. Acabo com você também.
— Então vai ser você contra nós dois.
Fui eu contra eles dois. Apanhei de Zelito. Bati muito em Carlinhos. Porrada especial foi um murro que lhe acertei na cabeça. Gabei-me desse murro. Dona Juca, a mãe de Carlinhos, ficou indignada quando soube da briga.
— Ora, meu Deus, mas eram tão amigos!
— “Eram”, respondi. “Eram”, 3a pessoa do plural do verbo ser; pretérito “imperfeito”. Dei-lhe as costas.
— Ora, mas como “é” estúpido. “É”, 3a pessoa do singular do verbo ser, presente do indicativo. Hum!
Naquele tempo sabíamos conjugar verbos.
Namorei a menina alguns dias. Mas a conjugação parece que não foi perfeita e o namoro acabou. Carlinhos foi morar em outra cidade e isso faz... faz talvez uns vinte e sete anos. Nunca mais nos vimos. Soube que Carlinhos enveredou-se no mundo das drogas. Triste.
Engraçado. O que me faz escrever não é a lembrança de um amigo. Lembrança distante, porém, tão viva e rica em detalhes na minha memória. O que me faz escrever é o esquecimento. Esquecimento de um amor que foi maior que a amizade. Amor que não deixou marcas no meu coração. Amor que o tempo apagou.
O que me faz escrever, inesquecível amigo Carlinhos, é o nome. Me diga aí, meu velho, como era mesmo o nome da menina?
quarta-feira, 22 de outubro de 2008
É FICÇÃO
Ao colocar os dois títulos juntos, “Fascinação” e “Encantação”, vejo que tenho fascinação, que me encanta, o nosso “ão”. Como dizem que a origem de tudo está na infância, lembrei-me de meu avô. Ele era grego, veio para o Brasil com 37 anos, ou seja, em idade já tardia para a assimilação de todos os fonemas de uma língua estrangeira. Eu tinha um gosto especial em pegar meu avô com uma palavra que ele não conhecia: a primeira vez que o peguei foi com a palavra “obsoleto”, ele não soube dizer o que significava. Certo, o assunto detonador foi o “ão”. Ele não conseguia dizer as palavras que tivessem o “ão”. Eu, netinha chata, ficava: “Diga pão, meu avô”. E ele: “Pon”. E eu: “Pão, pão, pão, tão fácil; diga João”. E ele: “Jon”. Não sei como ele me agüentava. Para meu querido avô, que de tão longe veio, dedico todos os textos que tragam “ão” no título.
Que não é o caso deste abaixo: um conto, ou uma crônica na tênue fronteira com o conto, intitulado “As sem-razões da paixão”. Pura ficção, está avisado. GD
Gerana Damulakis
Nem me pergunte sobre ela, sobre ele, sobre ambos. Não sei de nada. Para explicar as razões de uma paixão que não se realiza são precisos conhecimento e muito mais arte que qualquer psicologia possa achar factível nas palavras. No poema “As Sem-Razões do Amor”, Carlos Drummond de Andrade dá um show de entendimento e a última estrofe coroa o poema, coroa o sentimento, de forma única e, para dizer melhor, de forma completa. Trata, porém, do amor. Paixão é outra coisa.
Aqui, no entanto, não há palavras, versos, estrofes. Aqui há a paixão. Certo é que por vezes arrefece, depois volta. Nunca se tocaram, nem me pergunte qual a razão, mais uma vez garanto não saber. Um dia, faz anos, ele disse que teve uma paixão enrustida por uma amiga e em oportunidade surgida, não criada, calhou de ficarem a sós. Não trocaram uma palavra sobre sentimento ou sobre tesão, apenas se tocaram. Deste toque foram direto para um amasso total. Grudaram. Tinham represado muito desejo. Bastou tocar e explodiu. Excitante, claro que é excitante.
Pensando direitinho, acho que ele contou a historinha já sabendo que ela ficaria excitada, tentada a fazer igual, e a guardaria para sempre na memória. Não deu outra. Ela guardou na memória. O que intriga é a razão da paixão no ar entre os dois. Da parte dela, acho que vem da admiração, da maneira que ela imagina que ele sente as coisas da alma. Da parte dele, não vejo qual razão poderia ser; talvez física, talvez a expansividade dela seja atraente. Quem pode atestar as sem-razões da paixão?
Os anos foram passando e nada fora acrescentado ao suposto romance. Estava ali, entretanto. Estava ali o desejo. Ele ia envelhecendo, ela também obviamente. Mas ele tem duas décadas na frente dela e seu envelhecimento é mais visível nesta etapa da vida. Os pés-de- galinha ao redor dos olhos dele estão tão profundos. O olhar, todavia belo. No total, porém, ele não emanava atração, não tinha qualquer parte ou detalhe sensual. E como despertava essa coisa invisível e poderosa? Ela fica toda contente quando sente isso. E nem pensa em explicações. Quem pensa sou eu, quem matuta razões sou eu.
Um dia tudo retorna, a tensão no ar, ele sem as rugas no rosto, só a poesia na alma. Ela, querendo flutuar nas nuvens, nas nuvens – lugar onde apenas a paixão é capaz de nos colocar. Ela entra no escritório dele, fala coisas inteligentes, tenta impressioná-lo, tenta reter aquele olhar de admiração que voltou e, pronto, ela está totalmente enamorada outra vez. Ele pensa bastante no que não houve. Não sei se pensa no que pode haver. Será? Ele está velho e ela está velha. Continuamos sem entender as razões da paixão. Ano entra, ano se vai. E a vida está passando. Mas nós, seguramente, nos apaixonamos.
terça-feira, 21 de outubro de 2008
CANTO DE EURÍDICE
Senta e escuta o orvalho no vale
e o verde do campo
enquanto contemplo a tua carne vertiginosa
e te falo sobre a vida
onde apenas os mortos sobrevivem.
Os sonhos, meu amado,
me faziam companhia durante o crepúsculo
e neles te encontrava,
o teu canto escutava,
mas te alcançar já não podia.
Pedi aos deuses que viesses em hora mágica,
quando a luz se avizinhasse
e me prendesse nos teus abraços,
que me lembrasse dos teus passos
e o sabor dulcíssimo do beijo.
Ofereci-me em sacrifício,
despi-me das fontes, das nascentes
e passei a mendigar pelos caminhos;
coroada de espinhos
vi a existência caindo sobre os pântanos.
Atirei-me ao fogo
e além do fogo nada mais conheci;
resisti à dor e a tudo que há de vil,
desejei adormecer
e adormecer também não pude.
Aceitei os desígnios divinos
e feito um pégaso preso ao arado,
entre as cinzas ardendo,
luzi meu próprio sofrimento;
recolhi-me ao tormento, insignificante.
Silenciei-me na insana luta
e frágil feito a flor do jasmineiro,
sôfrega, esperei por tua chegada
como se espera um deus
junto à tarde imaculada das madressilvas.
Dá-me agora, amor, o sabor da tua pele,
o prazer inenarrável do sorriso
e afasta dos olhos meus tanta amargura;
segura-me pela cintura
e toma posse do que é seu.
CONVITE DE LETÍCIA COELHO
SEM GUARITA
A saudade reside em meu portão.
Às vezes entro e saio sem notá-la.
Quando a encaro, porém, falta-me a fala.
Não há palavras para a solidão.
Terrível o lugar de seu plantão.
Sentinela invasora, não se abala.
Se entro ou saio, fuzila-me sem bala.
Caso contrário, prende-me no chão.
Tento ficar em casa em companhia.
Tento entrar e sair acompanhado.
Mas seu olhar me caça noite e dia.
Penso mudar de casa e dar um basta.
Mas nessas horas ela adianta o fado.
Mais se aproxima, e tudo mais se afasta.
domingo, 19 de outubro de 2008
ERSATZ
Em vez do ramo de flores
Que não te ofereço
Porque uma flor cortada
É um membro da terra decepado,
Ofereço-te um ramo de dores ardentes
Em amarelo iluminado.
São já tuas as flores
Em mim nascentes,
Porque em mim nada floresce
Que a ti não deva as sementes.
Manuel Anastácio é poeta, assina o blog Da Condição Humana (http://literaturas.blogs.sapo.pt/ ,ou use a entrada pelos meus favoritos).
Foto de marciookabe, flores numa Praça em Salvador, Bahia, retirada do Flickr.
sábado, 18 de outubro de 2008
SONETO DOS RESTOS
Cultivem outros requintadas flores,
exóticas, perfumes envolventes:
da corriqueira flor indiferentes,
em doçura de pétalas, nas cores.
Cultivem rubras rosas, seus ardores
ou as que, brancas, são evanescentes;
não as que são comuns, mas diferentes,
que para os olhos sejam esplendores.
Eu hei de cultivar, fiel assim,
flores selvagens que arranquei de mim
e que fizeram da ansiedade o leito.
Não são gardênias, lírios, alecrim,
são restos, vão chegando quase ao fim,
desamparadamente insatisfeitos.
17.X.08
Itapuã 5
Para os que não sabem, acima, local e data em que o poema nasceu e o n° da versão pela qual passou o poema em modificações. Considero como data a do nascimento.
Depois é o crescimento. Somos assim, nascemos num dia que nunca muda e depois temos um currículo. Este soneto, talvez ainda passe por modificações e aí teremos Itapuã 6,7,8 etc.
Tela "O Lago", de Tarsila do Amaral, de 1928. Retirado do site oficial http://www.tarsiladoamaral.com.br/
CONVITE
VENHAM PARTICIPAR DA DISCUSSÃO COM JOÃO HENRIQUE,
De políticas públicas de cultura.
Com quase três milhões de habitantes e um orçamento beirando os três bilhões de reais, a cidade de Salvador carece de uma política pública de inclusão cultural. Pensando nisso, os escritores Ildásio Tavares, Oleone Coelho Fontes e Antonio Lins, a pedido do prefeito João Henrique, prepararam um projeto denominado CULTURA E ARTE PARA TODOS, que será inserido no programa de governo do candidato e apresentado a artistas, intelectuais e produtores de cultura, em coquetel, no próximo dia 22 de Outubro, Quarta-feira, às 19 H, no Café Machiavelli (Pirâmide do Rio Vermelho) Rua João Gomes, 249. Rio Vermelho.
É CERTO?
Há alguns assuntos miúdos que são capazes de desestabilizar toda uma harmonia anteriormente construída. E há assuntos graúdos que derrubam por completo a teia urdida por uma existência atenta. O equilíbrio leva anos para ser logrado; a desarmonia se desfaz como bolha de sabão. Eu tento entender o mundo e sei que, ao fim e ao cabo, não adianta nem tem serventia porque logo não precisaremos mais entender as coisas e, ainda que estejamos aqui, tampouco serve a compreensão. Eis que se desmancham tão facilmente quaisquer edifícios de segurança, certezas, tranqüilidade.
Este é um discurso típico de quem desaprendeu como se vive — vale perguntar se alguma vez soube ou acertou viver — e sequer vislumbra a mais tênue esperança de certo dia vir a conseguir pelo menos, quando mais não seja a paz, pelo menos a completa tolerância quanto às desventuras, os dissabores, os acasos da vida.
É certo tomar conhecimento dos transtornos mais profundos da alma — não gosto da palavra “alma”, remete mais a fantasmas do que a espírito, estado anímico etc — , dizia eu dos transtornos absurdos da alma, da total inadequação à vida, talvez por conta da carência insuportável, da carência e do vazio, é certo ficar ciente de tudo isto?
sexta-feira, 17 de outubro de 2008
quinta-feira, 16 de outubro de 2008
O AUTOR DA OBRA-PRIMA O TAMBOR
PELOS UMBRAIS DA CATEDRAL
em cujas redações vivi um tempo de muita alegria.
A página branca na minha frente. Branca e em branco. Ainda não sei como vou usar este espaço generoso que se me oferece. Mas vou fazê-lo, sim.
Ando com saudade de escrever minha crônica, o que uma fase mais tumultuada me tem impedido. A gente se acostuma com todo fazer prazeroso.
Quando assinava coluna em jornal, a abertura da coluna era o melhor momento do trabalho, por ser a hora de redigir a crônica. Em seguida vinham os drops noticiosos que não requeriam mais do que dar forma agradável às notícias da hora na minha área. Era um trabalho que eu gostava de fazer, era a minha comunicação com o mundo, a que ia ao público com o imediatismo que não se encontra em nenhuma outra comunicação feita pela linguagem escrita. Em compensação ela é também a única que vive tão pouco, a menos duradoura, e nisso perde longe para os livros. Consumida, consome-se também sua razão de ser, e é esquecida.
Nunca tive mais profunda compreensão da tamanha brevidade, do que diante de uma desagradável coincidência que me ocorreu, desagradável na época do fato.
Uma manhã eu saía de uma farmácia na avenida Joana Angélica, tinha chovido à noite, por isso a rua estava molhada e havia muitas poças, principalmente nas calçadas que sempre foram mal conservadas. Cuidadosa para não enfiar os pés em uma delas, caminhava olhando para o chão, quando recebi a surpresa. Em um farrapo de jornal, molhado, amarrotado e sujo identifiquei sem dificuldade um pedaço da minha coluna publicada na véspera. Justamente em uma parte do meu texto, a folha fora rasgada. Minha crônica ali, emporcalhada e pisada por quantos transitavam na avenida, foi como se alguém me aplicasse um tapa. Precisei conversar comigo mesma, demoradamente, respirar fundo, para deixar de me sentir insultada, e poder entender que aquele é o destino dos jornais. As pessoas lêem e jogam fora, tudo o que há nele é descartável, não é desimportante, mas são muito breves os seus cinco minutos de estrelato. Na minha infância, com jornais se embrulhava sabão nos balcões dos armazéns de secos e molhados, antecessores dos supermercados. Os textos assinados por mulheres menos vaidosas que eu e por todos os demais jornalistas estavam destinados àquela sorte. Por que eu estaria tão ofendida? Tive que me curvar àquela realidade e aceitar que a vida dos textos jornalísticos é breve, por sua própria natureza, ou finalidade.
No dia seguinte, lá eu estava escrevendo minha crônica, que saía 4 vezes por semana, e burilando a redação dos drops para melhorar a secura das notícias, com cuidado para não emprestar literatura à objetividade do jornal. Aí, já bem consciente de que viveriam o tempo de um hibisco, não mais, e renasceriam no dia seguinte, sob outras formas e outras palavras, obedecendo ao ciclo vicioso das colunas de jornal, porque todos temos os nossos destinos e também temos que considerar os destinos das coisas e das palavras.
Com o tempo aconteceu a regulamentação da profissão de jornalista, e eu, que não me sindicalizara, e fazia jornalismo pegando carona no meu gosto pela escrita, fiquei na contramão, não posso mais assinar coluna se não versar sobre uma das minhas formações.
Mas, quem disse que o vírus da crônica foi curado? Não tem cura. Cá estou, pelos umbrais da catedral dos blogs, cronicando com capricho que tanto bem me faz, e, afinal, eu não sei mesmo fazer outra coisa que não seja arrumar palavras.
Agora a página branca ainda é branca, mas não está mais em branco. A não ser que esta reflexão egocêntrica sobre o meu próprio fazer, e os laços que nos atam àquilo que criamos, não equivalha mais que a uma página branca em branco. Ademais, eu mesma concordo que os egocêntricos são tão chatos!
quarta-feira, 15 de outubro de 2008
ASSIM
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terça-feira, 14 de outubro de 2008
DATA DE NASCIMENTO DO POETA e.e.cummings
Em 14 de outubro de 1894 nasceu e. e. cummings.
Segue o repeteco da tradução feita por Manuel Anastácio do poema "I carry your heart with me", postagem de dezembro de 2007 aqui no blog da leitora.
Na minha lista de poemas inesquecíveis, este de e.e.cummings tem lugar garantido.
Trago o teu coração comigo (guardo-o dentro
do meu coração) nunca o deixei noutro lugar (onde quer
que vá, vais comigo, meu amor; e o quer que seja feito
apenas por mim, é por ti feito, minha querida) temerei
jamais qualquer destino (pois és o meu destino, minha doçura) quererei
jamais qualquer mundo (que a tua formosura é todo o meu mundo, minha verdade)
e és tu o que uma lua sempre possa ter significado
e o quer que tenha sempre um sol cantado, és tu
aqui está o mais profundo segredo a todos velado
(aqui está a raiz da raiz e o botão do botão
e as alturas das alturas de uma árvore chamada vida; que cresce
para além do que a alma pode esperar ou o pensamento esconder)
e é esta a maravilha que mantém as estrelas separadas
Trago o teu coração (guardo-o dentro do meu coração)
SOBRE QUANDO NIETZSCHE CHOROU
Irvin D. Yalom
foto do escritor retirada do seu site www.yalom.com/
segunda-feira, 13 de outubro de 2008
MANUEL BANDEIRA (19/04/1886 - 13/10/1968)
Gerana Damulakis
Manuel Bandeira foi o primeiro poeta que li, não foi o primeiro que ouvi, pois que ouvia muitos poetas serem declamados (isto é outra história), mas Bandeira foi o primeiro que li. E me apaixonei não apenas pela poesia e, sim, pela literatura de um modo definitivo, vida afora. Como a poesia de Manuel Bandeira traz a emoção de forma tão intensa e me arrebata sem exceções, optei pelo poema intitulado “Antologia”. Trata-se de um centão.
Um centão é uma composição poética (ou musical) elaborada com versos de vários autores ou de apenas um autor, assim como diz o nome: “manta de retalhos”, que vem do latim “cento”. A origem do centão é greco-latina: o poeta de então clamava por poemas homéricos e virgilianos como ponto de partida para construção de seu centão. No caso de Bandeira, o poema “Antologia” é um centão com seus versos.
Certa noite, resolvi me dedicar ao centão e procurei a origem de verso por verso, todos pertencentes a poemas memoráveis de Manuel Bandeira. Primeiramente seria maravilhoso sentir “Antologia”, perfeito como se sua feitura não tivesse nada de uma “colcha de retalhos”: fruto da magia do mestre.
Vou numerar os versos para facilitar a decifração do lugar original de cada um deles.
ANTOLOGIA
1 A vida
2 Não vale a pena e a dor de ser vivida.
3 Os corpos se entendem mas as almas não.
4 A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
5 Vou-me embora p’ra Pasárgada!
19 Quando a Indesejada das gentes chegar
Versos 1 e 2: do “Soneto Inglês”.
Verso 3: de “Arte de amar”.
Verso 4:, de “Pneumotórax”.
Versos 5 e 6: de “Vou-me embora p’ra Pasárgada”.
Verso 7: de “Cantiga”.
Verso 8: de “Presepe”.
Versos 9 e 10: de “Resposta a Vinícius”.
Verso 11: de “Cantiga”.
Verso 12: de “Poema só para Jaime Ovalle”.
Verso 13: de “Pneumotórax”.
Verso 14: de “Cantiga”.
Versos 15, 16 e 17: de “A morte absoluta”.
Verso 18: de “Lua nova”.
Versos 19, 20, 21 e 22: de “Consoada”.
SONETO INGLÊS nº 2
Aceitar o castigo imerecido,
ARTE DE AMAR
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
CANTIGA
Nas ondas da praia
PRESEPE
................
Mais do que tudo isso
O amedrontaria
A dor de ser homem,
O horror de ser homem,
— Esse bicho estranho
Que desarrazoa
.......................
RESPOSTA A VINÍCIUS
Poeta sou; pai, pouco; irmão, mais.
Lúcido, sim; eleito, não.
E bem triste de tantos ais
Que me enchem a imaginação.
Com que sonho? Não sei bem não.
Talvez com me bastar, feliz
— Ah feliz como jamais fui! —
Arrancando do coração
— Arrancando pela raiz —
Este anseio infinito e vão
De possuir o que me possui.
POEMA SÓ PARAJAIME OVALLE
Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
A MORTE ABSOLUTA
Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."
Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.
LUA NOVA
Meu novo quarto
Meu quarto, de novo a cavaleiro da entrada da barra.
Depois de dez anos de pátio
Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir:
Hei de aprender com ele
Não pensem que estou aguardando a lua cheia
CONSOADA
Quando a Indesejada das gentes chegar
Aí estão os versos do centão, alguns poemas não foram reproduzidos integralmente por conta do tamanho e “Vou-me embora p’ra Pasárgada”, por ser muito conhecido e facilmente identificável.
Ressalto que Bandeira morreu em 1968; há 40 anos, portanto. A melhor homenagem é sempre a leitura de seus poemas.
domingo, 12 de outubro de 2008
SEMPRE BANDEIRA
sexta-feira, 10 de outubro de 2008
AO CADÁVER DESCONHECIDO
Depositado sobre a lage fria
Álgido, exangue, rijo e dissecado
Guardas, no corpo teu, formolizado
Teus órgãos, veias, músculos que, um dia
Foram teu corpo vivo e respeitado
Devias ter, no entanto, um monumento
Homem, mulher, criança, não importa!
MIRADA
para os grandes CDA e Mario Quintana
Possuo uma ânsia de andar este caminho
e concentrar as alegrias momentâneas
de viver completamente
uma fantasia que se fez real.
Possuo tanta angústia - muita angústia -,
muita consciência e muito medo
e uma dúvida constante nestes instantes
que me cobre e me pergunta
sobre o limite.
Possuo lágrimas de emoção
e risos de satisfação.
E possuo, finalmente, a certeza da tênue
fronteira entre a plenitude da vida
e o abismo do fim
- e daí me consumo.
De Guardador de Mitos. Homenagem a Carlos Drummond de Andrade e Mario Quintana, Praça da Alfândega, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, por rvolcan, retirada do Flickr.
quinta-feira, 9 de outubro de 2008
PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA 2008
segunda-feira, 6 de outubro de 2008
ADORMECIDA
POEMA INESQUECÍVEL: A canção de amor de J. Alfred Prufrock, de T. S. ELIOT
sábado, 4 de outubro de 2008
UM POEMA DE MANUEL ANASTÁCIO
As couves, tenras, aconchegam caracóis.
As vides, soltas, erguem falanges, tecem fantasmas.
A terra cheira a vinho abafado.
A mosto guardado em formol,
Como a doçura de quem nunca morreu.
Só mais umas gotas desta dor que, ardendo
Sabe a mel.
Em vez de fumo, nevoeiro,
E em vez de brasas, bagas de romã.
Foto de marina vrgs, da série "por dentro - romã", retirada do Flickr.
VERSOS INESQUECÍVEIS
Gerana Damulakis
AUSÊNCIA
Tombam secretas madrugadas
e rios densos de pavor
de tuas pernas devassadas
por meu instinto e meu amor.
Em teus joelhos levantados
tocam as pontas de uma estrela.
(Quaisquer receios de pecados
empalidecem à luz dela...)
E as tuas ancas repousadas,
pra que o meu corpo se concentre,
esperam, cativas - que as espadas
de amor se cravem no teu ventre.
Do livro A secreta viagem
quinta-feira, 2 de outubro de 2008
O BRUXO DO COSME VELHO
É, inclusive, um tapa de luva na cara dos racistas que um afro-descendente, não só tivesse o respeito e a admiração de todos escritores do seu tempo, mas também que o estilo de narrar de Machado de Assis estivesse longe de identificar-se com uma África selvagem e primitiva. Ele é dos nossos escritores o que melhor esgrimiu a finura, a classe e a sutileza, além de ser um profundo mergulhador no mar desconhecido da alma humana de onde nos trouxe perfis imortais. Não será ocioso repetir como o jogo de ambigüidade no romance Dom Casmurro criou uma dúvida eternamente insolúvel a respeito da honestidade conjugal de Capitu.
Esta ambigüidade é conseguida pura e simplesmente pela sofisticação narrativa. através do ponto de vista do narrador implicado Bentinho que é a única testemunha que nos relata a maneira de agir de sua mulher, uma personagem que vem sendo construída por ele em flash-back, até que culmina com a acusação, que ele procura comprovar para o leitor, a fim de justificar a própria crueldade com sua mulher. Afinal, não há nenhuma certeza, e até um júri já foi feito para decidir se Capitu traiu ou não traiu. Como um verdadeiro bruxo da narrativa, Machado se limita a expor as peças do quebra-cabeça e deixar para o leitor a tarefa de armá-lo.
Se grande romancista, Machado não foi menor no conto e na poesia. Alguns de seus contos ou novelas são antológicos, são leituras obrigatórias tendo encantado as gerações. "Missa do Galo" é um conto cuja linguagem poderíamos apontar como calcada numa atmosfera. em que a sutileza, e os entretons governam a ficção machadiana e não podemos arriscar um palpite sobre o comportamento feminino, este enigma que Machado gostava de construir. Em "O Alienista" temos um fantástico estudo psicopatológico da natureza humana raiando ao absurdo em que o personagem principal é a loucura humana. Outro conto magistral e que todos deviam ler é "O Espelho".
Um dos primeiros cultores deste gênero tão difícil no Brasil, Machado escandiu a narrativa curta com um primoroso tratamento de linguagem, uma prosa castiça, ritmada e de excelente seleção vocabular que superava o gênio português Eça de Queiroz.
A crônica machadiana é essencialmente leve e requintada e nela, ele consegue uma dualidade difícil: captar o sentimento de seu tempo e fazê-lo atravessar o tempo.
Ó PAI
"Por que me abandonaste?"
Cristo
Qualquer dia, qualquer mês
e estou só.
Só as estrias de luz mostram o ar
carregando suas massas de partículas
redondas, tantas quantas são
as pessoas da multidão.
Lá fora é onde deve haver alguém.
Por que tarda?
Estou em plena tarde
sem perder o relógio de vista.
Preciso dizer-te isto, meu Pai,
que já vivo a minha tarde
e tenho medo.
POEMA
Com o poeta João Cabral de Melo Neto se faz uma viagem plural, às vezes com os pés no chão, achando que cada coisa foi bem posta em seu lugar, mas por vezes há uma sensação tal como se
"nadando/ em rios invisíveis".
Quatro versos inesquecíveis de Cabral:
Há vinte anos não digo a palavra
que sempre espero de mim.
Ficarei indefinidamente contemplando
meu retrato eu morto.
De "Poema", em Pedra do sono.
João Cabral de Melo Neto, Recife, Pernambuco, foto de marcusrg, retirada do Flickr.