terça-feira, 30 de setembro de 2008

A CASA ANTIGA

Kátia Borges

Vivia em conserto,
a casa antiga.
Mudavam as telhas,
compravam madeira,
renovavam as ripas,
ajeitavam a cumieira.

A casa antiga, apenas
25 metros quadrados,
era tudo que restara
do passado, da família,
na vila, na vida. E não havia
outro modo de ter um teto.

Feito enxurrada, mais
e mais trocados iam
na eterna reforma.
E as janelas caindo,
o beiral carcomido,
o caibro, a terça, o pendural.

E pedreiros amigos
visitando as lojas,
o carro cheio de tijolos,
meio torto, e a casa antiga.
De nada adiantava
pintar paredes e portas
pôr cores sóbrias,
caprichar na tinta.

A cada chuva, o mofo
brotava do invísivel,
esparramando negro,
venenoso visgo, engolindo
todo esforço de mudança
e viço. Eram fantasmas,
ou memórias, que escorriam,
corroendo as novas vigas.

Até tornar ir embora imperativo.

Kátia Borges é autora do volume de poemas De volta à caixa de abelhas (FUNCEB, 2001).

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

MESTRE


29 de setembro de 1908, Rio de Janeiro: morre Machado de Assis, o mestre.

domingo, 28 de setembro de 2008

BICHOS DE CONCHAS



Gerana Damulakis





Uma tarde e um começo de noite foram passados prazerosamente na leitura do romance Bichos de conchas (São Paulo: Scortecci, 2008), de Gláucia Lemos. Minha filha entrava no quarto e dizia: "Abaixa o livro um pouquinho, preciso falar uma coisa... ah, já sei, não pode... ". E eu não poderia fazer outra coisa, só poderia ir até o fim, até a última página do romance vencedor do II Prêmio de Literatura UBE/ Scortecci 2007.
Vamos a ele: um homem faz peças com conchas, usando lixa e cola. Uma mulher dá nomes de bichos para as peças. Após decidir com qual bicho cada peça se assemelha, ela até inventa alguns nomes, ela batiza os bichos de conchas. Ele cria, ela pergunta: "Que bicho é este". Ele responde com uma pergunta: "Com que parece?". Dado o nome, ele diz: "Então é". Porque as coisas são o que nos parece.
Este homem acolhe esta mulher quando ela sente medo do barulho do vento. No mais, ele é silêncio. O silêncio que faz esta mulher buscar o barulho de gente e querer voar, virar gaivota. Ela quer justamente o que a atemoriza: "viajar pelo vento". E ela parte. Não se preocupem, não sou eu quem vai contar a história. Ela está contada em capítulos curtos e velozes, que não se perdem em digressões, pois há urgência para que as surpresas ocorram. A narrativa é ágil e bem urdida, uma vez aberto o livro, só será fechado na página118.
O que se encontra na história que acaba mexendo com o inconsciente coletivo? Creio que seja a inquietação diante do tempo, este que não conhece freio, só anda e anda e vai passando: ela é a mola mestra do enredo, porque é ela, a ansiedade, a busca pelo desconhecido como uma promessa de algo a mais, que embaça o real valor do que se tem e enfeita com cores brilhantes o que se precisa alcançar. Se é preciso partir, que se parta. Se é certo voltar, já não há como assegurar. Às vezes, voltar é uma espécie de conformismo, ou falta de alternativa. Não irei além, não vou fazer Gláucia ficar zangada, tirando de seus leitores a satisfação da leitura sem orientação prévia. Não estou orientando, estou alegremente escrevendo sobre o que li.
Mais um prêmio para a galeria de Gláucia Lemos, que teve início em 1985, quando a nossa escritora ganhou o Prêmio Cidade de Salvador da Academia de Letras da Bahia, com o romance O riso da raposa, e não parou mais. Que outros prêmios aconteçam, serão sempre merecidos!

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

"por isso escrevo - conto/ como nasci do delírio alheio"


Gerana Damulakis


Meu amigo, o contista Lima Trindade, chega com presentes nas nossas reuniões mensais. Já me deu um CD muito bacana (ele sabe que gosto de rock, música pop, e assumo...), já me deu o ótimo livro de contos de Gustavo Rios, O amor é uma coisa feia (7Letras, 2007), ao qual apresentei aqui minha impressão de leitura e, por fim, me deu Trabalhos do corpo e outros poemas físicos (Letra Capital, 2007), de Sandro Ornellas.
Li. Foi um livro que pediu duas leituras. A poesia é assim, ela pede leituras. O livro de Sandro Ornellas vai ganhando com isso de ler e reler e reler. Houve poemas que pediram três, quatro, cinco leituras. Quando li pela primeira vez, ficou muito evidente (e causando certa estranheza) o fato de que, se há poemas de versos tão curtos, como encontramos logo a seguir versos caudalosos, quando o poeta é o mesmo (ou não é?).
Na releitura, a estranheza some. Se o verso longo, às vezes maravilhosamente derramado, me conquistou imediatamente, foi o verso curto e rápido que me flechou na segunda leitura.
Primeira seleção: "Quase", "A plenitude o vazio a vida", são dois exemplos de um fôlego só. Lerei ambos na próxima reunião (adoro ler poemas em voz alta; Cabral torceria o nariz, ele que dizia que poesia é para ser lida sussurrando e, no entanto, escreveu "Morte e vida severina").
Nós somos vários. É certo. Meu outro lado, selecionou os poemas: "Laranjas", "Serpentário","Ao meu verme privado". Será que cabe aqui essa história de não ser um, de ser 300, 350? Não cabe, não. O que se diria uma falta de "organicidade", na verdade, é o que vai construindo o livro, um livro rico.
O poema que clamou por mais leituras foi "Laranjas". Posso fazer muitas leituras. Posso conduzir tal leitura para o significado que desejo. Eu leio, chamo pela ambigüidade se assim ansiar, e completo o texto e "especulo":
ah! estas são as minhas grandes laranjas
"Laranjas", um poema essencial.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

SEMPRE MAIS

Gerana Damulakis

Finalizada a lista, títulos e títulos me ocorrem. O prazer não foi suficiente para lembrá-los? Não é esta a questão. É evidente que, do meio para o fim da lista, ou até antes da metade, a memória dos mais recentes romances foi poderosa e lançou o título. Seguem algumas faltas:

Orlando ou Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf (fico com ambos)

O homem sem qualidades, de Robert Musil

Pedro Páramo, de Juan Rulfo

Mulheres apaixonadas, de D. H. Lawrence

Persuasão, de Jane Austen

Na verdade, há autores que têm muitos títulos no mesmo patamar de excelência. É o caso de Jane Austen. Lembro que, na lista dos 100, coloquei Emma, mas tanto Razão e sensibilidade, quanto Orgulho e preconceito, ou o título supracitado, todos foram romances grandiosos. Isto costuma ocorrer comigo: esgoto o autor e, depois, fica difícil escolher apenas um romance. Dá para imaginar, então, a lista enorme só contendo os títulos de Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald, Marguerite Duras, George Eliot, Henry James, Kawabata, Murakami... E a lista com os romances de José Saramago, admiração maior!

UM POEMA SEM QUE SE SAIBA


Nilson Pedro



Sorrindo como sorriem os homens
quando são apenas
o que são, apenas
homens. Quando olham para
as estrelas e nelas vêem
estrelas, e nelas vêem
brilhantes, e nada além
ou aquém: e nelas intuem a
noite sem que se saiba da
noite que sonho vão.
Sorrindo como quem sabe
que não.


Nilson Pedro assina o blog Blag, entrada pelos meus favoritos. Foto "Sorriso" por Alda Cravo Al-Saude, retirada do Flickr.

CASUAL


David Nobrega


A noite é uma criança, diz o velho ditado.
Tendo convivido com esta companheira escura e calada por tantas e tantas vezes durantes tantos e tantos anos posso lhes afirmar: se a noite fosse uma criança, seria pura. E não o é.
Dê um passeio por ruas escusas e de pouco movimento, por exemplo. Seus passos podem calmamente ressoar pelas calçadas, enquanto se ouve aqui nesta casa, um lamento, naquela outra, um gemido. Vozes que pensam ser abafadas por não poderem ser vistas.
Pode-se encontrar com uma das várias gangues que enxameiam a pestilenta madrugada, violentas e despreparadas para a vida.
A presença constante de facilidades para prazeres mundanos.
A noite é, pois então, mais um adolescente descobrindo novidades; assim como todos que atravessam escuras horas a procura de verdades que a luz do dia esconde.
Pois eis-me aqui então, empreendendo uma nova jornada, a procura de algo ou alguém que me entretenha até mais um novo dia. Caminho só; caçada em bando é algo para lobos e não me considero parte da alcatéia. Aqui por esta movimentada avenida, tantos outros como eu buscam o mesmo prazer.
Entro em um de seus infernos terrenos, para uma boa dose de conhaque. Está frio e meus pés sentem a necessidade de um calor que par de meias algum pode fornecer. Sento ao balcão, peço meu trago e ouço, ao fundo, acordes de algum novo sucesso, copiado de outras noites já falecidas de minha vida.
Um conselho: quando for a um bar, sente sempre ao balcão. Não existe lugar melhor para se ver e ser visto. Mesas são para casais que se formaram durante os dias. Amantes noturnos exibem-se em balcões de bares...
"Faz tempo que não lhe vejo por aqui" - diz ela que acaba de chegar.
"Sim. Estava em viagem. Voltei há pouco. Senta, bebe comigo."
Whisky. Mulher que bebe whisky é sensual. Como aquelas que bebem cerveja são alegres. As dos coquetéis não gosto: muito comportadas. Refrigerantes então, me põe para correr.
"Então, trabalhando muito?"- me pergunta, enquanto meço cada centímetro daquele busto semi-aparente por entre cortes bem ajustados de tecido leve.
"Sim e não. Tive trabalho fora da cidade e aproveitei para descansar uns dias longe do frio. E você, não estava por acaso de namoro com F...?"
Diz que não!, penso e rezo.
"Foi algo passageiro. Nada demais..." - me responde com a boca úmida pela bebida...os lábios
roçando a borda do copo. Ela sabe que sempre tive lá minha queda por suas curvas. Não teria como não perceber meus olhares quando passa por mim, em outros encontros pela noite.
"Tem planos para logo mais? Digo, a noite está apenas começando."
Gaguejei? Com certeza.
Ela encosta, roça, suas maravilhosas coxas nas minhas e me encara, com certa estranheza no olhar. Com certeza aquele não era o primeiro whisky.
"Me diz o que faremos. Estou em suas mãos. A não ser que você já tenha algo melhor para fazer..."
Gargalho por dentro, mas sobriamente, fazendo pose respondo:
"Não. Nada melhor nem pior. A noite é sua."
Saímos. O vento começou a soprar mais forte e ela se aconchega a mim. No táxi, o primeiro beijo. Mãos que correm tateando umidades.
"Mais uma bebida?", pergunto educadamente ao chegarmos em casa. Posso estar com minhas vontades à flor da pele, mas deve-se ser polido, sempre. Ela recusa e me abraça. Me beija. Encosta seu corpo em minha dureza.
Bocas coladas, peças de roupas arrancadas, tropeços em direção a cama. A simples visão daquele corpo perfeito e despido me torna selvagem. Beijo esse corpo todo. Lambo. Penetro. Variações não programadas. Gozo.
Ritual: minutos abraçados, respirações apressadas. Banheiro. Cigarro.
Nada de "foi bom para você?". Sabemos e sentimos que foi. Hipocrisia não cabe em adolescentes noites.
"Te ligo mais tarde", digo, mentindo.
"Não, não liga. Deixe que seja uma nova surpresa, em outro bar."
O sol já está despontando quando finalmente parte.
À luz do dia, já não parece a mesma pessoa, com sua maquiagem borrada.



David Nobrega está preparando um livro de contos. Este é um exemplo dos que lá estão. Foto de Renata e Guilherme, retirada do Flickr.

UM GATO



Fred Matos


era um gato no telhado
aqueles olhos que luziam
o fantasma no meu quarto
tênue sombra enluarada
sombra de silêncio
eco da madrugada

era um gato e caminhava
atento a tudo que havia
a um insone na janela
que à sua sombra acudia
lentamente foi embora
lentamente raia o dia

era um gato e um poeta
um do outro estranhos
um do outro fantasmas
um do outro silêncios

aquele agora quer cama
este agora quer braços.


Fred Matos é autor de Melhor que a encomenda (FUNCEB, 2006). A foto é de leoberaldo, retirada do Flickr.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

BLOG DE JOSÉ SARAMAGO


Gerana Damulakis


Não posso deixar de divulgar a existência do blog de José Saramago. Soube por Manuel Anastácio, lá no blog Da Condição Humana. Já coloquei nos meus favoritos como "Blog de José Saramago", mas para quem não quiser entrar por aqui, aí vai o endereço:


A viagem do elefante é o título do próximo livro (já está pronto!) deste que é, para mim, um escritor especial (para dizer o mínimo).

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

ENFIM, OS 100

Gerana Damulakis

Enfim os 100 romances aí estão. Ficaram muitos de fora. Limite é sempre algo enganador, achamos que organiza pensamentos, até ações, mas é vã ilusão, continua sendo apenas uma barreira que desperta o desejo de ultrapassar. Se calhar, seguirei com a lista até um número qualquer, designado tão somente pelo meu gosto. Afinal, e seguindo um debate que o blog Madame K levantou há pouco tempo, para que servem os blogs? Servem ao gosto de cada um, servem para preencher alguma lacuna. No meu caso, o blog serve para registrar leituras, aplaudir textos, divulgar seus autores, compartilhar a literatura.

91- Em busca do tempo perdido (todos os volumes), de Marcel Proust

92-De verdade, de Sándor Márai

93- Minha vida de menina, de Helena Morley

94- Encontro em Samarra, de John O'Hara

95- Giovanni, de James Baldwin

96- Meus dias de escritor, de Tobias Wolff

97- Casa de encontros, de Martin Amis

98- As aventuras do Sr. Pickwick, de Charles Dickens

99-Os anéis de Saturno, de W.G. Sebald

100- O destino de um homem, de Somerset Maugham

TRECHO de Albertina desaparecida, a versão de A fugitiva alterada pelo próprio autor, último volume de Em busca do tempo perdido no qual Marcel Proust (foto) trabalhou.

Albertina já não existia; mas era a pessoa que me havia escondido seus relacionamentos com mulheres, em Balbec, e que imaginava ter conseguido me manter ignorante quanto à questão. Quando consideramos o que há de acontecer conosco após a morte, não é o nosso “eu” vivo que, erroneamente, ao fazê-lo, projetamos? Será mais absurdo, afinal, lamentar que uma mulher que já não existe desconhece ter vindo à tona o que ela fazia seis anos atrás, ou desejar que o público fale bem de nós daqui a um século, quando estivermos mortos? Se o segundo caso tem mais fundamento que o primeiro, o arrependimento, retrospectivo, do meu ciúme partiu do mesmo erro de visão que produz no homem o desejo da celebridade póstuma. Todavia, se a impressão da natureza solene e irrevogável da minha separação de Albertina, momentaneamente, suplantou a idéia que concebi de suas más ações, a mesma impressão serviu tão somente para agravá-las, conferindo-lhes um caráter irremediável. Vi a mim mesmo perdido na vida, como em uma praia infinita, onde estava só e onde jamais a encontraria, seguisse eu em qualquer direção.

domingo, 21 de setembro de 2008

ELAS MORAM EM MIM

Gerana Damulakis

Digo e repito estas palavras escritas por Clarice Lispector. Elas moram em mim.




(...) como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro. - - - - - - -


em A Paixão segundo G.H.

sábado, 20 de setembro de 2008

DIZER

Manuel Anastácio

Para a Gerana Damulakis










Dizer liberdade e pensar num pássaro. Em voar.
Em ar.
Dizer saudade e pensar em cais.
Em água.
Em pedra. Em pouco mais.
Dizer amor e pensar em fogo.
Dizer desejo e pensar em cinza
Após a inocente inconsciência do jogo ardente e do jugo
das labaredas.

Dizer liberdade e pensar em solidão.
Num só e único pássaro.
No ar. Movimento sem destino.
Dizer liberdade e pensar ingratidão.
Pássaro abandonado a correntes sem vontade,
Algemado ao amuo do vento,
Ao arrasto, ao empuxo, ao peso,
À sustentação.

Dizer liberdade e jamais pensar em bandos
E em nuvens pontilhadas de colectivo amor.
Dizer liberdade e negar a dor
Que há na saudade, mas jamais
Nos cais de nuvem
De um beijo sem atrevimento.
Liberdade a penas.
Um ponto que flutua no esquecimento,
Certa semente da mais decantada e desasada servidão.

Dizer liberdade.
E esquecer o coração.







Manuel Anastácio assina o blog Da Condição Humana, entrada pelos meus favoritos, ou http://literaturas.blogs.sapo.pt/ Foto "Liberdade", de Web4u, retirada do Flickr.

VERSOS ANTOLÓGICOS


Gerana Damulakis


Não sei se acontece com todos que amam poesia, mas comigo ocorre amiúde ter vontade de responder em versos a algum questionamento. Tudo isto porque há os versos inesquecíveis que se encaixam como resposta em várias ocasiões, ou mesmo, sem que seja preciso um diálogo, eles surgem como resultado de alguma observação. Fernando Pessoa é dono de muitos versos antológicos: os exemplos refletem os meus preferidos.

Há doenças piores que as doenças,/Há dores que não doem, nem na alma/ Mas que são dolorosas mais que as outras./ Há angústias sonhadas mais reais/ Que as que a vida nos traz, há sensações/ Sentidas só com imaginá-las/ Que são mais nossas do que a própria vida. (...). Em "Há doenças piores que as doenças"

Quem não quiser sofrer, que se isole

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

Deus é o existirmos e isto não ser tudo. Em "A minha imagem"

Todas as cartas de amor são/ Ridículas./ Não seriam cartas de amor se não fossem/ Ridículas.

Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Em "Tabacaria"

COISAS DA NOBREZA


Gláucia Lemos


Há situações que se constroem destrutivamente, e nelas nos envolvemos, mediante uma inevitabilidade que nos custa acreditar. Passamos a responder por elas, quantas vezes com o nosso próprio prejuízo. Ficamos, como as gentes diziam na minha infância, “apagando o fifó com os dedos” (Para quem não sabe, fifó é um tipo primitivo de candeeiro, alimentado a querosene, de pavio grosso que faz chama forte, alta e fumarenta, e não tem manga). Então ficamos olhando para o tempo a nos perguntar por que estamos carregando nos ombros aquela conseqüência, se fizemos tudo de acordo com o figurino, com toda lealdade e com o mais perfeito bom-senso. Fica a perplexidade um pouco doída. E aquela sensação fria e letárgica, de não-ter-que-fazer.
Há alguns anos, nesta cidade dos mil encantos, das gentes bonitas e amigas, neste ninho de intelectualidades e de gente boa, uma moça coordenava um concurso literário anual para uma conceituada instituição. Havia uma pequena equipe bem competente, eleita por ela, para que cada elemento se encarregasse do julgamento de determinado gênero. Durante muitos anos o sistema funcionou muito bem, com pequeno cachê, mas festas de premiação com coquetel e tudo, muita música, alegria e franca amizade. A equipe era quase uma família.
Um dia, o presidente da instituição sugeriu à moça o nome de uma pessoa para participar como jurada. Só que não iria acrescentar, ao contrário, alguém teria que ser afastado para que o novo elemento o substituísse. A moça sabia da competência do novo elemento, como igualmente conhecia a competência dos que, havia tantos anos, vinham trabalhando. Entrava o sentimento de lealdade. E perguntou: quem eu afasto? E disse ao presidente: escolha quem sai, porque essa escolha eu não posso fazer. Ele não quis escolher, ela não pôde escolher. Ninguém saiu.
A nova não entrou, mas entrou na historinha um componente terrível, abjeto, cruel e destruidor, chamado Retaliação.
O novo elemento proposto era da imprensa e tinha função expressiva na área literária. Nunca mais, a partir de então, a moça que coordenava os jurados conseguiu publicar um conto, uma crônica, um ensaio, um artigo, naquelas folhas que, anteriormente ao fato, lhe eram franqueadas sem reservas. Ganhou prêmios, fez palestras, venceu concursos, participou de projetos importantes, mandava releases, nunca mais até hoje, mereceu a menor notícia naquele jornal, como se tivesse sido sentenciada a encerrar sua carreira. Alguma dúvida?
Isso é a vida no lado escuro. São coisas que acontecem quando menos esperamos. Coisas relacionadas com nobreza, de haver, ou não haver.
Algum comentário?


Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta, tem vários títulos publicados e prêmios recebidos. Foto "revista e jornal", de Crystian Cruz, retirada do Flickr.

DO 81 AO 90

Gerana Damulakis


81- Homem que é homem não dança, de Norman Mailer

82- O companheiro de viagem, de Gyula Krúdy

83- Nada de novo no front, de Erich Maria Remarque

84- O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos

85- A montanha da alma, de Gao Xingjian

86- Trilogia (A vida breve, O estaleiro, Junta-cadáveres) de Juan Carlos Onetti

87- Mar morto, de Jorge Amado

88- Pedra Bonita, de José Lins do Rego

89- Rumo à estação Finlândia, de Edmund Wilson

90- Com o diabo no corpo, de Raymond Radiguet

TRECHO de Mar morto, de Jorge Amado (foto).

Lívia olha o mar morto de águas de chumbo. Mar sem ondas, pesado, mar de óleo. Onde estão os navios, os marinheiros e os náufragos? Mar morto de soluços, quedê as mulheres que não vêm chorar os maridos perdidos? Onde estão as crianças que morreram na noite do temporal? Onde está a vela do saveiro que o mar engoliu?E o corpo de Guma que boiava com longos cabelos morenos na água que era azul? Na água plúmbea e pesada do mar morto de óleo corre como uma assombração a luz de uma vela à procura de um afogado. É o mar que morreu, é o mar que está morto, que virou óleo, ficou parado, sem uma onda. Mar morto que não reflete as estrelas nas sua águas pesadas.
Se a Lua vier, se a Lua vier com sua luz amarela, correrá por cima do mar morto e procurará como aquela vela o corpo de Guma, o de longos cabelos morenos, o que marchou pela estrada do mar para o caminho das Terras do Sem Fim, das costas da Arocá."

EL CAPITÁN DEL AMOR




Gerana Damulakis



(sobre os versos do capitão do amor Pablo Neruda)


Quando a vanguarda latino-americana se dirige do surrealismo rumo à síntese neo-realista, o peruano César Vallejo passa a manter, em sua obra, uma ligação dramática e irônica com a realidade. Já o cubano Nicolás Guillén eleva o negro e se torna um representante da poesia realista-socialista. Mas o modelo mais significativo dessa corrente para a literatura universal, no parecer do historiador húngaro Miklós Szabolcsi, é a extensa obra de Pablo Neruda, que se inicia com o surrealismo, passa para um “realismo mágico” e chega a um “realismo despojado, sereno e complexo”.
A poética de Pablo Neruda encerra a política, a evocação da América Latina, o amor, os conflitos existenciais. Em Canto General (Canto Geral, 1947), a América, passada e presente, ascende à solicitação da poesia, construída de uma imagem do mundo da Antigüidade aos nossos dias, como “uma encenação épica à escala de um continente”, através do figurado e do contemplativo. Ainda que os temas patrióticos e de guerra sejam omitidos por Horácio, em sua Arte Poética, que lista assuntos a seu ver apropriados à poesia, estes temas estão presente em poetas de todas as épocas, e em Neruda encontramos tanto em España en el Corazón quanto em versos como: “Stalin es el mediodia/ la madurez del hombre y de los pueblos”, demonstrando a viabilidade dos temas políticos na expressão da poesia mais autêntica, mesmo que isso implique em submeter a poesia aos interesses de determinada causa política, na medida em que se pronuncia pelo tema marxista.
Certamente, o fim da poesia não é o estudo dos costumes, nem a crítica social e política. Mas, como adverte Domingos Carvalho da Silva, “se há bons poemas políticos na obra de Victor Hugo e Castro Alves, de Maiakóvski e Pablo Neruda, isto não decorre do assunto, mas da linguagem”, da clareza e da segurança, do sentido de renovação.
Neruda se engaja politicamente “de modo unilateral”, porque usa a palavra apenas a favor do socialismo, e por tal, “sua lírica de grande fôlego, ampla, escancarada, representa também uma variedade do realismo socialista”. Assim como muitos escritores de sua época, o poeta chileno coloca sua aversão à disposição do Partido Comunista e, como tantos, inicia cantando as agruras do povo, e de pronto se vê fazendo apologias a Stalin: “la mirada de Stalin a la nieve”( no poema “Nuevo canto de amor a Stalingrado”).
Acontece, pelo anos 60, que Neruda se desestaniliza, contudo canta a Revolução Cubana. Jorge Edwards, assessor de Pablo Neruda quando este, no governo Allende, chefiou a embaixada do Chile em Paris, escreveu Adeus poeta: uma biografia de Neruda, onde conta que, por ocasião de um congresso do Pen Clube, Neruda aceitou o convite de Arthur Miler e foi para Nova Iorque; então, por este fato, o poeta recebeu uma carta-aberta, em 1966, de intelectuais cubanos que o censuravam por sua tolerância para com o inimigo capitalista. Pablo Neruda ficou exasperado, pois estava certo de que, apesar das assinaturas de Lezama Lima e Alejo Carpentier, o real orientador da carta era Fidel Castro. Alguns anos depois, convidado para visitar Cuba, o poeta quis uma retratação que não ocorreu e nunca voltou àquele país.
Entre outros casos envolvendo seu amigo, Jorge Amado narra, em Navegação de Cabotagem, um interessante episódio em torno de Las uvas y el Viento, coletânea de poemas políticos onde um deles faz uma apologia a Tito, comandante dos iugoslavos. Quando estava anunciada a segunda edição do livro, Tito rompe com Stálin, Pablo retira o poema e coloca no lugar do panegírico uma denúncia contra Tito. Passa o tempo, Stálin é desmascarado via Kruschev que reabilita Tito. A essa altura, “Pablo se sente enrolado nas malhas da política, lastima o destino das uvas ao sabor dos ventos soviéticos” e diz: “Assim fica difícil ser poeta engajado”. Jorge Amado aconselha a retirada de Tito das páginas do livro “de uma vez para sempre”, e sobretudo aconselha esperar “até ver que bicho dá”, antes de escrever outra louvação.
O espírito de Neruda “era travesso e brincalhão”. Matilde Urrutia, seu grande amor, conta, em Minha Vida com Pablo Neruda, que quando o poeta estava se vestindo para cerimônia na qual receberia o Prêmio Nobel, em 1971, olhava as caudas da casaca. Ria muito e dizia: “Sinto a mesma sensação que experimento quando me fantasio nas festas em Isla Negra. Se pudesse pintar uns bigodinhos, então, seria perfeito”. Ou em um jantar com Louis Aragon e outros intelectuais, quando Neruda vira-se para os amigos latino-americanos dizendo: “Vamos ter que ser inteligentes a noite toda”.
Pablo Neruda era um colecionador capaz de pagar preços exorbitantes por coisas que lhe agradavam, mesmo que não tivessem valor, ou por algo raro como uma primeira edição de Edgar Allan Poe. E era um homem capaz de amar com loucura, sem barreiras.
No nosso século, uma das mais conhecidas exaltações amorosas são os Veinte Poemas de Amor y una Cancíon Desesperada, quando os versos pendem para o lirismo do poema hipoteticamente escrito para as bodas de Sulamita e para o poema “Arte de Amar”, de Ovídio, em que se conjugam a força lírica e a didática erótica. Na linha que começa com os Vintes Poemas e culmina com as Odes Elementais, Os Versos do Capitão guardam uma história de amor verdadeira e por isso o livro foi publicado anonimamente em 1953, sendo reconhecido por Neruda apenas na terceira edição. A admiração que provocou confirma que o volume Los Versos del Capitán está entre os mais prestigiados livros de poemas de amor de nosso tempo. O amor deixa de ser um mito: “Eros não é mais um Deus cego e enceguecedor”, retorna o caminhante deslumbrado e sedento de uma totalidade dos sentidos, de uma sinestesia cúmplice do estado de plenitude e no ritmo de seu caminhar dissipa o torpor de um deserto que se faz habilitado. A verdade encontra a sua essência, e não é o despotismo de uma racionalização que escolhe isso, mas um desejo que se implanta em cada um de nós, seus leitores, e nos suplanta, é a energia de “Eros fazendo-se poema” como nos versos de “El amor”: “Qué tienes, qué tenemos?/ qué nos pasa?”, o amor real por uma mulher real e tão comum que torna incompreensível tal sentimento: “Yo te miro/ y no hallo nada en ti sino dos ojos/ como todos los ojos, una boca/ perdida entre mil bocas que besé, más hermosas,/ un cuerpo igual a los que resbalaron/ bajo mi cuerpo sin dejar memoria”; o amor como invasão que entra “en tu vida,/ para no salir más,/ amor, amor, amor./para quedarme”. Queda para sempre a poesia de Pablo Neruda.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

DO 71 AO 80

Gerana Damulakis

71- Travessuras de uma menina má, de Mario Vargas Llosa

72- Presença de mulher, de Saul Bellow

73-A normalista, de Adolfo Caminha

74- Uma escola para a vida, de Muriel Spark

75- As horas, de Michael Cunningham

76- O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde

77- Um velho que lia romances de amor, de Luis Sepúlveda

78- O perfume, de Patrick Süskind

79- Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, de Rubem Fonseca

80- O castelo, de Kafka


TRECHOS DE Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, de Rubem Fonseca (foto).

A arte faz a gente ver melhor as coisas.

"Qual o seu sonho de consumo?", ela perguntou.
"Acreditar em Deus", eu disse.
"Isso mudaria alguma coisa?"

"Talvez o meu estilo. Minha linguagem é assindética, cheia de elipses de conjunção. A fé tornaria meu estilo hiperbólico, polissindético". Etc. Na época pensei que estava brincando.

Meu sonho de consumo, eu sabia agora, era a liberdade. O ser humano se caracteriza, na verdade, por uma grande estupidez. Ele só descobre que um bem é fundamental quando deixa de possuí-lo. Preso naquele porão, eu descobria que a liberdade mais importante que existia era a liberdade de ir e vir, a liberdade de movimento. Eu tinha todas as outras liberdades, preso no porão - de pensar, de xingar meus captores, de ter uma religião (caso quisesse uma), de escolher minhas convicções políticas. Tinha liberdade de sonhar. Mas de que me adiantava isso, se estava preso dentro de um porão?

MAIS DUAS DAS FRASES QUE, LIDAS, FICAM ESCRITAS EM MIM



O sonho é o pensamento que não foi pensado quando devia(...)
em O evangelho segundo Jesus Cristo


(...) o meu cérebro sabe de mim, eu não sei nada dele, (...)
em História do Cerco de Lisboa


José Saramago - Prêmio Nobel de Literatura 1998


UM CAPPUCCINO


Luiz Britto


Rose me chama pra sair com ela: quer fazer umas compras e quer minha companhia. Vai comprar uns tecidos pra fazer umas roupas quentes, pois irá no fim do mês para os Estados Unidos, visitar os parentes, e vai enfrentar o frio do outono, no Illinois. Pego um livro --- As Palavras, de Sartre --- e vou com ela. Vamos de táxi, como sempre andamos nessa cidade maluca, sem lugar pra estacionar, esse trânsito doido e cansativo. É bom ter um chofer e um guarda-costas, nem que seja por uns instantes. O friozinho do ar-condicionado, as janelas fechadas, nós dentro daquele aquário, no bolo do trânsito, fazendo fila nas sinaleiras.
Vamos para a Pituba, uma área que tem 2 ou 3 shoppings. Andamos de um lugar para outro, procurando uma loja. Transeuntes apressados tomam uma alameda coberta com um toldo branco, que liga 2 shoppings médios. Uma gente que nunca vi, e que nunca mais verei. Uma sensação que estou em outra cidade, pois raramente ando por aqui. Numa encosta, verde com o capim, perenes emílias azuis ao lado de uma escadaria. Uma tarde de sol, três horas.
Acabamos descobrindo onde fica a tal loja, mas antes paramos num café, para tomar um cappuccino. Um lugar pequeno, 2 mesas; acomodamo-nos. Conversamos qualquer coisa, comento como aquele shopping era barulhento --- o teto baixo, os corredores estreitos. Olho-a; de alguma forma é como se fossemos muito mais jovens, e namorássemos outra vez. Um momento de intimidade e paz --- ultimamente sempre vamos a um shopping tomar um cappuccino. O café quente, o chocolate, o creme. Isso nos aproxima, e é tão barato, tão fácil. Gosto de olhá-la nesses pequenos e sensíveis momentos: amo-a enquanto a contemplo, e sempre me sinto feliz nesses momentos, é como se o tempo fosse sempre o mesmo, estivéssemos no arco da eternidade, nossa pequena eternidade.
Levantamos, enfim, vamos à loja de tecidos, pequena também. Enquanto ela escolhe os tecidos, sento-me numa cadeira e vou ler meu livro. Um livro que jamais leria, se não o tivesse comprado --- um texto confuso, uma superabundância de pensamentos e conceitos, e a vida é bem mais simples. Um livro antigo, comprado em sebo, com mais de 20 anos, as páginas amareladas, com anotações alheias, e eu gosto dele assim. Livros envelhecidos têm outro sabor, uma vida que já é deles: a marca do tempo.
Enquanto Rose escolhe seu pano, vejo-me menino, acompanhando minha mãe em outras lojas de tecidos --- a Casa Africana, a Duas Américas, que ficavam na então elegante Rua Chile.
Minha mãe uma vez me comprou uns carrinhos de ferro ingleses, e eu ia com ela na esperança de ganhar novos carrinhos. Uma esperança jamais satisfeita: ela sempre dizia que não tinha dinheiro, que eu já tinha carrinho de mais, e eu ficava muito aborrecido. As frustrações daqueles dias me voltam, e uma lembrança vaga de outra Salvador, muito mais tranqüila, de 50 e tantos anos atrás, que já vai tão longe.
Uma Salvador menor, que cabia num dedal, que não tinha cappuccino. E nem Rose.

Luiz Britto é ficcionista, tem dezenas de títulos publicados. Foto de Renata Diem, retirada do Flickr.

domingo, 14 de setembro de 2008

TUDO ESTÁ NA LITERATURA: FRASES QUE, LIDAS, FICAM ESCRITAS EM MIM



"Eu só tinha um pensamento que, mais do que um pensamento, era a ferida que englobava tudo: meu pai".

Elias Canetti (1905-1994)
Prêmio Nobel de Literatura 1981

DE 61 ATÉ 70


Gerana Damulakis


61- Moll Flanders, de Daniel Defoe

62- Corpo vivo, de Adonias Filho

63- Minha querida Sputnik, de Haruki Murakami

64- Trilogia + um (Espere a primavera, Bandini; Pergunte ao pó; Sonhos de Bunker Hills e, postumamente publicado O caminho de Los Angeles), de John Fante

65- Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida

66- Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto

67- O cortiço, de Aluízio Azevedo

68- Ah, até parece o paraíso, de John Cheever

69- Anna Kariênina, de Liev Tolstói

70- Equador, de Miguel Sousa Tavares

TRECHO de Anna Kariênina, de Tolstói (foto): aqui, apenas a primeira frase do romance bastará. No romance encontram-se, inclusive, parágrafos que seriam escolhidos, mas a primeira frase de Anna Kariênina é, para mim, a melhor primeira frase de todos os romances que li; inesquecível, portanto antológica.

Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.

A CULPA É DOS FRANCESES!



Gerana Damulakis

Na posse do contista Hélio Pólvora para a Academia de Letras da Bahia, o discurso de recebimento foi feito por James Amado para seu, daí para a frente, imortalidade incluída, novo confrade. James Amado começou sua fala dizendo: “A culpa é dos franceses!”. E seguiu, após longo silêncio, justificando a exclamação, pois foram os franceses que inspiraram, com sua Academia, a que Machado de Assis veio a fundar. Nesta linha, os baianos também fundaram a sua, a ALB.
Outro dia, eu e Aramis Ribeiro Costa, estávamos relembrando este fato, que se tornou antológico no arquivo de minhas lembranças. Horas depois, ou dias, não sei, senti uma necessidade de ler alguma coisa que satisfizesse determinados anseios, e terminei concluindo que eu precisava de tal leitura, mas disse em voz: “A culpa é dos ingleses...”. Agora, virou vício, porque tenho necessidade de certas literaturas de acordo com meus estados de ânimo, assim como uma pessoa com pressão baixa precisa de sal, e, então, ao examinar o que me falta, arremato a conclusão e digo de quem é a culpa. Ultimamente a culpa tem sido amiúde dos japoneses.
Hoje, no entanto, senti muita vontade de encontrar as palavras do Bruxo, talvez porque seja setembro e, logo, no dia 29, se dará o centenário da morte dele. Daí que, como eu gosto de homenagear os escritores com o ato mais lógico, lendo-os, preciso realizar o desejo. E não sei o que lerei, já li toda sua obra e reli muitos romances e contos e crônicas. Sei que preciso encontrar o brilho daquelas frases, a maestria na construção do texto, a ironia latente... a culpa é de Machado!

sábado, 13 de setembro de 2008

METADES



Gláucia Lemos


Há os que passam
e passam como os trens
que não deixam senão o eco fugidio
do seu grito sem memória.
Além, no entroncamento das estradas
nada são.
São menos que ninguém.

Há os que, passada após passada
com que marcam
a saga passageira,
deixam sinais,
deixam mãos, deixam palavras.
E levam de quem fica o menor toque
e o recado do encontro.

Levou de mim, assim,
em cada movimento
do corpo, das mãos, dos olhos,
a minha pele, o meu tato,
e tudo o que os meus olhos puderam ver,
levou de mim, consigo.

E ficou
nos meus ouvidos, em todo o som
que puderem guardar,
de todo som em que o mundo se esparrama,
ficou a sua voz .
E assim vamos, metades repartidas.


Gláucia Lemos, ficcionista premiada, está organizando um livro de poemas. Foto "Metades", de Nika Fadul.

UM POEMA DE LAU SIQUEIRA


razão
nenhuma


o que escrevo
é apenas parte
do que sinto

a outra parte
finjo que minto
e acredito


Lau Siqueira tem 4 livros de poemas: O Comício das Veias (Ed. Idéia-PB, 1993), O Guardador de Sorrisos (Ed. Trema-PB, 1998), Sem Meias Palavras (Ed. Idéia-PB, 2002) e Texto Sentido (Bagaço-PE, 2007).

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

SIM, AMEMOS A VIDA


Gláucia Lemos

O silêncio sempre me disse coisas. Esta frase não é minha, é de Marcela, a personagem do romance A Metade da Maçã. Mas a mim também o silêncio diz coisas, não só diz, às vezes também pergunta. Hoje ele me perguntou por que fazemos tanta questão de viver? Por que todos (ou a maioria) olhamos a morte com horror, como se não fosse ela a verdadeira finalidade da vida de todos nós. É para ela que caminhamos, desde o primeiro instante do nascimento. Ao longo das vivências, passamos por experiências agradáveis e desagradáveis, mas apenas passamos, não permanecemos nelas, não são nosso ponto de chegada. Elas vão ficando para trás e nós prosseguimos porque teremos que ir a outro destino inevitável. Por que vivemos se teremos que morrer, é a pergunta cuja resposta a nossa vã filosofia não consegue alcançar, e as diversas conclusões a que chegam as religiões não sei se satisfazem plenamente tantas inquirições que pairam em torno dela. O fato é que com a morte e só com ela é que se encerra a repetição de experiências vividas e superadas. No entanto teimamos em olhar para ela com olhos oblíquos, por cima do ombro, e a encará-la como a um fato que só acontecerá a outrem, não a nós nem àqueles aos quais mais amamos.
Na adolescência tive uma colega de escola que nunca olhava para lojas de artigos funerários, voltava o rosto para o lado oposto sempre que passava pela porta de alguma dessas lojas, como se um simples olhar a empurrasse para dentro de uma daquelas urnas ali expostas, já que muitos têm que ganhar o sustento da sua própria vida com a morte alheia. Clarice Lispector, em um dos seus romances, se não me engano, em Um sopro de vida, pergunta: “todos têm que morrer, mas, eu também?”. Talvez por um processo inconsciente de defesa, nos surpreendamos ao admitir que nós também. Eu a vejo com naturalidade, e às vezes penso nela, sem morbidez. Pode ser, este meu comportamento, porque ela entrou na minha vida muito cedo. Eu tinha só três anos quando perdi meu pai, e essa morte nunca mais me abandonou, não como um sentimento doentio, mas com a certeza de que fui injustiçada precocemente. Era muito cedo para que me roubassem alguém tão significativo a meu universo emocional. Por toda a vida isso me entranhou um sentimento de perdedora em relação a afetos, como se perder aquele que mais me amava, me negasse o direito de tornar a ser amada. Tenho em cima do piano uma foto dele, antiga, em preto-e-branco, usando um chapéu daqueles que os homens usavam por aqueles anos. Todos os dias olho para ele e lhe sorrio. Foi um homem amoroso com os seus e generoso com os estranhos. E ele é ainda a maior razão para que me lembre dela de vez em quando.
Entretanto, me causou perplexidade um envelope que recebi há alguns dias, e estava recordando esse fato no silêncio que me provocou estas reflexões. Nada mais nada menos, a carta fazia publicidade de jazigos. Aconselhava clientes em potencial a anteciparem a aquisição do abrigo definitivo para seu repouso eterno. Já viram maior mau-gosto? Sei, todos sabemos, que estamos indo nessa direção, mas, convenhamos, nenhum de nós está com tanta pressa a ponto de antecipar o próprio funeral. Cruz credo! Vá agourar outro! Nós aqui ainda vamos ficar por alguns decênios, ainda vamos escrever e ler muitos livros, comer muito strogonoff com os amigos, reclamar muito da desfaçatez dos políticos, jogar muita conversa fora com as pessoas queridas, e até dançar muito tango argentino, por que não? Que essa megera de vida às vezes é muito má, mas é bonita demais para que a dispensemos tão depressa.


Gláucia Lemos é autora do romance A metade da maçã (Prêmio da Sec. De Cultura do Recife). Foto de josemazcona, retirada do Flickr.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

CONCEITO


Ildásio Tavares

O que importa é o amor.
E não o sexo, o credo, a idade a cor.

O amor é preferência
que é difícil nascer da inteligência.

Não se ama com a razão;
porém com a pele e com o coração –

O amor é um animal
De duas costas afinal.


Ildásio Tavares é poeta, ficionista, ensaísta. Tem dezenas de livros publicados. A foto "Ao amor...", é de LMarangoni, retirada do Flickr.

A FAMÍLIA DAS ROSAS

Robert Frost (1874-1963)

A rosa é uma rosa,
E sempre foi uma rosa.
Mas a teoria diz agora
Que a maçã é uma rosa,
E também a pérola e
assim a amora.
O que mais vão chamar de
uma rosa.
Você, claro, você é uma rosa -
Mas você sempre foi uma rosa.


Ofereço Robert Frost aos poetas Kátia Borges e Nilson Pedro como uma forma de celebrarmos a primavera que está chegando. Foto de Miguel Vila, retirada do Flickr.

COMEÇO DA OUTRA METADE DA LISTA



Gerana Damulakis


DA LISTA

51-Os resíduos do dia, Kazuo Ishiguro

52- A mulher do tenente francês, de John Fowles

53- Mar inquieto, de Yukio Mishima

54- Naufrágios, de Akira Yoshimura

55- Os ratos, de Dyonelio Machado

56- Angústia, de Graciliano Ramos

57- Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago

58- O vermelho e o negro, de Stendhal

59- Madame Bovary, de Gustave Flaubert

60- Nadja, de André Breton


TRECHOS DE Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago (foto). Sei que é o 2º título de Saramago na minha lista e sei que, se a lista não tivesse limite estabelecido, seguramente acabaria colocando todos os títulos dele.

(...) todos os relatos são como os da criação do universo, ninguém lá esteve, ninguém assistiu, mas toda a gente sabe o que aconteceu.

(...) se antes de cada ato nosso nos pusessemos a prever todas as conseqüências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imaginárias, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar.

Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala.

(...) a experiência é realmente a mestra da vida (...).

Sem futuro, o presente não serve para nada, é como se não existisse (...).

A POESIA NA PROSA DE GLÁUCIA LEMOS POR INÁ SIQUEIRA




A POESIA NA PROSA DE GLÁUCIA LEMOS, EM ”BICHOS DE
CONCHAS”, GANHADORA DO II PRÊMIO LITERÁRIO DA UBE/SCORTECCI - 2008


1)“ A Vida não traz moral da História.”

2)“(...) as ondas são como eu, nunca ficam quietas.”

3)“(...) eu gosto do vento porque ele me faz acreditar na liberdade.”

4)“Todo mundo tem direito de buscar o que quer. Se dar bem, ou se perder”.

5)“O desconforto da culpa viaja conosco por maiores que sejam as distâncias no tempo e no espaço.”

6)“Quando se abrem os olhos para o mundo pela primeira vez , começa-se a desenrolar um novelo do qual só a morte tem a derradeira ponta.”

7)“Ninguém pode cortar o fio ao meio do caminho para fazer um recomeço. Tudo o que se tecer no fio do novelo será para sempre. Pode-se fugir. Desfazer nunca mais.”

8)“É difícil aceitar a solidão que nos é imposta desde a hora predestinada(...) no ventre materno.”

9)“Passamos a vida a buscar indefinidamente o inexistente.
(...) Ninguém existe. Somos um entre todos que também são um , buscando o inexistente alguém.”

10) “Alguém tem culpa por eu não conseguir continuar escutando somente o meu próprio eco?...”

11)“Eu não fugi de você...
(...) eu fugi do seu silêncio. Eu não sei viver escondida do mundo.”

12)“Eu não aprendi a amar o que desconheço. E eu preciso sentir a vida latejando ao redor de mim...”

13)“Nenhuma mulher sabe do amor antes de ter um filho.
(...) só esse amor tem essência e raiz. Vais sofrer e ser feliz (...) vais ser feliz e sofrer e sofrer(...) definitivo, sim, ainda que levado pelas alternâncias.”

14)“Chovera dentro de mim uma chuva de vida; eu estava abençoada...”

15)“Meus olhos estavam descobrindo o milagre e foram se inundando de repente...”

16)“Não sei... Meu destino sou eu que faço. Eu sou assim mesmo. Certa ou errrada.”

17)“O sol continuou a deitar-se todas as tardes nos travesseiros vermelhos do horizonte, até que a noite abafasse as chamas das montanhas com um lençol cinzento.”

18)“A vida sempre prossegue, a despeito dos rumores humanos.”

19)“(...) a Natureza não estaciona para dar passagem aos fatos e às vicissitudes das pessoas.”

20)“Tem dores que a gente não cura, ficam doendo, mas se acostuma com elas, quando não têm remédio.”

21)“Não voas,(...,) não conseguiste voar. Será isso a liberdade?”

22)“Eu só queria ser livre, sem muros e sem grades. Só queria voar ao encontro do horizonte, quando ele ficasse pintado de vermelho, recolhendo o sol.”

23)“As dúvidas são semelhantes a carunchos roendo a cabeça.”

24)“Mesmo após decisões que pareçam mais acertadas, as dúvidas continuam teimando em fustigar o espírito, como formiguinhas roendo em volta de um bolo, reduzindo a farelos, aparentemente insignificantes, toda a paz de uma pessoa.”

25)“Vagava a alma do silêncio.
(..) até boêmios se recolhem quando a noite é feia.”

26)“Sentia que não se começa a amar de um momento para outro...”

27)“A liberdade não existe?...”

“Qualquer que seja o rumo que se toma, há sempre um preço a pagar pela conquista...”

28)“Estava de contas ajustadas comigo mesma. Pagar o preço fazia parte do processo.”

29)“Não consegui virar gaivota, nem viajar pelo vento. Já encontrei o que está do outro lado do horizonte, e é tudo igual, um lado e o outro.

30)“Conheci o muito que são os meus sonhos e o pouco que eu sou.”

31)“(...) nunca me conte o que foi que fez e o que não fez. Já aprendeu que ninguém vira gaivota.”

32)“Não são asas o que dá a liberdade. O que dá liberdade é o coração.”

33)“O que leva para longe é o sonho.”

34)“O que encarcera é a solidão.”

35)“(...) tudo está aí para ser vivido como é e como está, e isto é vida, e amar a vida é o que faz a liberdade.”

36)“(...fui entendendo que tudo estava mesmo certo e nada precisava ser mudado.”

37)“Só sei que não sei nada da vida, ainda estou aprendendo.”

38)“Não sabia que se podem encontrar duas vezes os mesmos caminhos, à mercê das marés. Não sei mesmo nada da vida; ainda preciso aprender muito...”

39)“Era muita dor para se sofrer sozinha...”

40)“Quem garante que onde estiver não está sabendo?...”


Sobre o livro há que ser dito que é o vencedor do II Concurso Literário UBE/Scortecci-2007, prêmio "O Melhor Livro", um romance intitulado BICHOS DE CONCHAS que foi lançado na Bienal de São Paulo deste ano, e é o 4º romance premiado dessa autora, Gláucia Lemos. No romance é narrada a história de uma mulher que, vivendo na solidão de um farol, casada com o faroleiro, um homem egocêntrico que vive criando arte com as conchas da praia, se cansa do silêncio, e resolve lançar-se numa aventura em busca de liberdade. As frases foram selecionadas por uma leitora, que é também escritora, e que ganhou uma menção honrosa no mesmo concurso, Isa Siqueira. O livro deverá ser lançado em Salvador em data a ser marcada.


Foto de ThaliSB, retirada do Flickr.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O AMOR É UMA COISA FEIA



Gerana Damulakis

Na nossa mais recente reunião, na casa da escritora Gláucia Lemos, o contista Lima Trindade, autor de, por exemplo, Todo Sol mais o Espírito Santo (Ateliê Editorial, 2005), me deu um livro intitulado O amor é uma coisa feia (7Letras, 2007), pela Coleção Rocinante, de Gustavo Rios. Comecei a leitura sem expectativas porque não conheço o autor e também porque jamais li qualquer texto assinado por ele. O que é ótimo para uma avaliação totalmente honesta, destituída de parcialidades, principalmente as emocionais e afetivas. Abri o livro ao acaso, como me ensinou, há uns 10 anos ou mais, a poeta Myriam Fraga; lição que nunca esqueci. Li um conto já da segunda metade do livro e gostei. Li outro, abrindo ao acaso novamente, e gostei; daí já não abri mais o livro ao acaso, pois que li o conto seguinte até terminar o volume. Terminado, abri no primeiro conto e fui lendo rumo ao conto que determinaria que a leitura estava completa.
O conto de Gustavo Rios é curto, muito curto. Afora um ou outro, como "Cinco Palavras", a maioria se dá em duas páginas. Tudo que acontece, ali acontece sem adornos. O ponto é atingido diretamente. Alguns podem pensar, será o tipo de conto que não passa de uma mera anedota? Não. Mesmo quando o conto é, por exemplo, "Mon amour", uma história em 17 linhas,, o autor cuida para deixar aquele toque, nem que seja na última frase, que modifica tudo, que faz a diferença e a literatura. É ficção, pois, e de qualidade: irônica, vasculhando as impossibilidades do sentimento, a incomunicabilidade, o desencontro, a solidão, enfim. Da situação com aparência banal, surge a crise; da crise, tem origem o sentimento em estado mais latente; a partir da visão deste sentimento instala-se a verdade: o conto "Gota d'água" é emblemático do que acabo de afirmar. Parágrafos curtos em contos curtos, linguagem direta, diálogos objetivos, situações expostas prontamente e um mergulho forte, uma pancada. Aí está a panacada: no tom dado pelo insólito que faz parte da dinâmica da vida ou no tom dado pela mesmice na qual a vida está instalada. Finda a leitura, resta dizer: é isso mesmo, este é um livro de contos, o autor conseguiu.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

ALLEGRO

Fred Matos


as cordas do meu violão
tocam um só
sonolento acorde
só acordam
quando me acode
a lembrança do teu beijo

então elas toam desejos
numa melodia fantástica
que percorre toda a escala
em seqüência erótica
orgástica

ouço o timbre do piano
ouço a flauta de Atena
ouço a lira de Apolo
é perfeita a harmonia

a orquestra toca teu nome
no allegro da sinfonia.


Fred Matos é autor de Melhor que a encomenda (FUNCEB, 2006). A foto é, "Luz e Violão", de Jonas Oliveira, retirada do Flickr.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

50 TÍTULOS INESQUECÍVEIS


Gerana Damulakis


DA LISTA

41- O complexo de Portnoy, de Philip Roth

42- A casa das belas adormecidas, de Yasunari Kawabata

43- O engenheiro de almas, de Josef Skvorecky

44- As vinhas da ira, de John Steinbeck

45- A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector

46- O anjo azul, de Heinrich Mann

47- Os cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rainer Maria Rilke

48- A narrativa de A. Gordon Pym, de Edgar Allan Poe

49- O passado, de Alan Pauls

50- Narrativa pioneira da Perestroika em 2 volumes: Os filhos da Rua Arbat, 35 e outros anos, de Anatoli Ribakov


TRECHOS DE A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector (foto).


Toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão. Todo momento de achar é um perder-se a si próprio. Talvez me tenha acontecido uma compreensão tão total quanto uma ignorância, e dela eu venha a sair intocada e inocente como antes. Qualquer entender meu nunca estará à altura dessa compreensão, pois viver é somente a altura a que posso chegar - meu único nível é viver.

Não tenho uma palavra a dizer. Por que não me calo, então? Mas se eu não forçar a palavra a mudez me engolfará para sempre em ondas. A palavra e a forma serão a tábua onde boiarei sobre vagalhões de mudez.

sábado, 6 de setembro de 2008

4 VERSOS

Gerana Damulakis

Para ARC

Fica quieto um instante, fica assim:
para não espantar
a poesia que carregas
quando de mais nada te vestes.

POESIA

Aramis Ribeiro Costa

Ainda que eu te mande
Toda a poesia do mundo
Ainda faltará muita poesia
para te mandar, e muito mais ainda
Para receber de ti.


Do livro de poemas Quarto Escuro (pág. 35).

MAIS OUTROS

Gerana Damulakis

DA LISTA

31- As irmãs Makioka, de Jun'ichiro Tanizaki

32-O estrangeiro, de Albert Camus

33- Desonra, de J. M. Coetzee

34- O sol também se levanta, de Ernest Hemingway

35- Dom Casmurro, de Machado de Assis

36- O conquistador, de Almeida Faria

37- Do amor e outros demônios, de Gabriel García Márquez

38- Diana, de Carlos Fuentes

39- Trilogia USA (Paralelo 42, 1919, O grande capital), de John Dos Passos

40- O tecido do outono, de António Alçada Baptista


TRECHOS de Dom Casmurro, de Machado de Assis (foto).

A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo.

Prazos largos são fáceis de subscrever; a imaginação os faz infinitos.

É certo que Capitu gostava de ser vista, e o meio mais proprio a tal fim (disse-me uma senhora, um dia) é ver também, e não há ver sem mostrar que se vê.

-Há coisas que se não dizem.
- Que se não dizem só metade; mas já que disse metade, diga tudo.

Ela amou o que me afligira (...).

Os sonhos do acordado são como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinações e das nossas recordações.

O anseio de escutar a verdade complicava-se em mim com o temor de a saber.

A vida é cheia de obrigações que a gente cumpre, por mais vontade que tenha de as infringir deslavadamente.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

COLETÂNEA ARTESANAL - CONVITE

PELE & ALMA

Lunna Guedes


Encara agora a pele
Ouça!
É possivel ouvir as inquetações todas
Mesmo enquanto reza seu sono
… e expulsa a consciência de sua alma
Ouça!
É possivel ouvir os resmungos todos
É possivel sentir a vontade de rasgar-se!


Convido vocês a participarem da próxima edição do Coletânea Artesanal - intitulada Pele & Alma. Para tal, enviem seus textos para lunnaguedes@gmail.com ou
leticia.lo.coelho@gmail.com até o dia 20 de setembro de 2008.

A Décima Quinta Edição do Coletânea Artesanal estará on line no dia 30 de setembro de 2008.

Informações adicionais:
Não esqueçam de adicionar o nome que será postado junto ao texto enviado e link de blog ou site, caso tenham disponível.
O envio dos textos não assegura a publicação - uma vez que todos os textos serão lidos e selecionados.
Os autores selecionados serão informados por e-mail.


Edição Letícia Coelho e Lunna Guedes

DOIS SONETOS: CAJAZEIRA E GLÁUCIA


MUSA

Luís Antonio Cajazeira Ramos

Nenhum perfume disse que chegaste.
Não houve sobressalto nem sinais.
Chegaste, assim como quem chega. E parte
de tudo parte, para nunca mais

achar o rumo, longe do que fui.
Resta de mim somente algo de novo,
muito antigo e completo, feito fogo
ou verdade, tão novo como luz,

cidade, paz, necessidade, pão...
Algo tão novo como tudo em vão.
E segue meu delírio a te seguir.

Nenhum perfume disse que partiste.
“E não partiste”, meu delírio insiste.
Perdido em ti, jamais dou trégua a mim.



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MUSA E SOMBRA

Gláucia Lemos

Nenhuma mágoa disse que partiste.
Não houve despedidas, ademais.
Partiste, assim como quem parte. E fica
em tudo um certo élan de não ter mais

outro rumo, distante do que é.
Resta de mim o antigo, ontem perdido,
já desfeito e incompleto, quase cinza
ou mentira, tão velho como fé,

travo e tristeza, dor e treva chã.
Algo que foi como esperança vã.
E busco em meu vacilo te buscar.

Nenhum sorriso disse que voltaste.
“E não voltaste”, impõe-se-me a verdade.
Perco-me em mim, na perda de te achar.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

OUTROS 10 TÍTULOS


Gerana Damulakis


DA LISTA

21- Pais e filhos, de Turguêniev

22- Os tambores da chuva, de Ismail Kadaré

23- O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati

24- Meu nome é vermelho, de Orhan Pamuk

25- Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino

26- A consciência de Zeno, de Italo Svevo

27- Belos e malditos, de Scott Fitzgerald

28- Riso na escuridão, de Vladimir Nabokov

29- Padre Sérgio, de Tolstói

30- O bom soldado, de Ford Madox Ford

TRECHO de O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati (foto).

Aos poucos a fé se enfraquecia. Difícil é acreditar numa coisa quando se está sozinho e não se pode falar com ninguém. Justamente naquela época Drogo deu-se conta de que os homens, ainda que possam se querer bem, permanecem sempre distantes; que se alguém sofre, a dor é totalmente sua, ninguém mais pode tomar para si uma mínima parte dela; que se alguém sofre, os outros não vão sofrer por isso, ainda que o amor seja grande, e é isso que causa a solidão da vida.


MANTRA

Fred Matos


para Isis


este frio que cresce no meu plexo
é léxico de uma língua antiga e rara
almenara tatuada na minha pele

a noite é de lã um manto negro
o meu mais cálido agasalho
de saudades e ausências salpicado

nenhuma palavra perfura o aço
nenhuma açoita o tempo
nenhuma funda a eternidade

mas aquele léxico diuturno
forasteira luz do meu vocabulário
penetra cada fresta do manto

e canto um monótono mantra
trama sânscrita desta escrita
negra etérea noite infinita.


Fred Matos é autor de Melhor que a encomenda (FUNCEB, 2006). Foto "There's that Mantra again", por biffybeans, retirada do Flickr.

CRUZAMENTO


David Nobrega



Olha moça, eu posso até contar como aconteceu, mas não vai adiantar nada.Sou apenas um traste, um dos muitos neste cidadão imenso, a tal capital, lotando cruzamentos com nossas bala, flor e carregador de celular. Ninguém dá valor prá gente - a não ser quando a gente tem garrafinha de água para vender e o trânsito pára -, quanto mais ouvidos.Naquele cruzamento deveria ter um semáfro. Eu já havia dito isso antes, mas não mando nada e ninguém presta atenção na gente.Vai aparecer em que jornal isso? Preciso lembrar de pedir pro meu moleque gravar isso pra mim. Famoso por um dia, né? Coisa de pobre. Mas sou pobre e honesto e não custa nada deixar gravado pra mostrar pros vizinho.Bom, voltando ao assunto: O caminhão desembestou lá em cima, perto daquela placa amarela que a senhora pode ver ali em cima, ó. Tá vendo, seu câmera? Não, do outro lado! Essa mesma!Pois é...ele veio correndo de um jeito que a gente, acostumado a ver acidente aqui já sabia que ia dar mer...quer dizer...ia dar pobrema. Não, não acho que tenha perdido os freio ou qualquer coisa assim, não.O carro da madama ali tava certo sabe? A preferencial é dela e quem cruzou foi o caminhão. Mas também não custava nada o motorista dar uma paradinha e espiá antes de cruzar.Não, moça. Ninguém sabe direito onde o motorista do caminhão foi parar. Assim que ele viu a mer...quer dizer...a besteira que ele aprontou, deu no pé.É, fui eu que tirei a criança do banco de trás sim. Tinha muito sangue, mas quando me enfiei no meio dos ferro deu pra ver que o sangue todo era da mãe, Deus a tenha.Os bombeiro estavam ali ó, do outro lado do rio. Até eles dar o retorno e voltar aqui, com esse trânsito todo fud...quer dizer...parado, a menininha podia ter morrido. Já pensou se pega fogo nisso tudo aí?Ah sim...eles me disse que está tudo nos conforme agora. A mãe não viveu mesmo. O motorista também não.Mas a menininha, essa eu salvei. Deus tava comigo no momento se é que a senhora me entende.Parece que o pai dela já foi lá pras Clínicas buscar ela.Recompensa? Não moça. Não quero nada não. A gente faz o que a gente pode e se não for para ajudar os outro, melhor nem viver não é mesmo?Mas bem que a senhora podia ajudar a gente e comprar umas balinha...prum sobrinho talvez?A caixa toda?!Por quê você tá chorando moça?



David Nobrega criou e escreve nos blogs coletivos, pseduo-poemas http://www.pseudo-poemas.blogspot.com/ e no Canto dos contos http://contodecanto.blogspot.com/.
Este conto está no blog http://scriptus-david.blogspot.com/. A foto que acompanha o texto foi realizada por David Nobrega.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

MAIS 10 TÍTULOS INESQUECÍVEIS


Gerana Damulakis


O poeta Goulart Gomes gosta tanto de listas quanto eu, e ficou ansioso com a minha decisão de colocar os romances inesquecíveis de 10 em 10 títulos. Ele disse que isto fica parecendo capítulo de novela e, assim, iria ter que acompanhar. Só para aplacar a curiosidade dele, que é um leitor muito respeitado por mim, vou adiantar mais 10 títulos. Os 100 já estão listados mas, creio, ficariam como algo excessivo para um blog, ninguém iria ter paciência para ler 100 títulos (apenas Goulart). Há outra razão para não apresentar a lista total: a idéia (de Kátia Borges) de reproduzir trechos de alguma das 10 obras se perderia.


DA LISTA


11- Pé na estrada, de Jack Kerouac


12- O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger


13- O jovem Törless, de Robert Musil


14- Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa


15- Adolpho, de Benjamin Constant


16- A Colmeia, de Camilo José Cela


17- Os Buddenbrooks, de Thomas Mann


18- Crime e castigo, de Dostoiévski


19- Petersburgo, de Andrei Biéli


20- O zero e o infinito, de Arthur Koestler


TRECHOS DE Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa (foto).


Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; (...) Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio, como eu solucei meu desespero.


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Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:
— Meu amor!...


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A mulher lavou o corpo, que revestiu com a melhor peça de roupa que ela tirou da trouxa dela mesma. No peito, entre as mãos postas, ainda depositou o cordão com o escapulário que tinha sido meu, e um rosário, de coquinhos de ouricuri e contas de lágrimas-de-nossa-senhora. Só faltou – ah! – a pedra ametista, tanto trazida... o Quipes veio, com as velas, que acendemos em quadral. Essas coisas se passavam perto de mim. Como tinham ido abrir a cova, cristãmente, pelo repugnar e revoltar, primeiro eu quis: — Enterrem separado dos outros, num aliso de vereda, adonde ninguém ache, nunca se saiba...

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

SETEMBRO DE 1908: PARA MACHADO, O AMOR

Gerana Damulakis

Machado de Assis morreu no dia 29 de setembro de 1908.
Minha homenagem será trazer, sobre alguns temas, algumas frases do Bruxo do Cosme Velho (epíteto que, consagrado a Machado, ficou conhecido no meio literário por conta do poema de Carlos Drummond de Andrade, "A um bruxo, com amor", quando o poeta refere-se à casa número 18 da rua Cosme Velho, Rio de Janeiro, onde morou Machado de Assis.

Do AMOR, por Machado de Assis

Cada qual sabe amar a seu modo; o modo pouco importa; o essencial é que saiba amar. (Ressureição)

O amor é uma carta, mais ou menos longa, escrita em papel velino, corte-dourado, muito cheiroso e catita; carta de parabéns quando se lê, carta de pêsames quando se acabou de ler. (A mão e a luva)

O amor nasce muita vez do costume. (A mão e a luva)

Iaiá ignorava tudo; não soletrava o amor, aprendera-o de um lance. (Iaiá Garcia)

Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis (...). (Memórias póstumas de Brás Cubas)

Os melhores amores nascem de um minuto.
(do Epistolário, carta a Salvador de Mendonça)