Gláucia Lemos
Sempre que vou ao Vale do Capão faço a caminhada dos Gatos. Não pensem que se trata de caminhar em companhia de gatos, os felinos, tampouco na companhia de moços encantadores, sarados, aqueles de sorrisos fabricados para propaganda de dentifrícios. Nada disso, o que até seria agradável. Nem gatos nem cães são encontradiços nessa caminhada. Embora uma vez um cãozinho, com cara de desamparo, estivesse parado em uma ponte e nos acompanhado por todo o percurso, até que, chegados a uma cerca, enveredasse por ela, como se finalmente tivesse encontrado seu rumo, e sequer nos agradeceu a companhia. Mas o episódio foi uma eventualidade. De ordinário, nem gatos nem cãezinhos desamparados.
O fato é que, no Capão, muitos locais têm nomes de famílias que os habitaram nos primeiros tempos em que a região foi explorada. Possivelmente seriam senhores de garimpos, no que a região era pródiga. Não tenho nenhum registro histórico em que fundamente minha suposição de que seriam senhores de garimpos. A verdade é que existem locais com nomes de famílias que lá habitaram, sabe-se lá há quantos séculos, como os Brancos, e os Gatos.
Tudo isso para falar que faço os Gatos todas as vezes, o que significa fazer todo o percurso do local chamado Gatos, em saudável e suarenta caminhada. Em uma dessas vezes, entre os amigos que iam no grupo, havia uma garotinha de uns dez anos, muito esperta e falante, que ficou me observando enquanto eu fotografava as estradas que se ramificavam a partir da principal por onde íamos, sempre que alguma me interessava. Não se contendo mais, falou: Ela está fotografando as estradas... Achando estranho que ao invés de fotografar as pessoas, estivesse fazendo fotos de chãos. Outras pessoas hão de ter pensado o mesmo. Não pensariam, se se detivessem no que me detenho quando vejo, em lugares primitivos, o serpentear de um caminho por entre alas de vegetação espessa, uma estradinha que, às vezes, parece não ter fim e que talvez se vá perder na serra que lá adiante se avista. Um caminho que algum dia, sei lá quando, foi apenas uma trilha rasgada por pés que pretenderam encurtar uma jornada, talvez alguém em fuga, um criminoso, um vingador, um perseguido, um infiel, que buscasse confundir o seu perseguidor e se atirasse entre galhos no mato fechado, na certeza de não deixar impressas na vegetação as pegadas delatoras de sua passagem, e aí começasse uma vereda.
Alguém um dia iniciou a trilha da qual nasceu a estrada que agora se oferece ao viajante, aberta como uma fruta madura a qualquer fome, franca, lisa no chão sem arestas, senão as da folhagem cinzenta que o vento joga dos galhos, onde secaram até o fim do seu tempo de verdor. Senão arestas minúsculas das areias que, em grãos, se espalharam arrastadas pelos ventos, e fizeram a forração crespa dos caminhos. Que pés endurecidos e calosos de caminhadas, pisaram em primeiro passo, os galhos derrubados para abertura das trilhas que ali crestaram por ação da soleima ou da geada, e, ressequidos, viraram pó e depois se desfizeram e se tornaram nada, justificando, no sacrifício de sua seiva, a abertura de um atalho. Por ele um garimpeiro alcançaria mais rápido o seu rumo. Chegaria mais cedo à grota na qual sua bateia perseguia a gema redentora da labuta da esperança. Ou mais rapidamente, quando, no início da noite turva e gelada de neblina, alcançaria a choupana na qual repousaria para recuperar as energias, talvez ou certamente onde o esperavam os braços mestiços e o corpo amoroso e aquecido daquela que seria todo o seu refúgio.
Ah! Quem sabe os segredos das estradas? Dos pés de ida ou de retorno, dos passos de fuga ou de regresso, quem viu pegadas, quem contou as histórias, quem conheceu os donos daqueles pés?
Ao aprendiz de fotógrafo, ladrão de imagens, que se permite violar as estradas para trazê-las impressas no egoísmo do seu prazer, cabe somente imaginar enredos, ter o consolo de colher as sombras do arvoredo banhado de luz, que as projeta no claro-escuro da areia, enquanto seu espírito se perde nas interrogações que jamais terão respostas.
O fato é que, no Capão, muitos locais têm nomes de famílias que os habitaram nos primeiros tempos em que a região foi explorada. Possivelmente seriam senhores de garimpos, no que a região era pródiga. Não tenho nenhum registro histórico em que fundamente minha suposição de que seriam senhores de garimpos. A verdade é que existem locais com nomes de famílias que lá habitaram, sabe-se lá há quantos séculos, como os Brancos, e os Gatos.
Tudo isso para falar que faço os Gatos todas as vezes, o que significa fazer todo o percurso do local chamado Gatos, em saudável e suarenta caminhada. Em uma dessas vezes, entre os amigos que iam no grupo, havia uma garotinha de uns dez anos, muito esperta e falante, que ficou me observando enquanto eu fotografava as estradas que se ramificavam a partir da principal por onde íamos, sempre que alguma me interessava. Não se contendo mais, falou: Ela está fotografando as estradas... Achando estranho que ao invés de fotografar as pessoas, estivesse fazendo fotos de chãos. Outras pessoas hão de ter pensado o mesmo. Não pensariam, se se detivessem no que me detenho quando vejo, em lugares primitivos, o serpentear de um caminho por entre alas de vegetação espessa, uma estradinha que, às vezes, parece não ter fim e que talvez se vá perder na serra que lá adiante se avista. Um caminho que algum dia, sei lá quando, foi apenas uma trilha rasgada por pés que pretenderam encurtar uma jornada, talvez alguém em fuga, um criminoso, um vingador, um perseguido, um infiel, que buscasse confundir o seu perseguidor e se atirasse entre galhos no mato fechado, na certeza de não deixar impressas na vegetação as pegadas delatoras de sua passagem, e aí começasse uma vereda.
Alguém um dia iniciou a trilha da qual nasceu a estrada que agora se oferece ao viajante, aberta como uma fruta madura a qualquer fome, franca, lisa no chão sem arestas, senão as da folhagem cinzenta que o vento joga dos galhos, onde secaram até o fim do seu tempo de verdor. Senão arestas minúsculas das areias que, em grãos, se espalharam arrastadas pelos ventos, e fizeram a forração crespa dos caminhos. Que pés endurecidos e calosos de caminhadas, pisaram em primeiro passo, os galhos derrubados para abertura das trilhas que ali crestaram por ação da soleima ou da geada, e, ressequidos, viraram pó e depois se desfizeram e se tornaram nada, justificando, no sacrifício de sua seiva, a abertura de um atalho. Por ele um garimpeiro alcançaria mais rápido o seu rumo. Chegaria mais cedo à grota na qual sua bateia perseguia a gema redentora da labuta da esperança. Ou mais rapidamente, quando, no início da noite turva e gelada de neblina, alcançaria a choupana na qual repousaria para recuperar as energias, talvez ou certamente onde o esperavam os braços mestiços e o corpo amoroso e aquecido daquela que seria todo o seu refúgio.
Ah! Quem sabe os segredos das estradas? Dos pés de ida ou de retorno, dos passos de fuga ou de regresso, quem viu pegadas, quem contou as histórias, quem conheceu os donos daqueles pés?
Ao aprendiz de fotógrafo, ladrão de imagens, que se permite violar as estradas para trazê-las impressas no egoísmo do seu prazer, cabe somente imaginar enredos, ter o consolo de colher as sombras do arvoredo banhado de luz, que as projeta no claro-escuro da areia, enquanto seu espírito se perde nas interrogações que jamais terão respostas.
Gláucia Lemos é ficcionista, poeta e cronista, com mais de 20 títulos publicados. Este texto é mais um para o livro que vem sendo construído neste blog. A foto é do Vale do Capão, por jahponeis, retirada do Flickr.