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quinta-feira, 24 de setembro de 2009

"Morrer é divertido"

«The Nabokov Code» por Ron Rosenbaum (Slate)
A ironia final de Nabokov em 138 fichas de indexação, apresentadas na sua forma original e transcritas por Dmitri.

O livro (ou a pasta de arquivo literária) será publicado pela Knopf a 17 de Novembro próximo. Até lá, repousa no 21.º andar do edifício da Random House em Nova Iorque para consulta livre, com assinatura prévia de um documento de garantia confidencialidade absoluta pelo consultante.
Cito Steiner, como fiz há mais de um ano e meio a propósito deste assunto:

«Brod em lágrimas, numa noite chuvosa, na rua dos ourives e alquimistas por baixo do castelo de Praga. Cruza-se com um livreiro muito conhecido: “Por que [sic] choras, Max?” “Acabo de saber que Franz Kafka morreu.” “Oh, lamento muito. Sei da tua estima pelo moço.” “Não compreendes. Ele ordenou-me que queimasse os seus manuscritos.” “Nesse caso terás de o fazer, pela tua honra.” “Não compreendes. Franz foi um dos maiores escritores da língua alemã.” Um momento de silêncio: “Max, tenho a solução. Por que [sic] não queimas antes os teus próprios livros?”»
In George Steiner, As Lições dos Mestres.
[Lisboa: Gradiva, 2.ª edição, Outubro de 2005, pág. 69; tradução de Rui Pires Cabral; obra original: Lessons of the Masters, 2003]

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Casanova explanado em Nabokov

Epígrafe:
«Não julgueis, para que não sejais julgados.»
Mateus, 7:1

E ao 20.º dia Casanova quebra o silêncio e diz: em boa verdade vos digo [estas são minhas, para efeitos bíblico-dramáticos] «Qualquer leitor atento de Pynchon reconhece aqui o intento autorial: a magnificação apofénica das semelhanças entre locais ou eventos distantes.»

Mas foi a apofenia da magnificação que travou pensamentos ociosos, que em Nabokov encontrariam a resposta, retirando-nos para sempre do jugo paralisante da obnoxiosidade literária:

«“Mania referencial”, chamara-lhe Herman Brink. Nestes casos, muito raros, o paciente imagina que tudo o que acontece em seu redor é uma referência velada à sua personalidade e existência. Exclui pessoas reais da conspiração porque se considera muito mais inteligente do que os outros homens. A natureza fenoménica faz-lhe sombra onde quer que vá. As nuvens no grande céu transmitem umas às outras, por meio de vagarosos sinais, informações incrivelmente minuciosas a seu respeito. Os seus mais íntimos pensamentos são discutidos ao anoitecer, num alfabeto manual, pelo esbracejar de negras árvores. Os seixos, as manchas, os salpicos de sol formam padrões que representam de uma maneira horrível mensagens que tem que interceptar. Tudo é uma cifra e de tudo ele é o tema.»
in Vladimir Nabokov, “Sinais e Símbolos”, Contos Completos II, (pág. 282)
[Lisboa: Teorema, Outubro de 2003, 351 pp.; tradução de Telma Costa; conto original escrito em inglês: “Signs and Symbols”, 1946 (pub. The New Yorker); colectânea: The Stories of Vladimir Nabokov, 1995, editada por Dmitri Nabokov.]

Depois de tudo o que se passou nos últimos cinco anos com as revelações de Dmitri sobre a desobediência à ordem dada pelo pai para destruição da obra em que trabalhava na Suíça na vizinhança da sua morte – que, todavia, vai ser publicada, como The Original of Laura –, muitos apofenevitch (patronímico) foram inoculados pela mão lúdico-manipuladora de Dmitri, ou a apofenia antropomorfizada.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

As Novidades

Vladimir NabokovSegundo Isabel Coutinho, regressada da Feira do Livro de Frankfurt, a Editorial Teorema comprou os direitos para publicação para Portugal do romance inédito de Vladimir Nabokov (1899-1977), The Original of Laura, que havia despoletado um aceso debate no mundo das letras, dadas as instruções específicas do autor russo em leito de morte na Suíça para que Véra (1902-1991), a sua mulher, destruísse o manuscrito. Véra morreu em 1991 e deixou a “batata quente” nas mãos do insuportavelmente agreste e evasivo filho de ambos, Dmitri (n. 1934), que andou a brincar durante os últimos anos ao “queimo/não queimo” com os pacientes editores, críticos e jornalistas literários, gerando um chorrilho de especulações quanto ao conteúdo do misterioso manuscrito, composto por 125 ficheiros de indexação – para quem leu Na Outra Margem da Memória (Speak, Memory; 1951, rev. 1967) e Opiniões Fortes (Strong Opinions, 1973), sabe que este era o método de composição utilizado por Nabokov nas suas obras. A conspiração dos letrados envolveu Petrarca, Ticiano, Giorgione, putativas traições passionais reveladas, e por aí fora. Se a especulação tem durado, certamente que o pobre Vladimir Vladimirovich não teria escapado aos ovnilogistas, à Cientologia e a Tom Cruise, e até às conversas privadas com o Altíssimo da emissária Alexandra Solnado.


Roberto BolañoTambém de forma misteriosa, surgiu mais um manuscrito do autor chileno Roberto Bolaño (1953-2003), intitulado de El Tercer Reich, eventualmente escrito antes de Os Detectives Selvagens (Los Detectives Salvajes, 1998), e que entra pelo mundo dos fanáticos alienados dos jogos de estratégia, em que o protagonista, inventor de um jogo de realidade virtual (jogado em tabuleiro) denominado por “O Terceiro Reich” e participante alemão num torneio mundial, se desloca à Costa Brava espanhola para umas férias com a sua namorada, cujo jogo assume o papel de encruzilhada no entretecer de uma teia onírica de proporções cataclísmicas para o jovem autor. Não consegui descortinar pelo texto de Isabel Coutinho se os direitos desta publicação haviam ou não sido adquiridos pelo editor Carlos Veiga Ferreira da Teorema – editora que já havia publicado de Bolaño Os Detectives Selvagens e Estrela Distante (Estrella distante, 1996). No entanto, num país que ainda tem por publicar o magistral 2666 (2004) – obra póstuma, composta por cinco livros, que Bolaño pretendia ver publicados separadamente, com uma periodicidade anual, para garantir uma fonte de sustento à sua família –, e que ainda não publicou a esmagadora maioria da sua obra, acho, no mínimo, extravagante (a tal singularidade lusa que não me canso de repisar) que se opte pela publicação do manuscrito emergido das trevas, e isto apesar da datação posterior de 2666. A ver vamos.


Paul AusterPhilip Roth
Para 2009, no mundos dos vivos e sem manuscritos secretos para combustão ou qualquer outro uso que se queira dar ao papel, regressam ao, ou melhor, não saem dele (do), mercado os incansáveis autores de origem judaica, nascidos em Newark, Paul Auster (n. 1947) e Philip Roth (n. 1933) – têm, nos últimos anos publicado uma obra de ficção por ano. Auster regressa com Invisible, obra garantida para Portugal pela Asa. Roth com The Humbling, romance garantido pela Dom Quixote.

sábado, 25 de outubro de 2008

Solução nabokoviana

Se considerou como válidas as quatro últimas proposições que, em conjunto, deveriam fazer um bom leitor, então acertou.
Eram óbvias, apesar de, segundo o autor, a maioria dos alunos (ainda não diplomados) se haver inclinado para a identificação emocional (2), para a acção (4) e para a perspectiva socioeconómica ou histórica (3) – sobre esta última Nabokov repreende, com o seu habitual desdém, aqueles que buscam o conhecimento de um local, dos costumes ou de uma época através dos romances; referindo-se, por exemplo, às putativas descrições histórico-etnográficas da Inglaterra rural dos séculos XVIII e XIX nos romances de Jane Austen, quando a autora não saía de casa e apenas conhecia a sala de visitas de um Ministro da Igreja Anglicana. Um romance é um conto de fadas e não um tratado de História ou um compêndio de investigação histórica.

«(…) o bom leitor é aquele que possui imaginação, memória, um dicionário e algum sentido artístico – sentido esse que me proponho desenvolver em mim e nos outros sempre que tenha a oportunidade de o fazer.»
Vladimir Nabokov, Aulas de Literatura, pág. 27.
[Lisboa: Relógio D’Água, Fevereiro de 2004, 446 pp.; tradução de Salvato Telles de Menezes; obra original: Lectures on Literature, 1980.]

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Teste Nabokov

(em jeito de preâmbulo sobre algo que poderá surgir, como mini-dissertação, dentro de um texto de maior dimensão e como auxiliar das minhas divagações de comum leitor.)

Proponho um pequeno exercício engendrado por Nabokov, quando se deslocou a uma cidade universitária de província onde deu umas palestras, que, para além de ter sido um excelente professor de Literatura, reunia em sim os três requisitos da genialidade literária: um encantador (magia), um contador de histórias (história) e um professor (lição).

Seleccione quatro respostas para a questão de como deve ser um leitor para ser um bom leitor:

  1. O leitor deve pertencer a um clube de livros.
  2. O leitor deve identificar-se com o herói ou a heroína.
  3. O leitor deve concentrar-se no aspecto socioeconómico.
  4. O leitor deve preferir uma história com acção e diálogos a um (sic) que os não tenha.
  5. O leitor deve ter visto o livro em filme.
  6. O leitor deve ser um escritor debutante.
  7. O leitor deve possuir imaginação.
  8. O leitor deve possuir boa memória.
  9. O leitor deve ter um bom dicionário.
  10. O leitor deve possuir algum sentido artístico.

Fonte: óbvia e deliberadamente deixada em branco (tradução de Salvato Telles de Menezes).

sábado, 7 de junho de 2008

Volodya, de novo

Vladimir NabokovEnquanto Dmitri filho único de Vladimir Nabokov (1899-1977) anda, em letras de imprensa, a distrair meio mundo literário com a fábula dos manuscritos encerrados no cofre-forte de um banco suíço que só pode ser aberto pela combinação de chaves detidas por duas pessoas – qual trama browniana. Vão, estranhamente, surgindo uns dispersos do ilustre pai, escritos originalmente em russo e posteriormente traduzidos pelo filho – ou seja, manuscritos provavelmente com data anterior ao início da década de 40 do século passado, altura a partir da qual Nabokov, já nos Estados Unidos, passou a escrever exclusivamente em inglês.
Desta feita, surgiu do nada, no número desta semana da revista norte-americana The New Yorker (de 9 a 16 de Junho de 2008) um conto inédito do eminente escritor russo-americano intitulado “Natasha”.
Enquanto nada sai sobre o alegado romance inacabado The Original of Laura, depois de Lolita (1955) e de O Encantador (Volshebnik, 1939; publicado postumamente em 1985 por Dmitri sob o título The Enchanter, como uma versão, em forma de novela, mais punitiva de Lolita; a mácula da pederastia contribui para o desfecho trágico do perpetrador, dando-se a redenção da ninfeta sem nome), surge-nos agora “Natasha” provavelmente escrito em 1925.
Alguém me consegue explicar, para além de uma provável cupidez, o que anda Dmitri a fazer com o espólio de seu pai? Seguramente, a par de Borges, o melhor escritor dos 2.º e 3.º quartéis do século XX, e um dos melhores escritores de todos os tempos?

Eis as primeiras palavras do conto:

«On the stairs Natasha ran into her neighbor from across the hall, Baron Wolfe. He was somewhat laboriously ascending the bare wooden steps, caressing the bannister with his hand and whistling softly through his teeth.
“Where are you off to in such a hurry, Natasha?”
“To the drugstore to get a prescription filled. The doctor was just here. Father is better.”
“Ah, that’s good news.”
She flitted past in her rustling raincoat, hatless.
Leaning over the bannister, Wolfe glanced back at her. For an instant he caught sight from overhead of the sleek, girlish part in her hair. Still whistling, he climbed to the top floor, threw his rain-soaked briefcase on the bed, then thoroughly and satisfyingly washed and dried his hands.
[…]»

(versão completa aqui)

sábado, 3 de maio de 2008

Quac

No dia 23 de Abril do mesmo ano (embora por calendários diferentes, separados por 10 dias), 1616, morriam William Shakespeare e Miguel de Cervantes, em Stratford-upon-Avon e Madrid, respectivamente, data aproveitada pela UNESCO em 1995 para dar início à celebração do Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor.
Este ano, por terras lusas, saía para as bancas o primeiro número da renovada revista Ler (edição n.º 69 desde a sua inauguração), de novo dirigida por Francisco José Viegas e agora com periodicidade mensal.
Na capa, para além do principal destaque dado a uma entrevista dada por António Lobo Antunes a Carlos Vaz Marques – este último, é, no meu entender, de longe e desde há muito, o melhor entrevistador português da actualidade sobre assuntos da ciência e da cultura –, dá-se especial relevo a um artigo, em jeito de lista, que no meu caso, um listómano assumido, sobressalta da mesma forma como a heroína sobressaltava W.S. Burroughs – oferecesse a Ler uns gramas… –, sob o título de “Os 50 autores mais influentes no século XX” [pp. 48-59]. Na página 48 surge o subtítulo “e o que aprendemos ou devíamos ter aprendido com eles”, assinado pelo jornalista José Mário Silva. Sobre a dita lista e sem um texto introdutório de elucidação sobre os critérios (artísticos, estéticos, técnicos, comerciais e/ou sociológicos) que conferiam a elegibilidade dos autores como um bloco, muito poderia ter sido dito – as anotações apensas a cada nome, por mais extensas ou desenvolvidas que sejam, enfermam sempre dessa necessária visão global. E, neste caso, a posição mais cómoda é a do crítico, que desde logo poderia destacar um conjunto de nomes que foram esquecidos e outros que incompreensivelmente figuram no referido arrolamento.
Mesmo o critério temporal, o único verdadeiramente explícito, parece haver sido derrogado quando se inclui o questionabilíssimo Emilio Salgari (1862-1911) e se deixa de fora o Mestre Henry James (1943-1916), com um bom punhado de romances, novelas e contos escritos e publicados já no século XX; situação que se agrava com a não inclusão de um dos melhores poetas de todos os tempos, Nobel da Literatura em 1923, W.B. Yeats (1865-1939). Dos vivos a inclusão de Rushdie (n. 1947) e principalmente de Salinger (n. 1919) – que para além de À Espera no Centeio (ou Agulha no Palheiro; The Catcher in the Rye, 1951), andou apenas à volta dos hinduísmos e dos jovens místicos e assaz aborrecedores Glass e depois desapareceu – é mais do que discutível, quando se deixa de fora Pynchon (n. 1937), Roth (n. 1933), DeLillo (n. 1936), McCarthy (n. 1933) ou Updike (n. 1932), conjuntamente com o mais imperdoável esquecimento (ou não, desconheço o critério), o do inigualável Saul Bellow (1915-2005), Nobel da Literatura em 1976; ou até de Capote (1924-1984) ou Mailer (1923-2007), que, em estilos diametralmente opostos, revolucionaram as letras norte-americanas com os habituais efeitos de contagio para o universo das diferentes literaturas.

Muito poderia ser ainda dito sobre a referida listagem, como a inclusão de Barbara Cartland e de J.K. Rowling, e a não inclusão de nomes como Chesterton, Gide, Malraux ou Blanchot. Todavia, arriscando-me a proferir um lugar-comum, tudo isso é discutível e de sobremaneira relativo. Jamais se poderá fazer uma lista desta estirpe com alguma objectividade, entenda-se com o toque de mágica de agradar a todos. Gosto de lá ver Umberto Eco – como gostaria de ver incluído pelo menos um dos beatniks, porque não Kerouac? –, mas intuo que uma esmagadora maioria dos leitores acha a sua inclusão mais do que discutível.

Finalmente, a propósito deste artigo, li
um texto divertidíssimo do Alexandre Andrade, em que confessa que, ainda nesta Primavera, irá tatuar na sua omoplata direita a labiríntica e claustrofóbica inscrição perecquiana “11, rue Simon-Crubellier”José Luís Peixoto tem tatuado num dos braços “Yoknapatawpha” o condado imaginário que aparece na maioria dos romances (rústicos ou de folclore regional como lhes chamava Nabokov) de William Faulkner. Pois, eu, meu caro Alexandre ponho-me a nu, e revelo aqui e agora, com prova documental, que a pele que cobre este arcaboiço, que se foi agigantando, desde o escultural até levemente (que ironia) aceitável para a vista, desde o fatídico dia para qualquer homem... (adiante) dispõe de 3 (três) tatuagens Por amor a Borgespor Borges (nas costas), Por amor a Nabokovpor Nabokov (no braço esquerdo e que enorme heresia para um quase quase russo branco, mas o direito já tinha o indispensável “amor de mãe”) e uma terceira num local inconfessável, tal como a daquele bombeiro voluntário bem abonado dos chistes ordinários, residente na freguesia de Valbom, concelho de Gondomar, distrito do Porto, que aparente e molemente havia mandado tatuar a palavra “Bombom”…
Um dos romances da minha vida, foi escrito por um autor inglês chamado Malcolm Lowry, que conta a história fatídica, ocorrida num só dia, o dia dos mortos, de um cônsul inglês, de seu nome Geoffrey Firmin, numa terra ficcionada (que chegou a existir durante o domínio do Império Azteca), onde hoje existe Cuernavaca no México.
Trata-se de um lânguido Quac

Pergunta ao estilo Yorn: Que mais lugares imaginários saídos da literatura tens tu tatuados no teu corpo?

quarta-feira, 30 de abril de 2008

0. Intróito: preliminares entomológicos

Gregor transformou-se em barata* gigante.
Eu não: fiz-me aranhiço,
tão leve que uma leve brisa o faz
oscilar no seu fio de baba lisa.
Até que, contra a lei da natureza,
creio que tenho peso negativo,
e me elevo no ar se me não prendo
ao canto mais escuro desta ilha.
Quando descer à teia derradeira
não se verá no mundo alteração, ou só
talvez alguma mosca mais contente.
Em noites de luar, na alta esquina,
ficará a brilhar, mas sem ser vista,
a estrela que tracei como armadilha.

António Franco Alexandre, Aracne (2004)



Notas anódinas:
*Vladimir Nabokov, conhecido entomólogo e lepidopterologista, actividades que exercia para além da sua ímpar carreira literária – na minha modesta opinião, a par de Borges, o melhor escritor do século XX, curiosamente nascidos no mesmo ano, 1899, e sem qualquer reconhecimento da heteróclita Academia Sueca –, refuta a ideia quase generalizada, nunca referenciada na novela de Kafka**, de o insecto, em que, naquela manhã ao acordar no seu quarto Gregor Samsa se metamorfoseou, se tratar de uma barata:
«Os comentadores dizem [que é uma] barata, mas é óbvio que isso não faz sentido. A barata é um insecto de forma chata com grandes pernas, e Gregor é tudo menos chato: é convexo dos dois lados, o abdominal e o dorsal, as suas patas são pequenas. Parece-se com uma barata só num aspecto: a cor castanha.» Vladimir Nabokov, Aulas de Literatura, pág. 299 (Lisboa: Relógio D’Água, Fevereiro de 2004, 449 pp.; tradução de Salvato Telles de Menezes; obra original: Lectures on Literature, 1980).

**Aliás, o autor checo preocupou-se em afastar a possível especulação sobre a tipologia do invertebrado, para não prejudicar a narrativa com descrições supérfluas, chegando ao pormenor de indicar ao seu editor que a capa para a primeira publicação (1915) jamais deveria incluir qualquer tipo de insecto, mesmo que este surgisse num plano secundário.

terça-feira, 18 de março de 2008

Obra (quase) Completa

Winfried Georg Maximilian Sebald
(1944-2001)

("Texturas oníricas", umas luzes sobre o mais enigmático e arrepiantemente profético trabalho de V.N. – embora seja quase indiferente para muitos nabokovianos –, escrito numa quarto de banho do seu quarto de hotel em Paris, para não acordar Dmitri, então com 5 anos.)

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Pequenas notas sobre quase nada

  1. O Código Nabokov: Rosenbaum strikes back (Slate)
  2. Cinema: (a) esplendorosa adaptação de Este País Não É para Velhos pelos irmãos Coen. (b) Não se compreende a não-nomeação de Tommy Lee Jones para Óscar de Melhor Actor pela imaculada interpretação do Xerife Ed Tom Bell (a alma do romance tão bem transposta para o filme). (c) Bardem, na pele de Anton Chigurh, é soberbo. (d) Iniciei o texto sobre a minha apreciação do filme, arquivei-o, por enquanto, e para quem estiver interessado, remeto-vos para o texto que escrevi no passado dia 1 de Dezembro sobre o romance de Cormac McCarthy, editado pela Relógio D'Água. Não há muito a acrescentar... Joel e Ethan captaram quase tudo; Cormac pode sentir-se mais que recompensado.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

O pirómano relutante

(continuando a série: EA Sports to the game!)

«Brod em lágrimas, numa noite chuvosa, na rua dos ourives e alquimistas por baixo do castelo de Praga. Cruza-se com um livreiro muito conhecido: “Por que [sic] choras, Max?” “Acabo de saber que Franz Kafka morreu.” “Oh, lamento muito. Sei da tua estima pelo moço.” “Não compreendes. Ele ordenou-me que queimasse os seus manuscritos.” “Nesse caso terás de o fazer, pela tua honra.” “Não compreendes. Franz foi um dos maiores escritores da língua alemã.” Um momento de silêncio: “Max, tenho a solução. Por que [sic] não queimas antes os teus próprios livros?”»
In George Steiner, As Lições dos Mestres.

[Lisboa: Gradiva, 2.ª edição, Outubro de 2005, pág. 69; tradução de Rui Pires Cabral; obra original: Lessons of the Masters, 2003]


A comparação do incomparável: Brod e Kafka; Virgílio e Varius; Escritório de Lourenço Pinto e Carolina Salgado

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Se eu fosse Dmitri...

Dmitri e Vladimir Nabokov ©Magnum
Este é o nome da mais recente e viciante diversão meta-literária à escala do globo. Publicações da especialidade e até as exaustivas revistas do coração referiram o fenómeno que, com toda a virulência (literária), se espalhou por todo o lado como cogumelos famélicos – e já sabemos quais as consequências destes prodígios sempre que aplicados às artes literárias; dizem que tem que ver com um senhor alemão, um tal de Zeitgeist...
Facto comprovado (1): não há quem lhe seja indiferente, mesmo ignorando o protagonista e/ou a sua obra.
Facto comprovado (2): todos querem ser Dmitri, vestir-lhe a pele ou pôr-se nos seus sapatos – se o primeiro acto arrepia pelo seu buffalo-billianismo, o segundo não é lá muito higiénico, fungicamente falando.
Todos arriscam lançando o seu palpite sobre a existência e o destino a dar a uma obra que, a honrar-se o putativo compromisso de antanho, deveria pelos dias deste século jazer em cinzas algures pela Confederação Helvética – centro nevrálgico: Montreux Palace Hotel.
Porém, a loucura instalou-se, e até já prevejo a aquisição dos direitos exclusivos para a produção de software – formato PC ou consolas de jogos – pela multinacional norte-americana EA Sports, provavelmente com o lançamento mundial de “If I were Dmitri...” para o início da época natalícia de 2008.

Na passada quinta-feira, o
Times de Londres narrava de novo a história dos 50 cartões de indexação que, por vontade expressa do autor – manifestada em lenta agonia no percebido leito de morte –, deviam perecer pelo método bradburiano dos 232,8 ºC – a tal temperatura a que ardem os livros: It was a pleasure to burn.
Uma vez mais – e esgotaram-se-me as reservas de paciência – foram contados todos os pormenores, sem qualquer tipo de originalidade ou de revelação, com a excepção de uma curta sondagem de opinião dirigida a destacadas figuras do meio literário: John Banville embarca no movimento pró-vida do manuscrito – pretende afastá-lo do tenebroso espectro dos cofres-fortes de vão de escada –, enquanto Tom Stoppard faz uso do lança-chamas e Edmund White fica-se por um amaneirado, arrebicado e inconsequente “sim, mas… talvez não, porventura…” – pressupondo que Nabokov, onde estiver, ainda se recorda, aplaudindo, de Elena.
No centro do debate está o provecto e pueril, provocador e irresoluto filho único de Véra e Vladimir Nabokov: Dmitri, hoje com 73 anos.
A 2 de Julho de 1977, Vladimir Vladimirovich morre num hospital suíço vítima de infecção pulmonar. Véra foi incumbida pelo marido de destruir o esboço de The Original of Laura e todas as suas notas. No entanto, Véra morre em 1991, sem haver tomado as providências pirómanas que lhe foram encomendadas, deixando assim o berbicacho nas mãos de Dmitri, que de lá para cá vem a desfrutar de um prazer sádico do “mostro/não mostro”, não se furtando, por vezes, a assumir o papel do menino travesso, que deixa cair umas pinguinhas pela incontinência verbal, como fez na celebração dos 100 anos do nascimento do seu pai (1999) na Cornell University, lendo uma frase de uma obra de Nabokov, pedindo ao público para a identificar: todos a identificaram, pela novidade, como sendo um curto excerto de The Original of Laura.

Neste momento, muito por culpa do comportamento errático de Dmitri, a história caminha a passos largos para a bambochata meta-literária: assiste-se já a um arraial de conjecturas, interpretações, supostas pistas deixadas no subtexto. Uns e outros recuperaram as especulações, levantadas por Andrew Field na sua biografia sobre Nabokov, reiteradas na
National Review pela recensão desta obra por outro estudioso nabokoviano, Jeffrey Meyers, sobre eventuais problemas relacionados com o álcool, para além de se aventar a hipótese de o jovem Vladimir ter sido vítima de pederastia perpetrada por um tio homossexual – o suficiente (sem exbicionismos) pode ser lido na sua obra autobiográfica Na Outra Margem da Memória (Speak, Memory; 1951, revista e actualizada em 1966).
Caminhamos a passos largos para o frenesim estúrdio dos esoterismos, da simbologia e da teoria da conspiração. E, não ficaria admirado se Fogo Pálido (Pale Fire, 1962) de repente se metamorfoseasse, qual ninfa lepidóptera, na Mona Lisa de Nabokov e Laura passasse a ser o lado feminino veladamente desenvolvido, como uma borboleta hermafrodita que transcorre a obra, e que explica o Yin (Charles Kinbote) e o Yang (John Francis Shade) – ou será o contrário? Shade, anag. para Hades, ou lit. sombra –, a luta de paradoxos que cria a harmonia… interior? Vestiria Nabokov em segredo a rendada lingerie de Véra? E se sim, ficaria horas a remirar-se com lascívia ao espelho ao mesmo tempo que ensaiava uma coreografia de corista de vaudeville?
Proposta para best-seller: O Código Nabokov – editoras, para eventuais contactos, usar o e-mail deste blogue.

Regressando ao artigo do Times, Banville propõe uma solução radical, mas absolutamente indefensável naquilo que ela tem de muito portuguesa – haverá sangue luso a correr naquelas veias eminentemente irlandesas? Ou seja, criar uma comissão…

«Se eu fosse Dmitri Nabokov, que graças a Deus não sou, eu dactilografava o fragmento e mostrava-o a dois ou três reputados e amáveis críticos – por exemplo, James Wood, Harold Bloom – e talvez também a um ou dois escritores – John Updike, Martin Amis – para que dessem a sua opinião sobre se aquele deveria ser ou não publicado.»

John Banville in The Times, 14/02/2008 [tradução: AMC]


Wood, Bloom, Updike e Amis, OK. Conquanto se contacte o Rui Gomes da Silva e o Luís Filipe Menezes para o exercício do contraditório, para além da contratação a peso de ouro de um dos representantes da West Coast of Europe com propensão opinativa: José Mourinho, tendo o quase indispensável Rui Santos e a sua indumentária como suplentes.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Joycianismos

Rui Santos (o enfarpeladoximoro gælusofutebolutocrata) responde à flash interview, citando, no muito seu entaramelado e, por vezes, silente e frenético estilo expositivo – lá está, as gravatas são os olhos da alma… como? –, a melhor caracterização de Finnegans Wake:

«O Ulisses paira acima dos restantes escritos de Joyce, e em comparação com a sua nobre originalidade e rara lucidez de pensamento e estilo, o infeliz Finnegans Wake não é mais do que uma massa insípida e informe de falso folclore, um empadão frio, um ressonar que nunca mais acaba no quarto do lado, o que ainda piora mais as coisas para quem sofre de insónia como eu [e, já agora, eu, atente-se na hora]. Além disso, sempre detestei a literatura regional, cheia de anciãos esquisitos e pronúncias imitadas. A fachada de Finnegans Wake dissimula um prédio de apartamentos muito convencional e sem cor, e só os raros bocadinhos de entoações celestiais o redimem duma insipidez gritante. Sei que vou ser excomungado por este pronunciamento.»
Vladimir Nabokov, Opiniões Fortes, pp. 95-96 (entrevista dada ao Wisconsin Studies of Contemporary Literature em Setembro de 1966, publicada no Vol. III, n.º 2 (1967) da revista).


Pergunta da semana:
«Será que Sepsis e Tiuí, o primeiro um vocábulo patologicamente putrefacto e o segundo uma onomatopeia ornitológica, irão ser úteis ao enriquecimento lexical no futebol português?»
(respostas para o e-mail do programa)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Do enfado

I
[epitáfio apócrifo]
«Deixa-me em paz, diz a triste Morte» (falsa legenda num túmulo vazio).
Vladimir Nabokov, Opiniões Fortes (Strong Opinions, 1973)

II
[ou como terminar, rematando a ainda tão actual reflexão "Da Certeza"]
«Tendo visto com que lucidez e coerência lógica certos loucos justificam, a si próprios e aos outros, as suas ideias delirantes, perdi para sempre a segura certeza da lucidez da minha lucidez.»
Bernardo Soares, Livro do Desassosego

III
[rogo]
«Antepassado meu, antigo artífice, ampara-me e ajuda-me agora e sempre.»
James Joyce, Retrato do Artista quando Jovem (A Portrait of the Artist as a Young Man, 1916)

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Nabokov on Kafka

Vladimir NabokovNão, não vou falar sobre o tema recorrente das injustiças cometidas pela Academia Sueca na atribuição dos prémios Nobel da Literatura. É certo que juntei, num deslumbrante e complexo par, os imortais Vladimir Nabokov (1899-1977) e Franz Kafka (1883-1924), mas nem o primeiro publicou em vida material suficiente para despertar a atenção do ininteligível grupo de nórdicos – note-se que os seus três romances O Processo (Der Prozeß, 1925), O Castelo (Das Schloß, 1926) e América (Amerika / Der Verschollene, 1927) foram publicados postumamente pelo seu amigo Max Brod, felizmente um mau executor enquanto testamenteiro –, nem o segundo era politicamente correcto, como russo branco: ele e a família fugiram de São Petersburgo após a subida ao poder do regime bolchevique em 1917, exilando-se em Inglaterra em 1919 e posteriormente na Alemanha, seguindo-se em 1937 a França; mudou-se para os Estados Unidos em 1940 com a entrada dos nazis em Paris; deixou a América em 1960, instalando-se definitivamente em Montreux, na Suíça, onde morreu em 1977.

Mas, o que me trouxe aqui, a estas curtas linhas de quase divagação, foi a descoberta de um tesouro no imenso oceano videográfico do YouTube. Trata-se de um curto programa televisivo de 1989, realizado pelo húngaro Peter Medak, que recria a prelecção de Nabokov na Cornell University na Califórnia sobre a obra-prima A Metamorfose (Die Verwandlung, 1915) de Franz Kafka, inserida nas suas famosas e publicadas Aulas de Literatura*.
No papel de Nabokov vemos Christopher Plummer que, aparentemente, bem vestido e caracterizado para o efeito, se assemelha na indumentária e em alguns traços fisionómicos ao escritor russo-americano. Mas conta quem o ouviu e/ou assistiu às suas aulas que tanto a dicção como a postura e o temperamento – cínico, sobranceiro e verrinoso – foram fielmente reproduzidos por Plummer, como se nele houvesse encarnado o espectro do rutilante autor de Lolita e de Fogo Pálido.

Para os fãs, os mais atentos às paixões e ódios de Nabokov, a frase que se segue encaixa nas suas Opiniões Fortes e na imperativa Speak, MemoryNa Outra Margem da Memória, em Portugal:

«[Kafka] is the greatest German writer of our times. Yes, yes (…) such poets as Rilke or such novelists as Thomas Mann are dwarfs and plaster saints in comparison to him.»
(Como foi possível Nabokov, mesmo em duas curtas frases, não haver introduzido o nome do Bruxo Vienense ou um epíteto deste género?)



Carregar aqui para ver a 2.ª parte do vídeo.
Falta a 3.ª parte, resta esperar e apelar à indulgência do utilizador do YouTube que colocou as partes anteriores.


*Livro editado em Portugal: Vladimir Nabokov, Aulas de Literatura. Lisboa: Relógio D’Água, 1.ª edição, 2004, 446 pp. (tradução de Salvato Telles de Menezes; introdução e posfácio de Helena Ayala Botto (ed. port.); introdução de John Updike; obra original: Lectures on Literature, 1980).

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Opiniões Fortes

Vladimir NabokovHá 30 anos, no dia 2 de Julho de 1977, morria no Palace Hotel de Montreux, Suíça, o escritor russo Vladimir Vladimirovich Nabokov (n. 22 de Abril de 1899), vítima de uma infecção viral.

Em jeito de homenagem, deixo aqui ficar algumas das Opiniões Fortes*, ordenadas aleatoriamente, quase sempre carregadas da empáfia e da verrina que lhe eram típicas, de um dos maiores escritores de todos os tempos.

Sobre Freud [o seu alvo predilecto] e de o haver chamado de doutor-bruxo:
«(…) detesto não um mas quatro doutores: Dr. Freud, o Dr. Jivago, o Dr. Schweitzer e o Dr. Castro. É claro, o primeiro ganha a palma, como dizem os ajudantes na sala de dissecação. Não faço tenções de sonhar as ordinarices dos sonhos da classe média dum velho ranzinza austríaco de guarda-chuva roto. Sugiro também que a fé freudiana conduz a consequências éticas perigosas, como quando um asqueroso assassino com o cérebro de uma ténia recebe uma sentença mais leve porque a mãe lhe bateu de mais ou de menos… dá para os dois lados. A gritaria freudiana parece-me tanto uma farsa como o gigantone de madeira polida com um buraco polido no meio que não representa nada a não ser a face alvar de um filisteu a quem disseram que se trata duma grande escultura produzida pelo maior homem das cavernas vivo.» (BBC 2, 1968)

Sobre escritores contemporâneos da sua preferência:
«Tenho alguns favoritos… por exemplo, Robbe-Grillet e Borges. Como se respira livre e reconhecidamente nos maravilhosos labirintos de ambos! Gosto da sua lucidez de pensamento, da pureza e da poesia, da miragem no espelho.» (Playboy, 1964)

Sobre O Duplo de Dostoievski:
«O Duplo de Dostoevskii [sic] é a sua melhor obra, embora seja uma imitação evidente e sem vergonha do “Nariz” de Gogol (…)» (Wisconsin Studies in Contemporary Literature, 1967)

Sobre o uso da expressão “génio” para qualificar escritores:
«A palavra “génio” circula bastante generosamente (…) Pelo menos em inglês, porque a sua contrapartida russa, geniy, é um termo carregadíssimo de uma espécie de respeito gutural e só se usa com um número muito pequeno de escritores, Shakespeare, Milton, Tolstoi. Com autores profundamente amados, como Turgenev [Ivan Turguéniev] e Tchekhov, os russos utilizam o termo mais magro, talant, talento, e não génio (…) ainda me sinto horrorizado ao ver a palavra “génio” aplicada a qualquer contador de histórias importante, como Maupassant ou Maugham. Génio continua a significar para mim, no meu enfado e orgulho de russos na frase, um dom raro, ofuscante, o génio de James Joyce, e não o talento de Henry James.» (BBC 2, 1969)

Sobre a frequente comparação da sua escrita com Borges e Beckett, por alguns críticos:
«Oh, sei perfeitamente quem são esses comentadores: espíritos lentos, dactilógrafos apressados! Fariam melhor se ligassem Beckett a Maeterlinck e Borges a Anatole France. Poderia ser mais instrutivo do que dar à língua sobre um estranho.» (Vogue, 1969)

Sobre a literatura americana pós-1945:
«(…) raramente existem simultaneamente numa determinada geração mais do que dois ou três escritores verdadeiramente de primeira ordem. Penso que Salinger e Updike são de longe os artistas mais finos dos anos mais recentes. O falso best-seller sexy, o romance ordinário, violento, o tratamento novelístico de problemas sociais ou políticos, e, em geral, os romances constituídos principalmente por diálogo ou comentário social, esses estão banidos terminantemente da minha mesinha-de-cabeceira. E a mistura popular de pornografia e trapaça idealista dá-me absolutamente vómitos.» (TV 13 NY, 1965)

E para terminar em beleza, à pergunta «Qual é a sua posição no mundo das letras?», respondeu:
«É linda a vista aqui de cima.» (The New York Times Book Review, 1972)

Todas as citações foram retiradas de:
Vladimir Nabokov, Opiniões Fortes. Lisboa: Assírio & Alvim, 1.ª edição, Maio de 2005, 377 pp. (tradução de Carlos Leite; obra original: Strong Opinions, 1973).

domingo, 24 de junho de 2007

Romantismo

10.º Passo: prossegue o inventário pessoal, admitindo com convicção os nossos erros.
(seguindo os passos até ao São João... + 2 d.)




Poderia começar por dizer que todos os romances felizes são parecidos, cada romance infeliz é infeliz à sua maneira. Poderia, ademais, para ser mais preciso, trocar o substantivo “romance” pela forma elíptica adjectivada “clássico”, se bem que tivesse de acrescentar a locução adjectiva “menos conseguido”. E, por último, transmudar a célebre asserção tolstoiana das “famílias” para os “romances”, para além de encerrar uma arteirice discursiva, jamais se poderá comparar uma “família”, essa unidade social basilar na evolução do homem, com um “romance”, uma mera invenção de uma mente, normalmente, perturbada…

Recomeço…
Pais e filhos é um “romance” sobre “famílias” como reflexo de todo um sistema social tipicamente feudal da Rússia de meados do século XIX. Bom, adiante…

Pais e Filhos, romance escrito por Ivan Turguéniev (1818-1883) – considerado como o “mais ocidental” dos autores russos novecentistas –, foi originalmente publicado em 1862, ano que, de forma indelével, assinalou nos anais da História do império dos czares o surgimento do movimento cultural do niilismo russo – cuja etimologia deriva da expressão do Latim “nihil”, que significa…

[pressinto o fim, nasce em mim uma vontade de divagar, como se ao exceder um imaginário limite de palavras, o inebriamento que o vício nos dissemina nas entranhas perdurasse para além do limite que estipulámos, o fim].

[O niilismo russo] que defendia o fim do opressivo sistema feudal, fortemente hierarquizado e dominado por uma classe aristocrática corrupta, frívola e indolente e que se limitava a explorar os desprotegidos que, imbuídos de uma religiosidade acerba e de um tradicionalismo paralisante, não contestavam o poder despótico das instituições de governo do império influenciadas por essa aristocracia.
Turguéniev, um admirador confesso das democracias, das sociedades e das escolas de pensamento ocidentais, designadamente das francesa e inglesa, constrói uma narrativa que, de uma forma veemente, através do seu personagem principal Evguéni Vassílitch Bazárov, condena a eslavofilia, machista, absoluta e servil, intensamente arreigada na sociedade russa que lhe foi contemporânea – note-se que a acção decorre no ano de 1959, logo após o términos do reinado tirânico de Nicolau I (m. 1855), encontrando-se a Rússia nos primeiros anos de governação do seu filho, o czar Alexandre II, cujo assassinato em 1881 iria marcar o fim deste movimento, indecorosamente confundido com e absorvido pelo movimento anarquista.
Bazárov, com o seu austero niilismo, condena todo o tipo de romantismo ou de arte, que considera como palavras sinónimas entre si, assim como com inutilidade, sem qualquer tipo de valor, trata-se apenas da «arte de acumular dinheiro, ou de acabar com as hemorróidas!»: «um bom químico é vinte vezes mais útil do que qualquer poeta» (pág. 32)
Arkádi Nikoláevitch Kirsánov regressa a casa, à cidade de X… (denominada por Marino pelo pai Nikolai Petróvitch Kirsánov, que vive com o seu irmão Pável), após a frequência da Universidade em São Petersburgo, trazendo consigo o seu colega, amigo e, de certa forma, mentor e iniciador no niilismo, Bazárov. Este é o ponto de origem de todo o conflito geracional que se arrasta pela obra.
Atente-se em parte de um delicioso diálogo estabelecido entre Arkádi e Bazárov sobre o pai do primeiro:

«(…)
– Anteontem dei com ele a ler Púchkin – continuou Bazárov entretanto. – Fá-lo ver, por favor, que isso já não serve para nada. Ele não é nenhum rapazinho, é tempo de deixar essas tolices. E que gosto esse de ser romântico nestes tempos! Dá-lhe qualquer coisa sensata para ler.
– Dar-lhe o quê? – perguntou Arkádi.
– Sim, eu acho que o
Stoff und Kraft
, de Büchner, para começar.
– Eu também acho – aprovou Arkádi. –
Stoff und Kraft está escrito numa linguagem popular.» (pág. 54)

Repleto de personagens fascinantes, cujos passados, minuciosamente descritos, justificam, como uma herança genética, as distintas maneiras de ver o mundo, fortemente influenciadas pelo espírito do tempo por que a Rússia atravessava, quer por aceitação ou resignação, quer por reacção ou denegação, em contraposição com o desenvolvimento das democracias ocidentais que, pela filosofia aplicada à ciência, caminhavam rumo a um materialismo visto como libertador das amarras da crendice, da servidão humana e do preconceito, Pais e Filhos é, todavia, um tratado sobre a moderação, sobre o necessário diálogo geracional, o meio-termo que evita a potencial devastação pelo recrudescimento dos radicalismos de pólos contrários, tão bem consubstanciado nas capacidades curativas do “amor” – o paroxismo do romantismo –, na arte como o veículo para essa redenção, aqui entendido como a mola impulsora, conscientemente rejeitada pelo embaraço do Homem – o seu esforço inglório de racionalização de todo o comportamento humano, rejeitando qualquer tipo de sentimento –, para alcançar a plenitude da alma.

Esta edição da obra-prima de Turguéniev, com chancela da Relógio D’Água, inclui um posfácio de Vladimir Nabokov, de mera análise literária.
Na sua primeira frase, Nabokov afirma que «Pais e Filhos não é só o melhor romance de Turguéniev, mas também um dos maiores romances do século XIX.» (pág. 219)
Concordo com a afirmação, desde que se ressalve a posição cimeira de Tolstoi (1828-1910) e de Dostoievski (1821-1881) – inimigo visceral de Turguéniev e objecto de alguma censura literária por Nabokov – enquanto romancistas e na quantidade de obras-primas que trouxeram ao mundo na arte de romancear, onde permanecem (quase) imbatíveis decorrido mais de um século.
Porém, o seu a seu dono, e o mérito com quem o tem, sem ser uma obra-prima da dimensão das engendradas pelos dois autores supramencionados e seus contemporâneos:

Classificação: ***** (Muito Bom).

Referência bibliográfica:
Ivan Turguéniev, Pais e Filhos. Lisboa: Relógio D’Água, 1.ª edição, Maio de 2007, 251 pp. (tradução de António Pescada; obra original: Отцы и Дети, 1862).

quinta-feira, 31 de maio de 2007

O escritor, um crítico e o seu trabalho

Edmund WilsonEdmund Wilson (1895-1972), escritor norte-americano, sobretudo reconhecido pelo seu brilhante currículo como crítico literário, considerado como um dos críticos mais proeminentes e respeitados nos Estados Unidos do século XX.
O apogeu da sua carreira e da sua influência no mundo das letras norte-americanas deu-se enquanto editor da The New Republic e crítico da The New Yorker. A ele se deve, por exemplo, a perpetuação nos anais da literatura mundial do nome e da obra de um dos mais geniais escritores de sempre, F. Scott Fitzgerald – de quem foi colega em Princeton –, cuja morte prematura aos 44 anos, a conturbada época em que este escreveu, entre o fim da I Guerra Mundial, passando pela Grande Depressão e acabando às portas da II Guerra Mundial, o alcoolismo e as extravagâncias mundanas, e isto apesar da incrível quantidade (e qualidade) de contos que escreveu e publicou – cerca de 170, uma das formas de sustentar a sua vida luxuosa e as singulares exigências da sua caprichosa mulher Zelda – e dos seus arquetípicos romances, facilmente poderia cair no esquecimento.
Wilson é ademais conhecido pelo seu longo e inconstante relacionamento com Vladimir Nabokov, numa primeira instância por ter dado a conhecer ao mundo ocidental, sobretudo aos americanos, o génio literário do exilado russo, de quem se tornaria grande amigo e com quem mais tarde protagonizaria uma das mais famosas e acesas altercações literárias – consta que chegou à violência física –, a propósito da tradução de Eugénio Onegin (por transliteração do cirílico para o alfabeto latino de Yevgeniy Onegin, deve-se ler “Oneguine” em português) do autor russo Aleksandr Pushkin (1799-1837).
Numa recensão publicada na The New York Review of Books em Julho de 1965, intitulada “The Strange Case of Pushkin and Nabokov”, Wilson começa por dizer:

«Este trabalho, embora válido, é de certa forma desapontante; e o crítico, embora amigo pessoal do Sr. Nabokov – por quem ele mantém uma calorosa estima muitas vezes arrefecida pela exasperação – e um admirador de grande parte do seu trabalho, não se furta a demonstrar o seu desapontamento.
«Uma vez que o Sr. Nabokov tem o hábito de apresentar qualquer trabalho seu desta envergadura através de um anúncio de que ele é único e incomparável, e que toda a gente que o tenha tentado é um tonto e um iletrado, incompetente como académico e linguista, normalmente com a implicação de que se trata de uma pessoa sem classe e com uma personalidade ridícula, Nabokov não deverá queixar-se se o seu crítico, embora não tentando imitar a sua má conduta literária, não hesitar em sublinhar as suas debilidades.» [tradução livre AMC]

A partir deste momento a História da literatura registará uma das mais truculentas trocas de correspondência entre os dois velhos (ex) amigos.

Este episódio serve para realçar a integridade moral e de conduta que Wilson apunha ao seu melindroso trabalho de crítico literário, e que lhe valeu a enorme consideração nos meios académicos e literários mais importantes nos Estados Unidos e no mundo.
Apesar dos incontáveis episódios menos abonatórios de que foi protagonista, principalmente se nos ativermos à sua impetuosa vida pessoal e sentimental, Wilson é um exemplo a ter em conta quando, por cá, surge uma nova vaga opinativa sobre os denominados amiguismos no mundo da crítica literária lusa.
Para a História, fica também um delicioso episódio, que há muito entrou no anedotário da Literatura universal, sobre um súbito cansaço das relações perigosas entre críticos, escritores, editores e revistas da especialidade, e das suas sucessivas solicitações. Reza a história que Wilson, a partir de determinada altura, quando instado a intervir, enquanto crítico afamado, em diversos eventos públicos directamente relacionados com a selvajaria do mercado editorial, passou a enviar um postal standard que, qual faca de dois gumes, lhe trouxe algumas dores de cabeça, uma vez que aquele passou a ser objecto de memorabilia literária.
Do postal constava o seguinte:

«Edmund Wilson lamenta afirmar que é impossível para ele: ler manuscritos, escrever artigos ou livros para classificar, escrever prefácios ou introduções, fazer declarações com fins publicitários, fazer qualquer trabalho editorial, integrar júris de concursos literários, dar entrevistas, participar em conferências de escritores, responder a questionários, contribuir para ou intervir em qualquer tipo de simpósios ou “painéis”, contribuir com manuscritos para venda, doar cópias dos seus livros para bibliotecas, autografar trabalhos para desconhecidos, autorizar a utilização do seu nome para constar de frontispícios, fornecer qualquer informação pessoal sobre o próprio, ou dar opiniões sobre assuntos literários ou demais assuntos.» [tradução livre AMC]

Percebe-se agora o choque com Nabokov… alguma empáfia, própria dos grandes, quando o são na realidade.

domingo, 18 de março de 2007

Ninfetas e Mancebos – 2

Björn Andrésen em Morte em Veneza
Este a imagem pertence a um dos muitos cartazes promocionais de uma das obras-primas de Luchino Visconti, Morte em Veneza (1971), baseado no romance homónimo, de 1912, de Thomas Mann.
Nela figura o jovem Tadzio (Björn Andrésen), objecto de obsessão puramente platónica de Gustav von Aschenbach – magistralmente interpretado por Dirk Bogarde –, sozinho no mundo e com uma vida destroçada pela perda da família e do dom para a composição musical. No filme de Visconti (realização e argumento), tal como no romance do escritor alemão, a arte revela-se na beleza do sofrimento pelo inatingível e que nos sossega com a simples contemplação. Não há gratuitidade lasciva e nem se apela à pederastia, como muitos fizeram crer repudiando o romance – aliás como ocorreu com Lolita de Nabokov uns anos mais tarde, sendo, porém, curioso que o próprio Nabokov repudiasse, por motivos estéticos, a obra de Mann.
Apesar da bem conhecida bissexualidade tanto de Mann, como de Visconti, Morte em Veneza não pretende explorar o filão mediático pelo choque, é apenas uma manifestação artística que exibe o ponto extremo que pode alcançar o sofrimento humano, imposto pelos constrangimentos que advêm da sua peculiar e essencial característica de homo socialis.

sábado, 17 de março de 2007

Ninfetas e Mancebos – 1

Kubrick's Lolita
Na imagem (parte integrante do cartaz promocional) Sue Lyon, como Dolores Haze, mais conhecida por Lolita.
Filme de 1962 do Mestre Stanley Kubrick, com argumento de Vladimir Nabokov, baseado no seu romance homónimo de 1955.

Comentário: suponho que foi Walser (e a ele tenho recorrido com alguma frequência nos últimos tempos) que disse que se um escritor são é mau escritor, é, nesse caso, um escritor enfermo, mas se um escritor doente produzir obras boas, ele pertence ao grupo das pessoas sãs, através da sua escrita.

Quem fala da Literatura, pode estender a asserção aos outros domínios da arte.
Não estou com isto a questionar a avaliação da sanidade mental de Nabokov aos olhos dos filisteus, aliás isso pouco lhe importava, mas a assumir um comportamento desviante que se corporiza na arte, a tal válvula de escape freudiana.


Contudo, esta é a minha convicção, as obras de arte potencialmente derrogadoras da concepção moral estabelecida numa dada sociedade num dado momento, nada mais são que o produto da criatividade de alguém que, irreverentemente, nos transmitiu de forma exaltada determinada concepção, mesmo que o produto final encerre uma certa forma de messianismo ou pretensões dirigistas. Assaz diferente é o uso e abuso dessas tais mensagens derrogadoras por uma qualquer chusma de reputados criativos, cuja obra criada apenas serve alguém cujos objectivos são unicamente mercantilistas e apenas dela se serviram para que a mais do que antecipada polémica produza resultados (económicos) na sua conta de exploração trimestral. Isso não é arte, é tão-só e somente um abuso da liberdade de expressão.