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terça-feira, 23 de novembro de 2010

80 Anos

Nasceu a 23 de Novembro de 1930 no Funchal, o maior (não o medi pela fita métrica cortada em centímetros, senão pela minha mui pessoal escala estética) poeta português vivo. A matemática dos dias marcou hoje oito dezenas em grupos de trezentos e sessenta e cinco – terminado às vezes na meia dúzia para acertos astronómicos –, oitenta órbitas deste rochedo vicioso à volta do fogo; anéis, por ele gravados, na memória de um povo, apenas ao alcance dos sublimes. Poetas da nossa terra. Obrigado por estes momentos densos pelo mais sincero, calmo e etéreo inebriamento: «O incêndio atrás das noites corta / pelo meio / o abraço da nossa morte.»

Parabéns Herberto.

«Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e da espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se. O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.»
Herberto Helder, A faca não corta o fogo, pp. 74-76.
[Lisboa: Assírio & Alvim, Setembro de 2008, 208 pp.]

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A Caminho

o livro do ano. Novecentas e vinte páginas de poesia de Sophia, com selecção e organização pela sua filha Maria Andresen de Sousa Tavares.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

24

FC Porto: Tetracampeão 2008/2009

Dúvida? Não. Mas, luz, realidade
e sonho que, na luta, amadurece.
- O de tornar maior esta cidade.
Eis o desejo que traduz a prece.

Só quem não sente o ardor da juventude
poderá vê-la, de olhos descuidados.
Porto - palavra exacta. Nunca ilude.
Renasce, nela, a ala dos namorados!

Deram tudo por nós estes atletas.
Seu trajo tem a cor das próprias veias
e a brancura das asas dos poetas…
Ó fé de que andam nossas almas cheias!

Não há derrotas quando é firme o passo.
Ninguém fale em perder! Ninguém recua…
E a mocidade invicta em cada abraço
a si mais nos estreita. A pátria é sua.

E, de hora a hora, cresce o baluarte!
Lembro a torre dos Clérigos, às vezes…
Um anjo dá sinal quando ele parte…
São sempre heróis! São sempre portugueses!

E, azul e branca, essa bandeira avança…
Azul, branca, indomável, imortal.
Como não pôr no Porto uma esperança
se “daqui houve nome Portugal”?

Pedro Homem de Mello, “Aleluia!”


(Nota: esta interrupção não significa a revogação da suspensão de actividade, com limite temporal indefinido, deste blogue.)

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Updike – II

John Updike em 1955

Perfeição desperdiçada

E outra coisa lamentável sobre a morte
é o cessamento da tua marca de magia,
que te levou uma vida inteira a desenvolver e promover –
os motejos, os gracejos, o remoque
adequados a uns poucos, aqueles seres amados próximos
da orla do palco, as suas faces suaves empalideceram
nas luzes da ribalta, o seu riso próximo das lágrimas,
o seu quente respirar compassado com o bater do teu coração,
as suas respostas e a tua performance irmanadas.
As piadas ao telefone. As memórias empilhadas
em ficheiros de rápido acesso. Todo o acto.
Quem o voltará a fazer? É isso: ninguém;
imitadores e descendentes não são a mesma coisa.

John Updike, “Perfection Wasted” (24/Jan/1990) [versão: AMC, 2009].

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Um Feliz Ano de 2009

Tal como fiz na véspera de Natal, deixo aqui ficar Thomas Hardy (1840-1928), com a sua ironia e o seu profundo cepticismo na humanidade, para o ano novo que se aproxima.

I (OLD STYLE)

Our songs went up and out the chimney,
And roused the home-gone husbandmen;
Our allemands, our heys, poussettings,
Our hands-across and back again,
Sent rhythmic throbbings through the casements
On to the white highway,
Where nighted farers paused and muttered,
“Keep it up well, do they!”

The contrabasso’s measured booming
Sped at each bar to the parish bounds,
To shepherds at their midnight lambings,
To stealthy poachers on their rounds;
And everybody caught full duly
The notes of our delight,
As Time unrobed the Youth of Promise
Hailed by our sanguine sight.

II (NEW STYLE)

We stand in the dusk of a pine-tree limb,
As if to give ear to the muffled peal,
Brought or withheld at the breeze’s whim;
But our truest heed is to words that steal
From the mantled ghost that looms in the gray,
And seems, so far as our sense can see,
To feature bereaved Humanity,
As it sighs to the imminent year its say:-

“O stay without, O stay without,
Calm comely Youth, untasked, untired;
Though stars irradiate thee about
Thy entrance here is undesired.
Open the gate not, mystic one;
Must we avow what we would close confine?
With thee, good friend, we would have converse none,
Albeit the fault may not be thine.”

December 31. During the War.


Thomas Hardy, At the Entering of the New Year (publicado em 1920).

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

A ironia de uma Véspera

imagem original, The Times, na 1.ª página de 24 de Dezembro de 1915


Publicado a 24/12/1915 (com o mundo em plena Grande Guerra) no The Times.

Feliz Natal!

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Falta-me tempo (forte sentimento)

E o tempo, afincado na sua recta que o desloca ao infinito, com as suas marcas indeléveis, assinala três anos de divagação por este mundo de paradoxos, estridente, confessional, histérico, fraterno, egoísta, ambicioso e catártico – a blogosfera.
Intermitências. Amuos, júbilos, irritações, partilha... sobretudo, partilha. Começou com o Porque a 17 de Dezembro de 2005, prosseguiu com o In Absentia em 2 de Dezembro de 2007, termina com o Nunca Mais, inaugurado a 30 de Abril de 2008.

A todos (2 leitores e meio), antecipo-me, agradeço a vontade (ou a realização) de celebrar com palavras este momento, sem mais tarde – perdoem-me! – discriminar por escrito a, certamente, extensa lista de bloggers que assinalou a data.

Termino com um dos meus poetas favoritos, cuja morte se assemelha em muito àquela que está na origem da permanente inquietação que me trouxe até aqui; até no tal tempo emparedado por nascimento e morte.

Deixando a métrica e a prosódia de lado, e a minha profunda perplexidade pela quase inexistência de Keats em versão portuguesa, aqui fica um dos meus sonetos preferidos, que ilustra bem o ânimo que por aqui assentou arraiais.

[na sua versão original, trata-se de um soneto inglês, composto por três quartetos e um dístico, com versos em pentâmetro jâmbico – métrica integralmente descurada na versão que se segue, por falta de ciência e paciência do celebrante.]

Quando temo o fim próximo da minha existência
Antes que a pena haja respigado meu cérebro atulhado,
Antes do monte de livros, símbolos e sinais em coerência,
Armazenados como grão maduro em celeiros abonados;
Quando observo o rosto da noite de estrelas manchado
Símbolos gigantescos e nebulosos de um amor-desatino,
E pensar que poderei não viver para haver esboçado
As suas sombras, através da mão mágica do destino;
E quando sinto, ser encantador de um dia radioso,
Que não mais poderei divisar as tuas formas ardentes,
Apreciar o dom das fadas e sentir-me poderoso
De amor irreflectido! – e logo nas vertentes
Deste mundo imenso estou só, vem-me em pensamento,
Até o amor e a fama se afundam no esquecimento.

John Keats (1795-1821), “When I have fears that I may cease to be” (escrito em 1817; 1818) [versão de AMC, 2008].

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Combate à memória

When I shall go
Into the narrow home that leaves
No room for wringing of the hands and hair,
And feel the pressing of the walls which bear
The heavy sod upon my heart that grieves,
(As the weird earth rolls on),
Then I shall know
What is the power of destiny. But still,
Still while my life, however sad, be mine,
I war with memory, striving to divine
Phantom to-morrows, to outrun the past;
For yet the tears of final, absolute ill
And ruinous knowledge of my fate I shun.
Even as the frail, instinctive weed
Tries, through unending shade, to reach at last
A shining, mellowing, rapture-giving sun;
So in the deed of breathing joy's warm breath,
Fain to succeed,
I, too, in colorless longings, hope till death.

Rose Hawthorne, “Death’s Eloquence”, Along the Shore (1888)

Rose Hawthorne (1851-1926), terceira de três filhos (Una e Julian) do gigante Nathaniel Hawthorne (1804-1864).

Vocês sabem do que estou a falar®…

«É o que eu faço quando o sono se recusa a vir. Deixo-me ficar deitado na cama e conto-me histórias. Podem não ser nada de especial, mas, enquanto estou dentro delas, impedem-me de pensar nas coisas que preferiria esquecer.»

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Nunca mais... regresso

Auto-ilusão com uma ligeira fragrância a megalomania, assumidamente na sua variante narcísica, de índole redentora – e neste caso, como em quase todos, a “redenção” sobreexcede o qualificativo pachequista de “salvífico” na escala do serviço divino.
E a maneira mais fácil de me libertar desta perífrase, ou dos nós que não se desatam na impudica desnudação do eu, subsume-se a uma citação:

«Compreendo-os muito bem; a tua seriedade perturba-os.» (pág. 600 de uma obra com referência final).

Domingo, 6 de Abril – e peço as devidas desculpas pela semelhança com o título de um romance de uma compiladora de caracteres que sempre me conseguiu levar a um estado de perplexidade, para não dizer de aversão, literária, apriorística; a um julgamento sem defesa, talvez advindo da constatação empírica da qualidade dos seus consumidores (chamar-lhes leitores implicaria, no sentido restrito da coisa literária, apodar os seus livros de Literatura e tudo isso seria uma promoção que não pretendo de forma alguma consagrar).
Ora, como dizia, nesse domingo de Abril queria com toda a minha vontade haver encerrado em definitivo, porque me consumia (abra-se a vastidão do campo semântico da palavra), a minha curta actividade na blogosfera – embora os mais de dois anos e meio, com algumas intermitências, possam desmentir o atributo, porém existem aqueles que já por cá andam há cinco ou mais anos, e nem sequer se chateiam…
Nunca mais! E como sói trair-nos a realidade… Estou de volta após 26 dias de ausência, que, a somar aos 70 ulteriores (entre o encerramento do Porque e o nascimento do In Absentia), perfazem o belo número de 96, ou 8 dúzias, ou a parelha oralmente amuada, ou veja-se a estação 48 (a metade) – cf. Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault – pertencente à 5.ª sefira “Gebura” (Força, Julgamento ou Poder) da Árvore da Vida da Cabala, a 2.ª dos sefirot que correspondem aos atributos emocionais da Criação, em que se manifesta a intransigência divina perante o incumprimento da Lei.

Nos primeiros dias deste breve interstício – ainda não assumido como tal, dado o valor absoluto que um nunca mais costuma assumir na minha vida, assaz diferente do galicismo liniano jamais –, houve apenas uma pessoa que, entendendo a razão subjacente à minha decisão, me enviou um e-mail, em manifestação de apelo, para que não desistisse de dar voz às tais inquietações através da escrita, que poderia ser, se a falta de tempo fosse factor determinante, mais espaçada, sem a urgência diarista.
É verdade: uma só pessoa… valeu por todas e esse alguém, que não importa quem e que nem sequer irei revelar a identidade, trata-se apenas de um grande amigo invisível, de “0’s” e “1’s”, que fisicamente se encontra a 300 quilómetros de distância.
Porventura, a situação não pedia tanto… bastava a lembrança do envio de um singelo abraço nas curtas distracções do globo ocular nas suas incontáveis circunvoluções diárias ao próprio umbigo.

Perspicácia no apelo: a primeira epígrafe tudo diz sobre a caminhada na beira do perigoso abismo, pelo triunfo ardentemente pretendido da ascese, o isolamento absoluto referido por Vila-Matas em “A Glória Solitária” (cf. Exploradores do Abismo, Teorema, 2008), tendo por base o fabuloso ensaio de Don DeLillo, “Counterpoint: Three Movies, a Book, and an Old Photograph”, referindo-se a uma certa estirpe de bartlebianismo em Glenn Gould, Thomas Bernhard e a notável versão ficcionada da vida de Gould em O Náufrago (Der Untergeher, 1983), em que DeLillo acaba por estabelecer o paralelismo com o enormíssimo Thelonious Monk (a enigmática referência de Bernhard às Monk Mountains) e o seu tenebroso emudecimento nos últimos seis anos da sua vida.
Depois, Sophia, como sempre e para sempre, como em todos os outros, e como em qualquer dos outros não iniciados, um poema que traduz, pela interpretação eminentemente pessoal que dele faço, o meu estado de espírito no momento. Uma evolução anímica, espiritual que percorre o largo espectro da sua soberba e admirável obra poética – trata-se, não escondo, depois de Camões e Pessoa – incomparáveis pela desmesura que só os próprios nomes encerram –, dos poetas da minha pessoalíssima preferência.

O que isto irá ter de diferente?
Não sei. Por enquanto. Pretendia-o menos turbulento, sem beliscar a incisividade necessária no momento certo em que me der ganas de vociferar, escrevendo, sobre o confronto vivido e real com o impudor, o arrivismo, a sordícia, a mediocridade e, em suma, com a injustiça, como a fonte criadora e simultaneamente o efeito desses pecados, vícios e imperfeições tão lusos.

Termino como comecei, com uma citação de uma já sentida obra-prima que por estes dias irei terminar:

«Hoje em dia parece que quase só há escritores, e poucas pessoas que lêem livros […] quantos livros saem anualmente dos prelos? Se bem me lembro acho que só na Alemanha são cerca de cem por dia. E nascem mais de mil novas revistas todos os anos! Toda a gente escreve, toda a gente se serve de todas as ideias como se fossem suas, quando lhes convém. Ninguém pensa na responsabilidade que devemos ter para com o todo! Desde que a Igreja perdeu a influência que tinha, não há autoridade neste nosso caos. Não há ideias culturais nem uma ideia de cultura. Nestas circunstâncias, é perfeitamente natural que os sentimentos e a moral andem à deriva, sem âncora, e o mais firme dos homens comece a vacilar.»
Robert Musil, O homem sem qualidades, pág. 728. (Lisboa: Dom Quixote, 1.ª edição, Março de 2008, vol. I, 843 pp.; tradução de João Barrento; obra original: Der Mann ohne Eigenschaften, 1930-1942.)

Regresso agora ao passado: Dia 17 de Dezembro de 2005, escrevia o meu primeiro texto na blogosfera, inventava o Porque e publicava o manifesto que ainda hoje não perdeu validade:

«Porque escrevo»

Para soltar a minha raiva;
Para exorcizar os espíritos ocultos que habitam em mim;
Para libertar a ansiedade que sufoca o meu corpo;
Para exprimir os meus desassossegos, dúvidas e tristezas,
Para os poder transformar em momentos de quietude, de certeza e de alegria:
Humanidade, firmeza e júbilo!
Para os poder difundir e gastá-los à tripa forra,
Para não ter de prestar contas:
A uma douta hierarquia,
Ao Estado,
À pátria,
Ao mundo…
A Deus!
Bastar-me-á um leitor:
Porque escrevo e assim quero resistir!

quarta-feira, 30 de abril de 2008

0. Intróito: preliminares entomológicos

Gregor transformou-se em barata* gigante.
Eu não: fiz-me aranhiço,
tão leve que uma leve brisa o faz
oscilar no seu fio de baba lisa.
Até que, contra a lei da natureza,
creio que tenho peso negativo,
e me elevo no ar se me não prendo
ao canto mais escuro desta ilha.
Quando descer à teia derradeira
não se verá no mundo alteração, ou só
talvez alguma mosca mais contente.
Em noites de luar, na alta esquina,
ficará a brilhar, mas sem ser vista,
a estrela que tracei como armadilha.

António Franco Alexandre, Aracne (2004)



Notas anódinas:
*Vladimir Nabokov, conhecido entomólogo e lepidopterologista, actividades que exercia para além da sua ímpar carreira literária – na minha modesta opinião, a par de Borges, o melhor escritor do século XX, curiosamente nascidos no mesmo ano, 1899, e sem qualquer reconhecimento da heteróclita Academia Sueca –, refuta a ideia quase generalizada, nunca referenciada na novela de Kafka**, de o insecto, em que, naquela manhã ao acordar no seu quarto Gregor Samsa se metamorfoseou, se tratar de uma barata:
«Os comentadores dizem [que é uma] barata, mas é óbvio que isso não faz sentido. A barata é um insecto de forma chata com grandes pernas, e Gregor é tudo menos chato: é convexo dos dois lados, o abdominal e o dorsal, as suas patas são pequenas. Parece-se com uma barata só num aspecto: a cor castanha.» Vladimir Nabokov, Aulas de Literatura, pág. 299 (Lisboa: Relógio D’Água, Fevereiro de 2004, 449 pp.; tradução de Salvato Telles de Menezes; obra original: Lectures on Literature, 1980).

**Aliás, o autor checo preocupou-se em afastar a possível especulação sobre a tipologia do invertebrado, para não prejudicar a narrativa com descrições supérfluas, chegando ao pormenor de indicar ao seu editor que a capa para a primeira publicação (1915) jamais deveria incluir qualquer tipo de insecto, mesmo que este surgisse num plano secundário.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Novo Ano

Jean Antoine Watteau, L’indifférent
(1717)
Óleo sobre tela. Museu do Louvre, Paris

Ô naître ardent et triste,
mais, à la vie assiste,
tendre et bien habillé,

à la multiple surprise
qui ne vous engage point,
et, bien mis, à la bien mise
sourire de très loin.
Rainer Maria Rilke, "L’indifférent"
(Tendres impôts à la France, 1923-1924)

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Um poema, um livro, um filme

THAT is no country for old men. The young
In one another's arms, birds in the trees
– Those dying generations – at their song,
The salmon-falls, the mackerel-crowded seas,
Fish, flesh, or fowl, commend all summer long
Whatever is begotten, born, and dies.
Caught in that sensual music all neglect
Monuments of unageing intellect.

An aged man is but a paltry thing,
A tattered coat upon a stick, unless
Soul clap its hands and sing, and louder sing
For every tatter in its mortal dress,
Nor is there singing school but studying
Monuments of its own magnificence;
And therefore I have sailed the seas and come
To the holy city of Byzantium.

O sages standing in God's holy fire
As in the gold mosaic of a wall,
Come from the holy fire, perne in a gyre,
And be the singing-masters of my soul.
Consume my heart away; sick with desire
And fastened to a dying animal
It knows not what it is; and gather me
Into the artifice of eternity.

Once out of nature I shall never take
My bodily form from any natural thing,
But such a form as Grecian goldsmiths make
Of hammered gold and gold enamelling
To keep a drowsy Emperor awake;
Or set upon a golden bough to sing
To lords and ladies of Byzantium
Of what is past, or passing, or to come.


William Butler Yeats, Sailing to Byzantium (1928)
Nota: seguir tags.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Na Tua Ausência

A razão. Aquilo que me trouxe aqui a estas páginas. Há onze meses, expunha assim um dos fundamentos que me fizeram regressar à blogosfera, através de um novo sítio com outro nome (autocitação):

«Período de tempo […] no qual exorcizarei com auxílio da bloga os fantasmas que teimam ensombrar o período natalício pela falta que tu me fazes».

O Porque – igualmente inspirado em Sophia – foi o veículo ideal para a minha mundificação emocional, numa linguagem por vezes deliberadamente impenetrável para quem vivia fora da minha intimidade; o meio ideal para a exteriorização da minha revolta perante a sordícia, a corrupção e a doce impunidade constatadas neste país infecto, onde a Justiça – a fina ironia da palavra assim grafada… capitalizada, ó Kafka renascido –, se metamorfoseou, há muito, na máquina trituradora daqueles que dela têm sede.
Renovo os votos. Recomeço, insistindo na amplitude semântica do seu título latinizado: signo jurídico, condenação sem defesa, viver na ausência de…

Prometo. Isto passa. Catarse poética. Homem novo. Blogue aliviado do peso da angústia outonal.


Lúgubre solidão! Ó noite triste!
Como sinto que falta a tua Imagem
A tudo quanto para mim existe!

Tua bendita e efémera passagem
No mundo, deu ao mundo em que viveste,
À nossa boa e maternal Paisagem,

Um espírito novo mais celeste;
Nova Forma a abraçou e nova Cor
Beijou, sorrindo, o seu perfil agreste!

E ei-la agora tão triste e sem verdor!
Depois da tua morte, regressou
Ao seu velhinho estado anterior.

E esta saudosa casa, onde brilhou
Tua voz num instante sempiterno,
Em negra, intima noite se ocultou.

Quando chego à janela, vejo o inverno;
E, à luz da lua, as sombras do arvoredo
Lembram as sombras pálidas do Inferno.

Dos recantos escuros, em segredo,
Nascem Visões saudosas, diluídos
Traços da tua Imagem, arremedo

Que a Sombra faz, em gestos doloridos,
Do teu Vulto de sol a amanhecer...
A Sombra quer mostrar-se aos meus sentidos...

Mas eu que vejo? A luz escurecer;
O imperfeito, o indeciso que, em nós, deixa
A amargura de olhar e de não ver...

A voz da minha dor, da minha queixa,
Em vão, por ti, na fria noite clama!
Dir-se-á que o céu e a terra, tudo fecha

Os ouvidos de pedra! Mas quem ama,
Embora no silêncio mais profundo,
Grita por seu amor: é voz de chama!

E eu grito! E encontro apenas sobre o mundo,
Para onde quer que eu olhe, aqui, além,
A tua Ausência trágica! E no fundo

De mim próprio que vejo? Acaso alguém?
Só vejo a tua Ausência, a Desventura
Que fez da noite a imagem de tua Mãe!

A tua Ausência é tudo o que murmura,
E mostra a face triste à luz da aurora,
E se espraia na terra em sombra escura...

Quem traz o Outono ao meu jardim agora?
Quem muda em cinza o fogo do meu lar?
E quem soluça em mim? Quem é que chora?

É a tua Ausência, Amor, que vem turbar
Esta alegria etérea, nuvem, asa
De Anjo que, às vezes, passa em nosso olhar!

O Sol é a tua Ausência que se abrasa,
A Lua é tua Ausência enfraquecida...
Da tua Ausência é feita a minha vida
E os meus versos também e a minha casa.

Teixeira de Pascoaes, “Ausência”, Elegias (1912).

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Of Rats and Men*

«Os ratos são quase tão fecundos como os germes. […] Crescem rapidamente e são capazes de procriar desde os quatro meses de idade […] um rato de quatro anos é mais velho do que um homem de noventas anos. “Os ratos que sobrevivem além dos quatro anos são dos bichos mais sabidos e mais cínicos que há à face da terra. […] Uma ratoeira não é nada para eles, por mais habilmente que tenha sido montada. […] são capazes de detectar um isco envenenado a um metro de distância. Estou convencido de que alguns deles sabem ler.»**
Joseph Mitchell, O Fundo da Baía, “Ratos da Beira-Rio”, pág. 80.

Zbigniew HerbertÉ curioso que as usem como cobaias para proteger e perpetuar uma espécie cujo código genético lhes é tão familiar. Tão idiossincraticamente familiar. Tão indistintamente próximo. Uma turba de roedores parasitários que dão abrigo a outros parasitas mais insignificantes, alguns verminosos, pegajosos, escorregadios ou estaladiços. Uns papa-hóstias, outros pedreiros livres, outros ainda materialistas dialécticos, anarcas, conservadores, neoconinhas, comichosos, ranhosos e bexigosos… e no entanto, todos roem. São os patrulheiros do sectarismo, mais reaccionários que os patrulhados. São os do pensamento único, intolerantes à diferença, travestidos de defensores da moral pública ou da liberdade de expressão; dos direitos liberdades e garantias; da sociedade civil; da liberdade, da igualdade e da fraternidade; das mãos limpas; da puta que os pariu; são, enfim, todos tão lúcidos e esclarecidos, sapientes e eruditos… foda-se, até citam nomes e textos, amalgamas de letras subitamente dotadas de vida e por isso sujeitas às mais do que necessárias distorções; tantas fontes, que não há sede que resista; arremessam-nas e esperam pela resposta. Acordam de manhã e cagam filósofos, políticos, escritores. Estão convencidos da clarividência do seu pensamento, de possuírem a mais preclara das cabeças – trabalhassem mais com as de baixo, estariam aquelas menos poluídas. Boçal, eu?
Ah, e que bem dizia Pessoa, transformado em Bernardo Soares – epígrafe do meu anterior blogue… cito, corto e colo… tanta lucidez, ou convencimento dela… perdi para sempre a segura certeza da lucidez da minha lucidez.

A minha divisa passou a ser a ratazana…

Cito, sem pruridos sectários, o grande poeta polaco Zbigniew Herbert, via DeLillo (o meu Nobel***):

Too old to carry arms and fight like the others—

they graciously gave me the inferior role of chronicler
I record—I don't know for whom—the history of the siege

I am supposed to be exact but I don't know when the invasion began
two hundred years ago in December perhaps yesterday at dawn
everyone here suffers from a loss of the sense of time

all we have left is the place the attachment to the place
we still rule over the ruins of temples specters of gardens and houses
if we lose the ruins nothing will be left

I write as I can in the rhythms of the interminable weeks
monday: empty storehouses a rat became the unit of currency
tuesday: the mayor murdered by unknown assailants
wednesday: negotiations for a cease-fire the enemy has imprisoned our messengers
we don't know where they are held that is the place of torture
thursday: after a stormy meeting a majority of voices rejected
the motion of the spice merchants for unconditional surrender
friday: the beginning of the plague saturday: our invincible defender
N.N. committed suicide sunday: no more water we drove back
an attack at the eastern gate called the Gate of the Alliance

all of this is monotonous I know it can't move anyone

I avoid any commentary I keep a tight hold on my emotions I write about the facts
only they it seems are appreciated in foreign markets

yet with a certain pride I would like to inform the world
that thanks to the war we have raised a new species of children
our children don't like fairy tales they play at killing
awake and asleep they dream of soup of bread and bones
just like dogs and cats

in the evening I like to wander near the outposts of the City
along the frontier of our uncertain freedom
I look at the swarms of soldiers below their lights

I listen to the noise of drums barbarian shrieks
truly it is inconceivable the City is still defending itself
the siege has lasted a long time the enemies must take turns
nothing unites them except the desire for our extermination
Goths the Tartars Swedes troops of the Emperor regiments of the Transfiguration
who can count them
the colors of their banners change like the forest on the horizon
from delicate bird's yellow in spring through green through red to winter's black

and so in the evening released from facts I can think
about distant ancient matters for example our
friends beyond the sea I know they sincerely sympathize
they send us flour lard sacks of comfort and good advice
they don't even know their fathers betrayed us
our former allies at the time of the second Apocalypse
their sons are blameless they deserve our gratitude therefore we are grateful
they have not experienced a siege as long as eternity
those struck by misfortune are always alone
the defenders of the Dalai Lama the Kurds the Afghan mountaineers

now as I write these words the advocates of conciliation
have won the upper hand over the party of the inflexibles
a normal hesitation of moods fate still hangs in the balance

cemeteries grow larger the number of defenders is smaller
yet the defense continues it will continue to the end
and if the City falls but a single man escapes
he will carry the City within himself on the roads of exile
he will be the City

we look in the face of hunger the face of fire face of death
worst of all—the face of betrayal

and only our dreams have not been humiliated

Zbigniew Herbert (1924-1998), Report from the Besieged City, 1982 (tradução do polaco por Bogdana Carpenter e John Carpenter)****.


Notas:
*Com a cortesia de Steinbeck e da sua obra Of Mice and Men (1937).
**Referência bibliográfica completa: Joseph Mitchell, O Fundo da Baía, “Ratos da Beira-Rio”. Porto: Ambar, 1.ª edição, Março de 2007, 219 pp. (tradução de José Lima; obra original: The Bottom of the Harbor, 1960; Capítulo: “Os Ratos da Beira-Rio, “The Rats of the Waterfront”, crónica publicada, sob outro título, na revista The New Yorker, Maio de 1944).
***Pronto, revelei. E desta já não posso fugir.
****No caso de haver tradução portuguesa, comunicar à redacção, obrigado.

domingo, 14 de outubro de 2007

Adonis

AdonisUma vez mais, o Luís Costa, colaborador da TriploV, publicação dedicada às artes literárias e em homenagem ao, entre muitas coisas, crítico de arte, cineasta, fundador do movimento cineclubista em Portugal ou poeta, resistente antifascista e membro do PCP, Ernesto de Sousa (1921-1988), facultou-me, com toda a cortesia, um poema – assim como uma curta biografia – de um dos distintos e insondados poetas que, segundo os especialistas, estiveram – e estarão – na lista de potenciais candidatos ao Nobel da Literatura, refiro-me, desta feita, ao poeta sírio-libanês Adonis:



Que assim seja:
Os pássaros chegaram e as pedras
Juntaram-se às pedras
Assim:
Eu acordo as estradas e as noites
E nós seguimos na procissão das árvores

Os ramos são malas verdes e os sonhos
uma almofada
Na viagem de férias
Onde a manhã continua estranha
Onde o seu rosto
Permanece um selo sobre os meus mistérios

Assim:
Um raio indicou-me o caminho, uma voz chamou-me
Do fim mais extremo do muro

Adonis, A Floresta Mágica (tradução do alemão por Luís Costa).


Biografia, por Luís Costa:
Adonis, poeta e ensaísta, nasceu em 1930 na Síria. O seu verdadeiro nome é Ali Ahmed Said. Estudou filosofia em Damasco e Beirute. De seguida teve várias estadias no estrangeiro por exemplo em Nova Iorque e Paris. Hoje vive em Paris. Adonis tem traduzido muitos autores franceses para o árabe. Entre eles encontram-se Racine e Saint Jonh-Perse.
Em 1957 fundou com Yousuf el-Khal a revista literária mais importante do espaço árabe: «Schiir» (Poesia).
Adonis contribuiu muito para a renovação da língua árabe e influenciou assim uma geração de escritores e poetas árabes. Escrever poesia significa para ele uma luta permanente contra a memória fechada sobre si mesma da cultura, ou seja, contra o passado. O nome Adonis é considerado no mundo árabe, desde os anos 60, um sinónimo de modernidade. Ele afirmou-se aí como um dos principais porta-vozes da corrente critica e pós-moderna. Para ele a lírica representa uma forma de violação da língua; é a tentativa de obrigar a língua a dizer aquilo que a prosa jamais conseguirá exprimir. Este grande poeta vê as raízes da sua lírica no misticismo islâmico, que ele considera como um surrealismo antes do surrealismo europeu.
Entretanto o mundo árabe fala de adonismo, adonismo esse que tem os seus seguidores entusiásticos, mas também um grande número de inimigos ferrenhos, que se encontram, sobretudo, entre os islamitas.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Tranströmer

Tomas TranströmerSe houve algum benefício, para além do eminentemente lúdico, do repto que aqui lancei no início desta semana a propósito da atribuição do Prémio Nobel da Literatura de 2007, ele traduziu-se decerto pela emergência de alguns nomes que, por critérios editoriais e pela eficiência na gestão dos recursos dos editores e livreiros, eram do desconhecimento do público em geral e que, supostamente, se distinguiram pela arte de contar histórias num dado local, num determinado momento.
Não sendo, por enquanto, um apaixonado por poesia – e reforce-se a potencial transitoriedade afectiva – houve um conjunto de poetas, putativos candidatos ao galardão da Academia Sueca, que emergiu da habitual armada de prosadores que sistematicamente surge nos lugares mais destacados dos prémios de carreira literária. Falo de nomes, que até então desconhecia, como o sírio-libanês Adonis, o sul-coreano Ko Un ou o sueco Tomas Tranströmer, entre outros.
Um dos princípios que me levou a entrar na blogosfera há quase um par de anos, para além da forte necessidade sentida de descarregar as minhas emoções através da exteriorização dos meus medos e encantamentos, de alguns do meus pensamentos mais profundos – ou concepções do mundo –, advinda de uma vida que se complicava por factores essencialmente exógenos à minha vontade – os tais reveses da fortuna –, foi precisamente, o de tentar, através das minhas leituras, dessacralizar a Literatura, ou se quisermos, o de contrariar uma certa elitização de um dos instrumentos primordiais à sobrevivência da espécie humana, como define Auster, o de ouvir e contar histórias, a necessidade que Homem tem da fábula, de poder sonhar enquanto prossegue na sua incessante demanda pela verdade.
Se brinco com a Literatura e com os seus caracteres e actores, se a torno profana, ou até mundana, apenas resulta de um esforço – que não se confunda com altruísmo, ou eventualmente, com a propensão para uma megalomania messiânica – para restituir a naturalidade às artes literárias, desafectando-a da horda intelectual e do seu pressuroso escolasticismo.

Regressando ao princípio deste texto, afirmava eu que uma das vantagens do desafio que aqui lancei, ademais de uma discussão sobre os gostos literários, foi o de dar a conhecer alguns autores que eu próprio, o mentor do repto paraliterário – assim talvez não ofende a escolástica –, desconhecia.
Serve a verborreia para destacar a contribuição do Luís Costa que, gentilmente, cedeu (via caixa de comentários) dois poemas de Tranströmer alusivos a Portugal, traduzidos do alemão pelo próprio.
Deixo aqui ficar um, o poema Lisboa:

No bairro de Alfama os eléctricos amarelos cantavam nas
Subidas.
Havia duas prisões. Uma delas era para os gatunos.
Eles acenavam através das grades.
Eles gritavam. Eles queriam ser fotografados!

“Mas aqui”, dizia o revisor e ria baixinho como um afectado
“aqui sentam-se os políticos”. Eu vi a fachada, a fachada, a fachada
e em cima, a uma janela, um homem,
com um binóculo à frente dos olhos, espreitando
para além do mar.

A roupa pendia no azul. Os muros estavam quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos depois, perguntei a uma dama de Lisboa:
Isto é real, ou fui eu que sonhei?

Tomas Tranströmer, Lisboa (tradução de Luís Costa)

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Álcool

Reparei hoje. O Vítor Neves Fernandes deu, de forma graciosa e abnegada, o seu inestimável contributo para o progresso e o aprofundamento dos estudos protésicos em Portugal ao debruçar-se sobre esse fenómeno em emergência que se deu a conhecer ao mundo por blogosfera.
Partindo do axioma de que um blogue é como “a extensão do pénis”, o Vítor realizou um estudo empírico sobre a população alvo, baseando-se numa amostra perfeitamente aleatória – e que sobre essa aleatoriedade não subsista qualquer sombra de dúvida – de 10 indivíduos , maiores de idade e de ambos os sexos, que impudicamente exibissem à data, pelo menos, uma “extensão peniana”, vulgo blogue. O objectivo do estudo era o de avaliar o impacto do álcool, esse incompreendido instrumento de expiação, sobre a capacidade e a perícia da produção seminal na blogosfera.
De forma a aperfeiçoar o estudo, o Vítor contou com a preciosa ajuda de dois ejaculadores canónicos, não protésicos. O objectivo era o da introdução no modelo de uma variável de controlo, cujos dados foram recolhidos em entrevistas realizadas por si para a revista literária
The Paris Review – o que significa que angariou mais uns cobres para o financiamento do seu trabalho de investigação – a Philip Larkin e a Vladimir Nabokov.
Hoje em dia, como é do domínio de qualquer eminente membro da plebe blogonauta, o lugar que alberga um sem-fim de extensões penianas é um espaço privilegiado para o exercício da reciprocidade, assaz estimuladora da reprodução livre, mas também da paz social e da harmonia global. Nesse sentido tentei dar o meu apport – ah, que toque de classe! – empenhando-me seriamente nessa tarefa hercúlea iniciada pelo Vítor. Usei os meus contactos e o meu solícito agente mediador, um americano do Tennessee chamado Jack Daniels – o qual, vindo a talho de foice, pertence à mais fina aristocracia, é um Bourbon. Porém, todos os meus esforços produziram um e um só resultado. Todos os meus contactos, de casta certificada, Lowry, Bukowski, Hemingway e Dylan Thomas, foram unânimes na resposta, indicaram-me um… português: Mário de Sá-Carneiro (já não lhe bastava o aborrecimento de Camarate…)
Vítor, aqui fica o meu modesto contributo:

Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longemente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.

Batem asas d'auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Descem-me a alma, sangram-me os sentidos.

Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo –
Luto, estrebucho… Em vão! Silvo pra além…

Corro em volta de mim sem me encontrar…
Tudo oscila e se abate como espuma…
Um disco de ouro surge a voltear…
Fecho os meus olhos com pavor da bruma…

Que droga foi a que me inoculei?
Ópio d'inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eterizo?

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que ando delirante –
Manhã tão forte que me anoiteceu.


Mário de Sá-Carneiro, Álcool (Paris 1913 – Maio 4.)

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Pela Tua vida breve

…um pequeno tributo por outra voz.

Too proud to die, broken and blind he died
The darkest way, and did not turn away,
A cold kind man brave in his narrow pride

On that darkest day. Oh, forever may
He lie lightly, at last, on the last, crossed
Hill, under the grass, in love, and there grow

Young among the long flocks, and never lie lost
Or still all the numberless days of his death, though
Above all he longed for his mother's breast

Which was rest and dust, and in the kind ground
The darkest justice of death, blind and unblessed.
Let him find no rest but be fathered and found,

I prayed in the crouching room, by his blind bed,
In the muted house, one minute before
Noon, and night, and light. The rivers of the dead

Veined his poor hand I held, and I saw
Through his unseeing eyes to the roots of the sea.
[An old tormented man three-quarters blind,

I am not too proud to cry that He and he
Will never never go out of my mind.
All his bones crying, and poor in all but pain,

Being innocent, he dreaded that he died
Hating his God, but what he was was plain:
An old kind man brave in his burning pride.

The sticks of the house were his; his books he owned.
Even as a baby he had never cried;
Nor did he now, save to his secret wound.

Out of his eyes I saw the last light glide.
Here among the light of the lording sky
An old blind man is with me where I go

Walking in the meadows of his son's eye
On whom a world of ills came down like snow.
He cried as he died, fearing at last the spheres'

Last sound, the world going out without a breath:
Too proud to cry, too frail to check the tears,
And caught between two nights, blindness and death.

O deepest wound of all that he should die
On that darkest day. Oh, he could hide
The tears out of his eyes, too proud to cry.

Until I die he will not leave my side.]

Dylan Thomas (1914-1953), Elegy (1953)

quarta-feira, 21 de março de 2007

Poesia II

E porque o dia é de(a) poesia, e confundindo-se esta com a historiografia da nossa melancólica e contemplativa História, eis um poema de um dos seus mais insignes poetas vivos:

Que mais pode este dia?
Em cada ligação a morte fala baixo
e arrefece as pernas das telefonias.
Em cada pulsação
escondemos o rosto embriagado
pelo tédio ou pelo terror
de mãos desfeitas.
Por vezes o silêncio ainda nos salva
e com que gratidão
banhamos a pele clara dos sentidos
na luz dos seus relâmpagos
mortais.

Porque a cabeça escuta,
escuta e nunca mais.

Armando Silva Carvalho, “A cabeça escuta”.


In Armando Silva Carvalho, O que foi passado a limpo (obra poética, 1965-2005). Lisboa: Assírio & Alvim, Março de 2007, pág. 279 (590 pp.) (poema originalmente publicado em Sentimento de um Acidental, 1981).

Poesia I

Neste dia, que é o seu, presto homenagem à forma de expressão literária que menos me foi dizendo, mas que fui (e vou) descobrindo à medida que vou envelhecendo.
Começa-se por um poema que um dia recitado nos desperta e descreve, com uma precisão de filigrana, o insulamento a que nos votámos, essa inquietude da alma pela inadaptação perante a injustiça reiterada.
Foi assim com o Porque de Sophia, e foi assim que a descobri, a sintonia poética, como mero receptor, que decisivamente me transmitiu a mensagem da profunda dor por outrem sentida, a cada verso tragado, a cada novo poema lido e relido.

Em jeito de homenagem à arte poética, deixo aqui ficar um dos meus autores favoritos:

toda a ignorância escorrega para o saber
e de novo se arrasta para a ignorância:
mas o inverno não é para sempre,mesmo a neve
derrete;e se a primavera estragar o jogo,que fazer?

toda a história é um desporto de inverno ou três:
que fossem cinco,eu seguiria insistindo que toda
a história é demasiado pequena até mesmo para mim;
para mim e para ti,excessivamente demasiado pequena.

Mergulha(estridente mito colectivo)na tua tumba
tão-só para trabalhar a escala até à hiperestridência
por cada magda e marta diogo e david
–amanhã é o nosso endereço permanente

e aí mal nos hão-de achar(se acharem,
mudaremos ainda mais para diante:para agora


e.e. cummings, “toda a ignorância escorrega para o saber”.

in e.e. cummings, xix poemas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2.ª edição (edição bilingue), 1998, [xiv], pág. 57 (77 pp.) (tradução Jorge Fazenda Lourenço; poema original: "all ignorance toboggans into know", inserido no livro de poemas 1 x 1, 1944)