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sábado, 3 de agosto de 2013

Canino

Não falarei, nestas breves palavras, de Lanthimos e do seu alegórico Kynodontas (2009), embora o burlesco sirva de alicerce à eleição da fidelidade como valor absoluto de uma sociedade iconoclasta, que, todavia, se verga e anula, embargando a razão, perante o adjectivo: fiel. Palavra que me atemoriza mais do que me deixa nauseado, no que ela tem – num crescendo na escala de sordidez – de constância, de obstinação e de irredutibilidade, em suma, de um reaccionarismo bacoco.
Gostaria de trazer Rio à colação. Esse homem de cuja minha cidade, enfim, se liberta: o deificado gerente/merceeiro municipal – e a categoria profissional já o beneficia – de uma fidelidade canina perante a imagem da sua eminência, da sua rara inteligência, reflectida no espelho da sua soberba. Falar sobre a sua colagem ao mediático, à corrente de opinião diariamente emitida por esta nova raça de lapidadores do século XXI chamada de politólogo – nas variantes de comentador laureado ou de especialista bem avençado –, concebida nos laboratórios das redacções, engajada, com fidelidade, no argumentum ad hominem dirigido ao mais vulnerável, àquele que foi submetido a uma inclemente e massiva saraivada de flechas envenenadas com o objectivo, seguindo a cartilha goebblesiana (talvez, pela actualização temporal, ficasse melhor: fundados na frutuosa fidelidade norte-coreana), de aniquilar o seu carácter por maquiavelismo, sadismo, ou ambos. Na falta de Relvas (que até teve a sua dose de merecimento), houve Álvaro. Esquecido Álvaro, há Maria Luís, mais o apaniguado Secretário de Estado. Quando esta passar, virá (bom, já veio, pela boca perdigotosa dos guardiões da moral nacional, quase todos barbudos e barrigudos) o Machete, corta cerce! Ah, a rasoira politóloga… a bem da Nação (leia-se dos seus bolsos engordados por linhas editoriais que, falando de mansinho como a Ana Lourenço, vão mexendo os peões no jogo sujo dos amamentados pelo Estado.)         
Mas a canino-fidelidade teve na semana passada um episódio mais triste, que só corrobora a necessidade de a relativizar, para que alguma sanidade volte às nossas vidas – e não se me revolvam as tripas sempre que abro o jornal ou tenho o azar de passar pelos canais-viveiro de fiéis politólogos, comentadores e guias espirituais, e o seu dictat venal. Aquela história do cão Zico/Mandela, que matou uma criança, é tão sórdida, tão descentrada da realidade, fiel representante de uma nova vaga de um radicalismo liberal – fundando no pseudo-cosmopolitismo libertário que chega a ver o seu extremo: a ditadura e a vileza do politicamente correcto –, que em mais não se consubstancia que num retrocesso civilizacional. A insanidade apoderou-se desta gente e corporiza-se no (santo) nome escolhido para o cão que abocanhou a cabeça de uma criança, matando-a.
Tudo isto enquanto a saloiada Espírito Santo brinca aos pobrezinhos na Comporta.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Um Pecado Sinonímico


Levantou-se o habitual alarido na imprensa lisboeto-espalhafatosa – mas há-a de outro tipo? A dos bas-fonds do poder – quando o sujeito passivo da epinotícia é o Governo ou as suas instituições, e o activo um dos seus elementos mais próximos.
Na TVI o episódio mereceu maior destaque, em minutos, que a derrapagem nos números de (de)crescimento do PIB ou de acréscimo na taxa de desemprego. No Público gastaram-se 1.700 caracteres para dizer, logo no seu título, que «Ex-secretário de Estado avisa que vai mandar o fisco “tomar no cu”».
A mim preocupa-me apenas a expressão. Eu teria dito “apanhar” ou “levar”, é mais rasteirinha, bem mais portuguesa, vernacular. Mas sendo o Francisco um homem ecuménico por natureza, tão lido por nós, os do rectângulo, como pelos nossos irmãos do outro lado do Atlântico, desculpa-se o “tomar”; e este, é o único pecado detectável no seu texto, venial, apenas susceptível de causar algum tipo de proctalgia aos mais sensíveis.
“Cu” também goza de um riquíssimo campo semântico, mas adequa-se ao contexto, embora “olho” se encaixasse melhor neste baixo ciclópico país, terra em que os dois de cima, há muito, deixaram de ver, e como em tempos disse Vasco Pulido Valente, os que tinham um e poderiam ser reis, tiveram de o vazar, porque a mediocridade reinante a cada esquina não permite esse arrojo.
No entanto, é urgente resolver outra questão que, por analogia, pode traduzir-se em ineficácia fiscalizadora: como será possível mandar esses zelosos e temerários fiscais tomar, apanhar, levar no cu (perdoem-me a exergásia), se quem tem cu tem medo?

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Brennen, bevor es kann beobachtet werden

Volta Bradbury, os 451 ºF não garantem a pulverização completa desta coisa:



Que saloiada! Perante isto, o Para a Finlândia com Amor, de Cascais merecia, no mínimo, o Prémio da mise en scène, na secção Un Certain Regard em Cannes.

Ich bin ein baixa-da-banheiren.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Gaddis

Uma notável recensão. Acabei de a ler há poucos minutos. Não sei se foi ou não foi hoje publicada na edição impressa da Ípsilon – para o caso não interessa, está acessível na rede –, e se a menciono com atraso, isso não lhe retira a pertinência e nem prejudica o propósito destas curtas linhas que aqui pretendo deixar. O texto crítico a que me refiro é de João Bonifácio que discorre, de forma admirável, sobre o mais recente romance publicado pela venerável editora portuense Ahab: Ágape, Agonia (Agapē Agape), quinta e última obra de ficção do escritor norte-americano William Gaddis (1922-1998), terminada no ano da sua morte, mas apenas publicada em 2002.
No quarto parágrafo, Bonifácio, crítico temerário, escreveu uma asserção susceptível de causar algum estrépito na turba dos ungidos pelos literários óleos da lusa mediocridade, decerto com consequências sísmicas nas suas infelizes doxologias, embora JB, muito longe de ser um novato ou crítico inexperiente, haja feito a devida ressalva – não vá o diabo tecê-las e garantir-lhe o enxofre pestilento de mais uma polémica estéril e morrinhenta (adjectivo meteorológico):
«Se nos é permitida a insolência, não nos recordamos de melhor primeiro capítulo que o de abertura de “Carpenter’s Gothic”».
Não foi necessário fazer um grande esforço de memória para me recordar desse capítulo e dos parágrafos que o delimitam; recordação que me fez despertar uma saudade que me irá levar a uma releitura muito em breve. Lembrei-me de um pássaro, o deus ex machina surpreendentemente deslocado para o início da narrativa, mas que deambula estropiado, alma penada num círculo borgiano, ao longo das entrecruzadas e alienadas conversas telefónicas. É um simples e genial desvario literário, que começa assim:
«O pássaro – um pombo-correio ou uma pomba brava? (ela sabia que havia pombos por ali) – esvoaçou pelos ares, sem cor definida, no crepúsculo. Aquilo que ela confundiu inicialmente com um trapo velho bateu as asas na cara do mais novo dos rapazes, que sacudiu a lama da face atingida, agarrou o pássaro e atirou-o para um dos amigos. Este improvisou um bastão com um ramo e divertiu-se a atirá-lo ao ar até ficar pendurado na copa de uma árvore. Depois abanou-a e o pássaro caiu por entre um turbilhão de folhas numa poça de água formada pela chuva da noite anterior. Voltou a agarrá-lo e prosseguiu a sua brincadeira cruel. Parecia um volante de badmington, cujas penas caíam a cada pancada do bastão, até que por fim chocou contra uma placa amarela que assinalava um beco, na esquina da casa onde as crianças costumavam brincar àquela hora do dia.
»Quando o telefone tocou, já ela se tinha afastado e tentava refazer-se do que acabava de presenciar.»
William Gaddis, Gótico Americano, p. 5 [Lisboa: Difusão Cultural, Fevereiro de 1991, 270 pp; tradução de Muriel Alves Brazil; obra original: Carpenter’s Gothic, 1985]
Fante, Stuparich, Solstad, Sherwood Anderson e agora Gaddis, com promessa de reedição da obra atrás referida Carpenter’s Gothic – embora pedisse, egoisticamente, uma troca por pelo menos um dos calhamaços The Recognitions (1955), com quase mil páginas na versão original, ou J R (1975), com mais de setecentas – assim se vai fazendo a Ahab.
Numa época em que o meio editorial português no campo da ficção e da poesia se concentra em três grupos (LeYa, Babel e Porto Editora), há umas pequenas ilhas onde ainda prolifera a qualidade literária e que, acima de tudo, nos garantem a diversidade. A Ahab é a mais recente nesse arquipélago, onde com critério e obstinação vai combatendo os monstros neptuninos informes que foram engordando à custa do filistinismo tão curial à época do lixo metamorfoseado em caracteres impressos em livro ou em bytes numa consola de livros digitais.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Em colapso

Hoje (ontem) ficou a saber-se que Pedro Mexia, subdirector da Cinemateca Portuguesa, abandonou as coisas muito lá da casa pelos expiatórios motivos pessoais. E não se atrevam a esquadrinhar os fundamentos que conduziram à demissão de Mexia de um cargo público – assuntos pessoais, assunto encerrado. E por favor, que não se aproveite este momento para engendrar a lusa questiúncula da escassez de verbas ou de uma incompatibilidade de carácter, ou até política de dirigente(+)/dirigente(-): um argumento rendilhado, novelesco e com toque melodramático, de conflitos ou de desinteligências com a nova directora (ver o que aqui proferi sobre esta eminência parda) empossada há meio ano – a tal que, por ser amiga pessoal do vulto Bénard, ganhou num ápice o estatuto de cinéfila e de erudita da coisa fílmica, e que o magnânimo aparelho socialista colocou sob o foco ardente do cinematógrafo.
Os motivos foram pessoais e há que aceitá-los porque, desta feita, a sua invocação até pode ser manifestamente verdadeira, e ninguém está disposto a, e com coragem para, contrariar a potencial pátina de verdade.
Como indicou a TSF, a notícia encontrava-se postada, sob a forma de uma singela e lacónica mensagem,  no blogue pessoal do demissionário.
Contudo, não posso negar as evidências e esconder a agitação que abalroou as minhas defesas da emoção desamarrada. A notícia do foro lisboeto-empolado teve uma virtude, a de me poder voltar a inebriar com o Lei Seca – motivos pessoais confessáveis e não financiados pelos impostos da Nação estiveram na sua origem, id est, afastamento da blogosfera, um invencível cansaço intelectual pelas expostas melancolias saturninas e pelos epigramas de índole ciorânica (permita-se-me a colagem ao eminente, e maior polímato vivo, George Steiner, para fazer dele a minha opinião sobre a arengada aforística do romeno da guarda de ferro – cf. “Da Concisão”, George Steiner em The New Yorker, Gradiva, 1.ª edição). Abalançado pela prosa curta, esquadrinhei alguns textos e detive-me nestas duas frases de uma mesma talhada cinéfila, a derrotista e a sentenciosa, respectivamente: «Chegámos a finais de Julho e confirma-se: este ano cinematográfico é fraco» e «Scorsese e von Trier entraram em colapso». Quanto ao dinamarquês, e fazendo uma pequeno esforço de memória sobre a sua filmografia, ele próprio é a personificação do colapso – aquele último onde uma auto-excisão é absurdamente dedicada a Tarkovski... ah, então aquela fantochada de antanho com a gritante (é literal) islandesinha cega é de pôr os cabelos em pé. No que respeita ao italo-americano, faço votos para que continue a colapsar desta forma por muitos e bons anos. E, a talho de foice, deixo aqui ficar o texto de um dos raríssimos críticos cinematográficos cujas críticas me servem de guia – embora, nesta matéria, preserve até ao ridículo do absoluto a minha independência estética. Eis Roger Ebert sobre Shutter Island, apreciação publicada no Chicago Sun-Times a 17 de Fevereiro deste ano:
«“Shutter Island” starts working on us with the first musical notes under the Paramount logo’s mountain, even before the film starts. They’re ominous and doomy. So is the film. This is Martin Scorsese’s evocation of the delicious shuddering fear we feel when horror movies are about something and don’t release all the tension with action scenes. In its own way it’s a haunted house movie, or make that a haunted castle or fortress. Shutter Island, we’re told, is a remote and craggy island off Boston, where a Civil War-era fort has been adapted as a prison for the criminally insane. We approach it by boat through lowering skies, and the feeling is something like the approach to King Kong’s island: Looming in gloom from the sea, it fills the visitor with dread. To this island travel U.S. marshal Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) and his partner Chuck Aule (Mark Ruffalo).
It’s 1954, and they are assigned to investigate the disappearance of a child murderer (Emily Mortimer). There seems to be no way to leave the island alive. The disappearance of one prisoner might not require the presence of two marshals unfamiliar with the situation, but we never ask that question. Not after the ominous walls of the prison arise. Not after the visitors are shown into the office of the prison medical director, Dr. Cawley, played by Ben Kingsley with that forbidding charm he has mastered.
It’s clear that Teddy has no idea what he’s getting himself into. Teddy – such an innocuous name in such a gothic setting. Scorsese, working from a novel by Dennis Lehane, seems to be telling a simple enough story here; the woman is missing, and Teddy and Chuck will look for her. But the cold, gray walls clamp in on them, and the offices of Cawley and his colleagues, furnished for the Civil War commanding officers, seem borrowed from a tale by Edgar Allan Poe.
Scorsese the craftsman chips away at reality piece by piece. Flashbacks suggest Teddy’s traumas in the decade since World War II. That war, its prologue and aftermath, supplied the dark undercurrent of classic film noir. The term “post-traumatic shock syndrome” was not then in use, but its symptoms could be seen in men attempting to look confident in their facades of unstyled suits, subdued ties, heavy smoking and fedoras pulled low against the rain. DiCaprio and Ruffalo both affect this look, but DiCaprio makes it seem more like a hopeful disguise.
The film’s primary effect is on the senses. Everything is brought together into a disturbing foreshadow of dreadful secrets. How did this woman escape from a locked cell in a locked ward in the old fort, its walls thick enough to withstand cannon fire? Why do Cawley and his sinister colleague Dr. Naehring (Max von Sydow, ready to play chess with Death) seem to be concealing something? Why is even such a pleasant person as the deputy warden not quite convincingly friendly? (He’s played by John Carroll Lynch, Marge’s husband in “Fargo,” so you can sense how nice he should be.) Why do the methods in the prison trigger flashbacks to Teddy’s memories of helping to liberate a Nazi death camp?
These kinds of questions are at the heart of film noir. The hero is always flawed. Scorsese showed his actors the great 1947 noir “Out of the Past,” whose very title is a noir theme: Characters never arrive at a story without baggage. They have unsettled issues, buried traumas. So, yes, perhaps Teddy isn’t simply a clean-cut G-man. But why are the others so strange? Kingsley in particular exudes menace every time he smiles.
There are thrilling visuals in “Shutter Island.” Another film Scorsese showed his cast was Hitchcock’s “Vertigo,” and we sense echoes of its hero’s fear of heights. There’s the possibility that the escaped woman might be lurking in a cave on a cliff, or hiding in a lighthouse. Both involve hazardous terrain to negotiate, above vertiginous falls to waves pounding on the rocks below. A possible hurricane is approaching. Light leaks out of the sky. The wind sounds mournful. It is, as they say, a dark and stormy night. And that’s what the movie is about: atmosphere, ominous portents, the erosion of Teddy’s confidence and even his identity. It’s all done with flawless directorial command. Scorsese has fear to evoke, and he does it with many notes.
You may read reviews of “Shutter Island” complaining that the ending blindsides you. The uncertainty it causes prevents the film from feeling perfect on first viewing. I have a feeling it might improve on second. Some may believe it doesn’t make sense. Or that, if it does, then the movie leading up to it doesn’t. I asked myself: OK, then, how should it end? What would be more satisfactory? Why can’t I be one of those critics who informs the director what he should have done instead?
Oh, I’ve had moments like that. Every moviegoer does. But not with “Shutter Island.” This movie is all of a piece, even the parts that don’t appear to fit. There is a human tendency to note carefully what goes before, and draw logical conclusions. But – what if you can’t nail down exactly what went before? What if there were things about Cawley and his peculiar staff that were hidden? What if the movie lacks a reliable narrator? What if its point of view isn’t omniscient but fragmented? Where can it all lead? What does it mean? We ask, and Teddy asks, too.»

Nota: Já agora, eis as minhas breves impressões deixadas neste blogue sobre o mesmo filme.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

A Imaginação Moral

«Ao contrário de muitos críticos contemporâneos que durante os últimos anos adquiriram uma reputação súbita nos Estados Unidos, Steiner não se dispõe a ler para ficar desapontado, e nunca encarou a actividade crítica como uma oportunidade para adoptar posturas profundamente desdenhosas.»
Robert Boyers, “Introdução”, p. 14. In George Steiner, George Steiner em The New Yorker [Lisboa: Gradiva, 1.ª edição, Junho de 2010, 417 pp; tradução de Joana Pedroso Correia e Miguel Serras Pereira; obra original: George Steiner at The New Yorker, 2008.]
Muito haveria para dizer partindo do curto período atrás citado, retirado do prefácio de autoria do coordenador (não, não se trata do eufemista Louçã) da antologia de ensaios escritos para a revista norte-americana The New Yorker por George Steiner e que, com louvor e consideração – não sem uma pequena reprimenda pela contumaz preguiça editorial de marca lusa* –, a Gradiva traduziu e publicou há cerca de um par de semanas em Portugal, sobre a ortodoxia e o reaccionarismo que se apoderou da crítica literária praticada em solo americano e que se estendeu, de forma pandémica, à crítica literária ocidental, inclusivamente nos cantinhos geográficos propensos à expansão da mediocridade dos visionários de um só olho. Discute-se e muito a técnica, ignora-se a estética e exalta-se a ética literárias – por outras palavras, fazendo uso do conhecimento quase científico da primeira, subordina-se a segunda a um conjunto de interesses de índole diversa que se subsumem nos princípios prevalecentes da terceira num dado momento. Descarta-se a imaginação em detrimento de um manual de bons costumes, de uma cartilha que implicitamente homenageia a obtusidade filistina, pois a arte – imaginação, criatividade, integridade estilística – é menorizada em favor de apriorismos políticos pseudoculturais, ou melhor, segue-se uma agenda económica, garroteada pelos subsídio-saqueadores, e, sobretudo, política, travestida de uma verdade oracular pela untuosa eminência auto-alardeada, apoiada pelo inebriante caleidoscópio contemporâneo dos novos canais promocionais – uma espécie de proliferação acelerada de Rui “brilhantina” Santos, ainda de menor calibre, com acesso privilegiado e exclusivo, porém irrestrito, a uma Delfos, que bem pode ser a Amadora ou Gondomar.
Os que confundem este movimento com a democratização da opinião, são os mesmos que, no seu afã libertário (contrário às convicções íntimas), acabam por criar mitos autocráticos, os monstros da opinião postados em torres de marfim, emprenhando um conjunto de seguidores cegos pelo falso brilho do logro bem vendido, e ainda mais medíocres que o justo progenitor, o que é bem mais atentatório para a evangelizada liberdade de expressão – causa arrebatada pela percebida autoridade moral publicitada, que mais não é que um narcisismo degenerado, porque a distorção mental é de tal ordem que não lhes permite sequer divisar a sua própria imagem numa hesitante superfície reflectora.
É assim a arte na mão dos políticos, burocratas e plutocratas (que proliferam pela actividade dos dois primeiros grupos), roubada aos artistas pelos sequazes da domação da criatividade. Passo a passo vai-se construindo o decálogo de onde emanará a feroz liturgia: e venha a nós a vossa crítica, ó sumo-sacerdote do realismo novecentista, engrandece os livros escritos pelos teus correligionários, publicados pelo grupo editorial da tua mulher e amigos, reprova a abstracção como liberdade criativa. Não denegarás o discurso indirecto livre…
*Nota: a edição lusa deste livro, para além de alguns pecadilhos de tradução detectados logo no primeiro e gigantesco ensaio (por exemplo, troca-se “MI5” por “M15”), enferma do habitual nacional-forretismo, um dos principais derivados do nacional-porreirismo. De facto, os responsáveis da Gradiva não só eliminaram o essencialíssimo “índice remissivo” – peça fundamental em obras com esta configuração –, como também suprimiram um importante “anexo” que continha, na edição original, a listagem completa de todos os artigos publicados por Steiner na icónica revista norte-americana. Assim como, em nenhuma parte do texto em português se faz referência à, jamais negligenciável, data de publicação – percorri o livro de lés a lés e… nada de datas, que permitiriam descortinar a envolvente e o enquadramento histórico no momento em que os escritos foram produzidos e publicados.
Assim sendo, deixo aqui ficar um auxiliar de minha lavra [tudo o que figurar entre parêntesis rectos], para aqueles que fazem tenções de se aventurar na 1.ª edição desta obra (esperando, porventura em vão, uma correcção para a 2.ª):
–––O Sacerdote da traição [sobre Anthony Blunt; “The Cleric of Treason”; 08/12/1980]
–––Wien, Wien, Nur du Allein [sobre Anton Webern & Viena; 25/06/1979]
–––De Profundis [sobre o Volume III do Arquipélago de Gulag de Aleksandr Solzhenitsyn; 04/09/1978]
–––Espiões de Deus [sobre O Factor Humano de Graham Greene; “God’s Spies”; 08/05/1978]
–––Da Casa dos Mortos [sobre Albert Speer; “From the House of the Dead”; 19/04/1976]
–––De Mortuis [sobre Philippe Ariès & O Homem Perante a Morte; 22/06/1981]
–––Mil Anos de Solidão [sobre Salvatore Satta; “One Thousand Years of Solitude”; 19/10/1987]
–––Matar o Tempo [sobre Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell; “Killing Time”; 12/12/1983]
–––Danúbio Negro [sobre Karl Kraus & Thomas Bernhard; “Black Danube”; ”21/07/1986]
–––B. B. [sobre Bertolt Brecht; 10/09/1990]
–––Uneasy Rider [sobre Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas de Robert M. Pirsig; 15/04/1974]
–––Uma Ave Rara [sobre Guy Davenport; “Rare Bird”; 30/11/1981]
–––Cartas Perdidas [sobre John Barth; “Dead Letters”; 31/12/1979]
–––Tigres no Espelho [sobre Jorge Luis Borges; “Tigers in the Mirror”; 20/06/1970]
–––Do Cambiante e do Escrúpulo [sobre Samuel Beckett; “Of Nuance and Scruple”; 27/04/1968]
–––Aos Olhos do Oriente [sobre Aleksandr Solzhenitsyn & outros russos; “Under Eastern Eyes”; 11/10/1976]
–––Homem-Gato [sobre Louis-Ferdinand Céline; “Cat Man”; 24/08/1992]
–––O Amigo de um Amigo [sobre Walter Benjamin & Gershom Scholem; “The Friend of a Friend”; 22/01/1990]
–––Uma Sexta-Feira Má [sobre Simone Weil; “Bad Friday”; 02/03/1992]
–––O Jardim Perdido [sobre Claude Lévi-Strauss; “The Lost Garden”; 03/06/1974]
–––Da Concisão [sobre E.M. Cioran; “Short Shrift”; 16/04/1984]
–––Velhos Olhos Cintilantes [sobre Bertrand Russell; “Ancient Glittering Eyes”; 19/08/1967]
–––Uma História de Três Cidades [sobre as Memórias de Elias Canetti; “A Tale of Three Cities”; 22/11/1982]
–––Le [sic] Morte d’Arthur [sobre Arthur Koestler; “La Morte D’Arthur”; 11/06/1984]
–––As Línguas do Homem [sobre Noam Chomsky; “The Tongues of Man”; 15/11/1969]
–––Uma Morte de Reis [sobre Xadrez; “A Death of Kings”; 07/09/1968]
–––Dar a Palavra [sobre James Murray & o Oxford English Dictionary; “Give the Word”; 21/11/77]
–––Uma Vida Examinada [sobre Robert Hutchins & a Universidade de Chicago; “An Examined Life”; 23/10/1989]

Imagem: (cf. Metamorfoses de Ovídio) reprodução de Eco e Narciso, de Nicolas Poussin (1594-1665), circa 1630, óleo sobre tela (Museu do Louvre, Paris).

segunda-feira, 31 de maio de 2010

A Cin-Cinemateca

Nunca um defeito – que me merece todo o respeito, tal como um excesso, desde que não me fodam com patranhas – me pareceu tão adequado para qualificar a novela arrastada, burlesca, pobrezinha, em suma, epítome da lusitanidade, sobre a “vinda/não-vinda” da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema para o Porto. Somos pobres, provincianos e estamos curvados, receptivos (faltam as feromonas), perante o poder ditado pela Capital. O Bénard, semideus, não queria, logo pelo dom emanado dos miasmas além-túmulo não se faz – como um oráculo tenebroso, lançando gritos, aflições e pragas através da corrupção da carne e da vetustez do espírito.
Sin Cinemateca – é como nos tratam, como bando de espanhóis que enchem os bolsos a uma corte de subsidiados que levantam o nariz e apontam o dedo, clamando por ventos e tempestades contra qualquer iniciativa que lhes roube a chama sagrada da cultura. E cá continuamos, no enquadramento bucólico do porto, como o Ícaro de Brueghel de cabeça e tronco mergulhados nas águas cediças, de traseiro virado ao deus iracundo pelo arrojo da sugestão – nem sequer houve tempo para o roubo da chama eterna que ilumina aquelas cabeças olímpicas, supra-sumos da intelectualidade e agentes exclusivos da cultura.
Basta olhar para a programação, e deixar destilar a inveja que me invadiu, arrasadora e pérfida, pela constatação da sua excelência, embora à custa da depredação dos corpos exauridos das regiões mais pobres da Europa a 27 – e, nesse momento, surge a ira pela diferença abissal entre a sumptuosidade asiática da Capital macrocéfala e os cenários de devastação humana que me rodeiam. Pecador sem remissão.
Oh, e como a Sra. Dra. (por lá tratam-se todos assim, pelos títulos, a que nem as salas de projecção conseguem escapar; esse novo-riquismo, snob, sine nobilitate, a jactância pequeno-burguesa, o triunfo dos porcos que finalmente se acham símiles dos humanos no poder), investida daquela sua farpa graciosa, em que tartamudeando, faz as suas piadinhas demagógicas e atestadas de soberba:

«Houve um abaixo-assinado [sobre a criação de um pólo da Cinemateca no Porto], como sabe. E acontecem algumas projecções na Fundação de Serralves em que, segundo me disseram... Por exemplo, no ciclo dedicado a Pedro Costa, não sei se o realizador se alguém por ele, perguntou, perante o número exíguo de espectadores, se eles estavam ali em representação dos 4970 signatários.»
Maria João Seixas, Ípsilon, 28/05/2010 (em entrevista a Kathleen Gomes).
Ciclo, mas que ciclo? O extinto preparatório? Um cripto-ciclo com duas projecções duas (Ne change rien de 2009, e O Sangue de 1989) num auditório que não reúne as condições necessárias para uma projecção cinematográfica de qualidade (visual e sonora) e minimamente confortável?
Não há salas cheias, sem se readquirirem os hábitos que se perderam, ou que nos foram roubando. A outrora considerada cidade ibérica com maior número de cinéfilos, vai-se divertindo com os popós nos Aliados e na Boavista (com aplauso de veneração da Capital), as lantejoulas brejeiras e revisteiras à Praça D. João I e o gordo dos concursos à Sá da Bandeira. E chega.
E continuo a olhar para o programa, e a ira e a inveja consomem-me pelos trezentos quilómetros de distância.
Sin-Cinemateca. Para os mais eruditos, latinistas, Sine-Cinemateca. Besuntai-vos com ela e com as soluções de compromisso com os mortos. Bastava um arquivo digital que, com o dinheiro de todos nós, replicasse no Porto e noutras cidades com um razoável número de cinéfilos (Coimbra, Braga ou Vila Real, por exemplo), o programa exibido na Barata Salgueiro.
Polanski, Spielberg, Visconti e… Mário Barroso, uma nota cómica (a talho de foice)
A Cinemateca promoveu uma pequena e curiosa iniciativa (ainda em realização) denominada “Os Filmes dos Presidentes”, que se enquadra nas comemorações do Centenário da República, nesse sentido «a Cinemateca entendeu convidar quem ocupa e ocupou o mais Alto Cargo da República para a realização deste Ciclo, apresentando um filme da sua escolha.» Eis a selecção:
  • Cavaco Silva escolheu O Pianista (The Pianist, 2002), de Roman Polanski;
  • Jorge Sampaio elegeu o grandioso O Leopardo (Il Gattopardo, 1963), de Luchino Visconti;
  • Ramalho Eanes optou pelo mais prosaico e militarista O Regaste do Soldado Ryan (Saving Private Ryan, 1998), de Steven Spielberg;
  • Mário Soares, bem ao seu estilo, laico e republicano (agora fala-se muito da ética desta última), sobrinhou (foi bastante papista) O milagre segundo Salomé, do realizador português Mário Barroso.
Como diria alguém que conheço e muito prezo: uma beleza!

domingo, 30 de novembro de 2008

Solidarizo-me...

«Jornalistas despedidos assinalam aniversário do jornal O Primeiro de Janeiro»

Não só porque nesse grupo estão pessoas que muito estimo e admiro profissionalmente, mas também pela impunidade do despotismo dos pequenos régulos que, assim que abocanham o poder, governam um espaço que julgam só seu – qual púbere irascível agarrado ao seu brinquedo – derrogando a ética e a responsabilidade empresariais.
Stakeholders, já alguém ouviu falar?...

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Ah, o verdadeiro “Macho… Arábico”!

Aos marialvas, aos machões, aos taberneiros, ao homem português médio (afinfador polissémico), aos bigodados, aos raybanistas de aro dourado e lente esverdeada… aos palhaços.
Se vos acháveis orgulhosos pelo entupimento diário das urgências hospitalares provocado por casuais percalços físicos conjugais; se vos consideráveis como verdadeiros átilas domésticos sempre que ultrapassáveis a soleira da porta, onde jamais o bolor voltou a crescer, descarregando no ente amado a frustração e a ignomínia diárias dos mandos e desmandos dos vossos superiores, que, desgraçadas, numa ânsia feminil, vos espera com o quente manjar dos deuses servido, a alfazema da roupa lavada e a diligente geometria da cama feita, eis que surge algo que vos fará corar de inveja, pondo a nu a profundidade da vossa incompetência autoritária intramuros.
Quando lerdes as palavras que abaixo se reproduzem, agarrai-os com força, não os deixeis fugir, e pesai-os perante a tranquila preeminência e sensatez doutrinal que veio das arábias…
Ah, meu terno, alambicado e possessivo macho latino, quo vadis?

«Os homens batem mais vezes nas mulheres do que as mulheres batem nos homens. Alá criou as mulheres delicadas, frágeis, servis e macias porque elas usam mais as emoções do que usam os seus corpos. Embora o homem possa usar o açoitamento para disciplinar a mulher, ela por vezes usa as lágrimas para o disciplinar. Para os homens, as emoções das mulheres poderão ser mais violentas do que o golpe de uma espada.
Antes de bater numa mulher, repreenda-a primeiro – uma vez, duas, três, quatro ou dez vezes. Se isso não ajudar, deverá regressar ao ensinamento “recusar partilhar as suas camas.” Assim, um marido distancia-se ele próprio da mulher na cama e na conversação. Se um marido chega para comer uma refeição e a sua mulher lhe perguntar, “Como estás?” “Queres alguma coisa?” ele não deve responder. O marido não deve dormir com a sua mulher. Ele deverá dormir noutro quarto.
Se isso não ajudar, então a terceira opção do marido é a de açoitar suavemente a sua mulher de modo a não deixar uma marca. Ele não pode desfigurar a sua cara. Bater na cara é proibido. Mesmo que queira que o seu burro ou camelo caminhe mais depressa, não está autorizado a bater-lhe na cara. Se este é o comportamento correcto nos animais, ainda o é mais nos humanos. Se o marido estiver irritado com a sua mulher – se ele lhe disser, “Cuidado, a criança caiu perto do fogão,” e ela disser, “Estou atarefada” – então o marido deverá bater na sua mulher com um palito ou com algo do género*. Ele não deverá bater-lhe com uma garrafa de água, um prato ou uma faca. Repare quão delicado é um palito quando usado para bater – isto mostra-lhe que o objectivo não é o de infligir dor. Quando bate num animal, pretende que isso lhe provoque dor para que ele lhe obedeça, porque um camelo não entenderia se lhe dissesse, “Camelo, anda, mexe-te.” Um burro não entende nada mais para além dos açoitamentos, mas para uma mulher, um açoite leve transmite, “Mulher, foste longe de mais.”
Um marido não deverá bater na sua mulher como o faria a um filho, batendo-lhe a torto e a direito. Infelizmente, muitos maridos batem nas suas mulheres apenas quando ficam irritados, e quando começam a bater, eles usam ambas as mãos e algumas vezes os pés, como se estivessem a esmurrar uma parede. Lembra-te, irmão, isso é proibido; a tua mulher é um ser humano.
»
*ou talvez, com o avanço tecnológico, com fio dental [nota simplesmente desnecessária e jocoso-especulativa deste vosso tradutor].
in Harper’s, “Beat Her Like a Lady”, November, 2008, p. 29. [tradução: AMC]

Segundo a Harper’s, que atribuiu ao texto o subtítulo Etiqueta, estas palavras foram proferidas num programa televisivo transmitido no ano passado na Arábia Saudita e no Kuwait pelo clérigo Muhammad al’Arifi. Destinavam-se a aconselhar os jovens maridos na forma de tratamento das suas mulheres.

Depois de ter testemunhado a verdadeira epifania funcional do “palito”, ainda dizem que estes árabes não são civilizados...
Imaginem só se um destes homens entrasse num restaurante português e assistisse ao triste espectáculo daquelas mãos afanadas a cuspinhar a barbela, pontuada por aquele chilreio salivar interdental.

[disclaimer: este texto demonstra cabalmente o estado de espírito (se é que ele o tem) do autor deste blogue: sem paciência, rasteiro, hortero como suelen decir os meus queridos amigos espanhóis.]

domingo, 2 de novembro de 2008

Magalhães

Porque lhe dei este título?
É domingo, dia quase oficial das citações tout court neste blogue, mas no entanto… Uma vontade irreprimível, como se os dedos que comandam as teclas houvessem ganhado vida, autónoma, independente da vontade da alma que se lhes infiltra a carne… é fraca, eu sei. Talvez, à laia de lenitivo lúbrico, o Soneto CXXIX de Shakespeare não fosse má ideia.
Recriando as palavras do outro, barricado em Novembro 1975 no Parlamento português, não gosto que façam sexo comigo quando contrariado…

Magalhães, vendido como tremoços em cimeiras internacionais… que vergonha! Por favor, não façam amor comigo sem a minha anuência!

(Auxiliar de leitura da citação: o rei que se segue, em conversa com o seu criado – que poderia ser a representação fiel de todos nós –, tem o hábito imperial de se referir a si mesmo na primeira pessoa do plural.)

«– Somos o Imperador da Índia, Bhaktri [sic] Ram Jain, mas não somos capazes de escrever o raio do nosso nome […]
– Sim, ó ditosíssima entidade, pai de muitos filhos, esposo de muitas esposas, monarca do mundo, abarcador da terra – respondeu Bhakti Ram Jain [o criado], estendendo-lhe uma toalha. Esta altura, a hora do levantar do rei, era também a hora da lisonja imperial. Bhakti Ram Jain detinha orgulhosamente a categoria de Lisonjeador Imperial de Primeira Classe, e era mestre no floreado estilo da velha escola conhecido por bajulação cumulativa. Só um homem com uma memória excelente para as barrocas formulações dos encómios excessivos era capaz de bajular cumulativamente, devido às repetições exigidas e à necessária precisão da sequência. A memória de Bhakti Ram Jain era infalível. Era capaz de bajular durante horas.
[…]
– Somos o rei dos reis, Bhakti Ram Jain, mas não somos capazes de ler as nossas próprias leis. Que dizes a isto?
– Sim, ó mais justo de todos os juízes, pai de muitos filhos, esposo de muitas esposas, monarca do mundo, abarcador da terra, governante de tudo o que existe, congregador de todo o ser – volveu Bhakti Ram Jain, fazendo aquecimento para a sua tarefa.
– Somos a Sublime Radiância, a Estrela da Índia e o Sol da Glória – disse o imperador, que sabia também uma ou duas coisas de lisonja, – e contudo fomos criados naquela esterqueira de cidade onde os homens fodem com as mulheres para fazerem filhos mas fodem com rapazes para os fazerem homens, criados tanto a estar alerta ao atacante que operava pelas costas como ao guerreiro mesmo na nossa frente.
[…]
[A bajulação do criado continua no seu mais firme estoicismo (nota minha)]
– Sim, ó mais perspicaz que os Videntes, pai de muitos...
– És um bode ao qual se devia cortar a garganta para podermos comer a sua carne ao almoço.
– Sim, ó mais misericordioso que os deuses, pai...
– A tua mãe fodeu com um porco para te fazer.
– Sim, ó mais eloquente de todos quantos têm eloquência, p...
– Deixa lá – atalhou o imperador. – Já nos sentimos melhor. Vai-te embora. Podes viver.
»
Salman Rushdie, A Feiticeira de Florença, pp. 44-45.
[Lisboa: Dom Quixote, 1.ª edição, Outubro de 2008, 343 pp.; tradução de J. Teixeira de Aguilar; obra original: The Enchantress of Florence, 2008.]

domingo, 26 de outubro de 2008

De derrota em derrota

Ibson e Leandro Lima
Há argumentos para o descalabro: deixámos fugir Paulo Assunção pela cupidez de mais uns trocos (explicação: não queremos gananciosos no nosso plantel); Bosingwa foi para o Chelsea (explicação: não poderíamos cortar as pernas ao melhor lateral direito do mundo; entretanto entraram mais 24 milhões, para onde?) Quaresma portou-se mal e pressionou para a saída, fechámo-lo a sete chaves para que o cigano aprendesse, depois baixámos as calças fazendo substituir, por um arabesco retórico, os 40 milhões exigidos por 18 milhões e… o Pelé, nome de craque (explicação: quem está mal muda-se e até veio um Assunção rejuvenescido... acabou-se o desatino da contratação de todos os defesas esquerdos do mercado, agora temos trincos; a casa está protegida, depois do assalto às claras, trincos à porta).
Ao comando mantemos Jesualdo Ferreira (com a saída de Carlos Azenha, fomos buscar José Gomes; ficou a dupla que, há alguns anos, tão bom resultados deu ao Benfica…)
Com Jesualdo somos bicampeões (para o “tri” teríamos de acrescentar o casmurro e incómodo Adriaanse). Perdemos duas Taças de Portugal e duas Supertaças frente ao Sporting, mas vamos vencendo o Benfica…
Nos últimos dois anos, contratámos um grupo inteiro de uma escola de tango: Benítez, Mariano, Bolatti, Tomás Costa, Farías, que se juntam à dupla de contrariados e insatisfeitos, com o seus gordos vencimentos, Lucho e Licha. Fomos à Colômbia buscar o afamado Guarín, depois do desastre Rentería (de quem espero que, em partenariado com o Alan, fique por muitos e bons anos na cidade dos arcebispos). Roubámos o Rodríguez ao Benfica. Pedimos à Marvel o Hulk. Eclipsámos aquele de quem se dizia ser o melhor defesa central do futuro, Stepanov. Deixámos o desgraçado do Raul Meireles sozinho a meio-campo, a percorrer o terreno todo sob o peso das tatuagens.
Mas temos Jesualdo e o seu idiossincrático e hidiano simpático/abespinhado na presença de jornalistas e de adeptos insatisfeitos.
E repito-me, já foram as taças e as supertaças, e a honra e a glória com o Nacional em casa, com o Chelsea, Liverpool e o Arsenal fora… e, ontem, o Leixões… «foi horrível», disse. Continuará a ser terrível, digo eu.
Entretanto, lá em cima, reproduzidos em píxeis, figuram o melhor jogador do Brasileirão da última época, Ibson (ainda para mais, pela onomástica, um quase excelso dramaturgo, ou um homem que trata os dramas por tu), e a, até há bem pouco tempo, grande esperança do futebol brasileiro, Leandro Lima (um pouco confundido com a idade, é certo, mas seria, certamente, uma preciosa ajuda para um meio-campo inexistente, que serviria de tampão para uma defesa de 5.ª categoria) – e ainda falta dissertar um pouco sobre o que se passou com o Bruno Moraes...
Entretanto, Jesualdo vai descarregando a sua bílis sobre tudo e todos.
Sou sócio do meu clube há quase 33 anos. Já paguei uma enormidade em quotas, uma pequena fortuna em lugares anuais (que abandonei com Adriaanse), e alguma coisa em produtos oficiais com marca registada… não sou accionista, e recuso-me a sê-lo enquanto o controlo pertencer a uma trupe que faz do meu clube um entreposto de jogadores, uma plataforma giratória de jogadores da bola entre a América Latina e a Europa.

A mim Jesualdo não me dá, nem nunca me dará lições de portismo. Afortunadamente, nunca pertenci à tenebrosa e ignara gentinha que por aqui denominei de “massa assobiativa”. Exijo, por isso, respeito e consideração pelo meu sofrimento semanal de adepto fervoroso – é bem certo que atenuado com algumas infelicidades, de todo o género e feitio, que sobre mim se abateram há coisa de sete anos e que insistem na sua laboriosa mortificação da minha alma.

Exige-se responsabilização.

Quero uma explicação cabal para o afastamento daqueles dois que, propositadamente, coloquei a envergar camisolas com outras cores que não as azul e branca.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

A Queda

Manuela Ferreira LeiteProcurei. Sabia que se encontrava algures pelo início do pequeno romance ensaístico de Camus: A Queda. Lêem-se e relêem-se aquelas linhas espalhadas por cerca de 120 páginas sem cansar. Em todas elas doutrina para inquirir. Pedra deliberadamente em bruto, apenas fornecida pelo prazer de ver os outros lapidá-la.
(Em mim dá-se um fenómeno, pelo menos curioso, sempre que leio ou releio os admiráveis escritos deste argelino de nascença, tragicamente desaparecido nos primeiros dias de 1960, com apenas 46 anos completados, cada vez me afasto mais daquele presunçoso, cujo olhar vesgo – e, acreditem, não é, de forma alguma, minha característica aproveitar-me do defeitos físicos para a vituperação seja de que ordem for do diminuído – sempre me deixou a impressão indelével do falhanço intelectual da pontaria: J-P Sartre.)

Está Clamence, o parisiense que vive no bairro judeu em Amesterdão quando se tornou juiz-penitente, no início do seu aparente diálogo com um desconhecido no Mexico-City acabado de chegar de Paris, quando pergunta:

«Demora-se muito em Amsterdão [sic]? Linda cidade, não acha? Fascinante? Eis um adjectivo que não ouço há muito tempo. Precisamente desde que deixei Paris, já lá vão uns anos. Mas o coração tem a sua memória e eu nada esqueci da nossa bela capital, nem dos seus cais. Paris é uma autêntica ilusão de óptica, um imponente cenário habitado por quatro milhões de silhuetas. Perto de cinco milhões no último recenseamento? Está bem, devem ter feito meninos. Não me admiro. Sempre me pareceu que os nossos concidadãos tinham duas paixões violentas: as ideias e a fornicação. A torto e a direito, por assim dizer.»
Albert Camus, A Queda, pp. 9-10 (Lisboa: Livros do Brasil, Novembro de 2007, 113 pp.; tradução de José Terra; obra original: La chute, 1956).

A nossa lusamente fabricada “dama de ferro” – o neologismo já diz tudo – fazendo, decerto, apelo a um conservadorismo arrumado no armário dos dispendiosos e anacrónicos casacos de peles com cheiro a naftalina, afirmou que, se for poder, jamais permitirá uma lei que viabilize o casamento entre homossexuais: o casamento é para a procriação, diz ela.
Não sou historiador, sociólogo, psicólogo social, antropólogo, apenas um homem das ciências e das finanças empresariais, mas consigo afirmar que, para além do maior ou menor lirismo, pompa e circunstância, na celebração do matrimónio, o casamento nos tempos mais recentes sempre teve que ver com a defesa jurídica do património e nunca com a fornicação… perdão, procriação. Aliás, negá-lo levar-nos-ia a outros tempos onde o bafio e bolor intelectuais pairavam por sobre as cabeças dos meus concidadãos, neste país de sacristias; um odor a naftalina, bem diferente da Índia de Pasolini – OK, comecei a lê-lo há coisa de uma hora –, cuja toxicidade acabou por se revelar mortal: traçou o destino de um país que inevitavelmente saiu do limbo rumo ao inferno do atraso estrutural e, acima de tudo, mental.

A dúvida adensa-se: que fazer em 2009?

sábado, 17 de maio de 2008

Não podem consentir

Por Hélder Pacheco

[Nota prévia: por razões de comodidade de leitura num blogue, procedeu-se a algumas alterações na forma de apresentação deste texto do eminente escritor, cronista e ensaísta português, licenciado em Belas-Artes. Todos os destaques são de minha autoria.]

No Grande Auditório do Soviete Supremo do Nacional-Centralismo, reuniu a respectiva assembleia-geral para análise, discussão e propostas relativas aos pontos únicos da agenda «Pode o Império Centralista continuar a consentir que o F. C. Porto ganhe campeonatos? Pode o Império consentir que uma equipa da província, sem representatividade nacional, mantenha a supremacia sobre as glórias do centralismo?»

A tais questões, pronunciaram-se os seguintes representantes dos Organismos Tutelares do Centralismo:
– da Confraria dos Centralistas Devoristas, que advertiu;
– da Confraria Centralista dos Gestores 7+ (acima dos 7 empregos), que berrou;
– da Confraria Centralista dos Gestores 7/5 (entre 7 e 5 empregos), que uivou;
– da Confraria Intelectual Centralista, que bolsou;
– da Confraria dos Assessores Centralistas, que gritou;
– da Confraria de Legisladores Centralistas, que decretou;
– da Confraria dos Grandes Incompetentes Centralistas, que dejectou;
– da Confraria dos Médios Incompetentes Centralistas, que arengou;
– da Confraria dos Provincianos Convertidos ao Centralismo, que grunhiu;
– da Confraria dos Centralistas subvencionados pelo Estado, que cuspiu;
– da Confraria dos Centralistas nomeados por proximidade do sistema, que ganiu;
– da Confraria dos Centralistas infiltrados nos Meios de Comunicação, que ladrou;
– da Corporação dos Centralistas Avençados, que exortou;
– da Corporação dos Centralistas Disfarçados, que invectivou;
– da Confraria Centralista da vista grossa à Insegurança no país, que programou;
– da Confraria dos Consultores Centralistas, que bradou;
– da Corporação Centralista de Comentadores de TV, que expeliu;
– da Corporação Centralista dos Acumuladores de Subsídios, que ejaculou;
– da Corporação Centralista promotora do abastardamento da Língua Portuguesa, que perdigotou;
– da Corporação Centralista do Cosmopolitismo Importado, que mesurou;
– da Corporação do Proteccionismo Centralista, que rezingou;
– da Corporação Centralista dos Exterminadores de Serviços Regionais, que peidorreou;
– da Corporação dos Yes-Men and Job for the Boys Centralization System, que arrotou;
– da Corporação dos reality-shows Centralistas, que discorreu;
– da Corporação dos Esbanjadores Centralistas, que vituperou;
– da Corporação Centralista dos Saudosos da Censura Prévia, que baliu;
– da Corporação Centralista dos Grupos de Trabalho, que praguejou;
e todos em uníssono votaram: «Não podemos consentir!» e «É ultrajante!».

Face à unanimidade, a Assembleia aprovou as seguintes conclusões:
1.º - Uma cidade a que o centralismo retirou quase tudo: emprego qualificado, sedes de empresas, serviços, investimento público, etc., não pode manter um clube que ganha campeonatos consecutivamente;
2.º -A única coisa que o centralismo ainda não conseguiu extorquir ao Porto são os campeonatos;
3.º - Como os clubes centralistas não ganham no campo, é preciso fazê-los ganhar em jogos fora do campo.

Para isso, serão adoptadas medidas imediatas:
a) lançar uma OPA sobre o F.C. Porto, transferindo-o para a capital;
b) aumentar o IVA do F. C. P., em 80% e os impostos em 90%, para o fazer ir à falência;
c) depois do dourado, lançar apitos prateados, verdes, laranjas, vermelhos e até PINK - cor favorita dos centralistas - para descredibilizar o F. C. P.;
d) formar um consórcio editorial para publicar exclusivamente livros de autores de nomeada - designadamente mortos ou moribundos - contra o F. C. P.;
e) classificando-o como local altamente perigoso para o centralismo, expropriar o Estádio do Dragão por razões de Estado;
f) fazer aumentar a taxa de desemprego da Área Metropolitana do Porto para níveis que obriguem à emigração dos adeptos do F. C. P. para trabalhar na Galiza;
g) legislar no sentido de impedir os menores de 90 anos de assistirem aos jogos do F. C. P.;
h) em caso de insucesso destas medidas, determinar que, no início dos campeonatos, os clubes do centralismo partam com 20 pontos de avanço.

Mal esta notícia chegou à cidade, na Vitória, na Sé, em Campanhã, em Lordelo, no Aleixo, no Cerco do Porto, no Monte Crasto, no Monte da Virgem, nas Cachinas, em Rio Tinto, na Feira, em Avintes, Custóias, Valongo e por aí fora, em toda a parte onde há dragões, milhares de bandeiras azuis se agitaram. E, enquanto os mais velhos cantavam a Maria da Fonte «Pela santa liberdade / Triunfar ou perecer», todos faziam o gesto do zé-povinho na direcção do antigo Sul (agora mudado pelos centralistas para West Coast) e os jovens portistas cantavam: «Esta vida de dragão / Só dá campeão! Tra-lará-lará - lará, lará-lará.»

In Jornal de Notícias, 1 de Maio de 2008.

terça-feira, 11 de março de 2008

Serviço (quase) Público

Para amanhã, talvez...
  • Porque a minha inusitada fase bibliófaga de antologia de contos lusos urge em socorrer-me pela leitura dos melhores;
  • Porque é uma porra de uma injustiça ser-se esquecido pela sexta língua mais falada no mundo inteiro – embora a infeliz falta de proveito seja um verdadeiro acto autopunitivo dos seus utilizadores;
  • Porque se vende tanto lixo;
  • Porque se já há Carver, Gógol, O’Connor, O. Henry, Tchékhov, Bukowski, Scott Fitzgerald, entre muitos outros de igual ou superior eminência literária;
  • Porque em apenas uma hora consegui compilar 50 obras (conto, novela ou romance) de 9 autores norte-americanos que teimosamente, com o passar dos anos, vão perdendo a vez na edição das suas obras na língua de Pessoa, e logo para os seus conterrâneos mais que descartáveis – (volto ao) lixo não biodegradável que contamina os nossos escassos recursos intelectuais;
  • Por que razão se perde tanto tempo com tanta merda?

"Chablis", DB. Amanhã.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Severin

Um mal que não se expurga. Letras indelevelmente gravadas no passaporte. Nacionalidade: portuguesa.
Este país faz-me mal, fustiga-me sem piedade. E é nessa implacabilidade sem remorso que martiriza os seus filhos. Uma coisa assim não é pátria. É um mecanismo intrincado de tortura, matreiro sugador de sangue, que nos morde pelo seu fado, soturno, melancólico e atormentado.
Quero sair. Exilar-me. Mas não me deixam. Não posso… não quero!
Vá, fustiga-me com o teu chicote infecto.
Sou Severin, puro, indefeso e sórdido, que agora se mutila com a tua língua.
És Wanda, mátria, corrupta, leonina… castigadora, benevolente, porém iníqua.

Vénus em peles

Cintilantes, cintilantes, cintilantes botas de couro
Rapariguinha fustigada no escuro
Ao teu sinal vem, o teu servo, não o abandones
Bate-lhe, querida mestra, e cura-lhe o coração

Pecados felpudos das fantasias à luz da rua
Procura os trajos que ela irá vestir
Peles de arminho adornam a dominadora
Severin, Severin lá te espera

Estou cansado, estou exausto
Poderia dormir por mil anos
Mil sonhos que me fariam despertar
Diferentes cores feitas de lágrimas

Beija as botas de couro, couro cintilante
Couro cintilante no escuro
Língua de fitas de couro, o cinto que te espera
Bate-lhe, querida mestra, e cura-lhe o coração

Severin, Severin, fala tão delicadamente
Severin, põe-te de joelhos
Saboreia o chicote, amor não dado sem queixume
Saboreia o chicote, agora suplica

Estou cansado, estou exausto
Poderia dormir por mil anos
Mil sonhos que me fariam despertar
Diferentes cores feitas de lágrimas

Cintilantes, cintilantes, cintilantes botas de couro
Rapariguinha fustigada no escuro
Severin, o teu servo vem ao teu sinal, por favor não o abandones
Bate-lhe, querida mestra, e cura-lhe o coração


Venus in Furs, letra de Lou Reed (The Velvet Underground and Nico, 1967) [versão: AMC, 2008]

Agora, a música hipnótica de Reed, Cale, Morrison & Companhia:


Grande puta.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Do miasma

[breve interlúdio na sequência de textos ordenados em numeração romana]

Hoje é um dia triste, e não se julgue que a causa, por via imediata, esteve na infeliz circunstância de o meu Porto haver sofrido por terras do Visconde a segunda derrota no campeonato – ganhou em atitude, segundo o filósofo Prof. Jesualdo, e com atitude pagarei a minhas quotas se o espectáculo de falhanços clamorosos, com ou sem Xistra, se repetir.
Como já referi sou um sofredor pelas mágoas do mundo, pela dor que comigo se cruza diariamente nos passeios da vida – cenhos franzidos, corpos mirrados, uma criança sozinha, indiferente, que ignora a pomba que a seu lado voa levando no bico o ramo de oliveira da paz entre os homens –, em suma, pela miséria ou infortúnio de se ser português. Porém, hoje, quando acordei para mais uma jornada, decerto pungente, neste vale de lágrimas, senti na boca o gosto a ferro da ressaca por um par de dias dos mais negros deste ainda imberbe 2008. Pensei em Pacheco Pereira, triste, isolado a um canto escuro e bafiento onde apenas se escutam as gotas de humidade a embater em solo duro e, no entanto, alagadiço e viscoso, carpindo, lamentando a derrota que o seu indisfarçável portismo agudizou – JPP é portista, não sabiam? O seu amor pelo Porto (todas as acepções permitidas) é inesgotável, da sua casa no antigo Carlton (agora Pestana)… ah, é um hotel… adiante.
Enquanto o seu grande amigo, o Querido Líder da Invicta, dá
sinais evidentes de que, em breve, se mudará a contragosto de malas e bagagens para Lisboa (Deus, ou alguém ou algo por Ele, o guarde aí em baixo por muitos anos) a pedido da imprensa e da blogosfera da Capital, atente-se nos seus hossanas diários, Pacheco Pereira anda distraído a brincar ao “São João Baptista” (até porque é o padroeiro da sua tão amada e inesquecível cidade), com a Cofina, Pinhão & Botelho, Carolina e com a elite fozeira Veiga e Aguiar Branco, abrindo os caminhos para a triunfal chegada do senhor, pondo de lado a “Teoria do Milieu” – ambiente miasmático em que tudo se passa – e o seu principal arquitecto JNPC, depois dos homicídios de Rio de Mouro e dos gangues que, a fazer fé nos relatos de residentes com identidade protegida, todos os dias aterrorizam a população, ou das facadas em Guimarães e dos anódinos very lights.
JPP pôs literalmente as barbas de molho, a vice-presidência chegará em breve, entretanto toca a “botar faladura” (como se sói dizer cá por cima) nos inúmeros meios de comunicação que lhe dão voz – ad nauseam.

sábado, 26 de janeiro de 2008

Da (triste) realidade

VII
[O rei vai nu ou a história de alguém que, de hoje em diante, irá percorrer o alcantilado, duro e tortuoso caminho da justiça portuguesa; grotesca e aviltante, kafkiana; promotora da desonra e do assassinato de carácter para os que não lhe conhecem as entranhas, nauseabundas, pútridas e ignominiosamente retorcidas; escorraçados do sistema pelo peristaltismo cúpido do poder.
Imperativo categórico: fiat justitia et pereat mundus.]

«Existe em Portugal uma criminalidade muito importante, do mais nocivo para o Estado e para a sociedade, e que andam por aí impunemente alguns a exibir os benefícios e os lucros dessa criminalidade e não há mecanismos de lhes tocar. Alguns até ostensivamente ocupam cargos relevantes no Estado Português.»
António Marinho e Pinto, bastonário da Ordem dos Advogados (declarações à Antena 1, 25/01/2008) [destaques meus]

VIII
[Da arrogância à ignorância. A sobranceria como afiguração de uma debilidade intelectual e espiritual percebida e insanável. Estreiteza. Apedeutismo. Filistinismo. Mediocridade. As duas faces da mesma moeda.]


«Aprendemos mais do que ensinamos, e os arrogantes vão continuar a sofrer de achaques, a contorcer-se, a espumar de raiva, a empalidecer, a esticar o nariz até tocar no tecto, como focas, a modular a voz até se assemelhar a um trombone, uma longa nota, estridente e cava, que não tem maneira de acabar. Deixemos a purulência arrogante refastelar-se na sua própria bílis.»
Sérgio Lavos, “
Os Outros”, Auto-Retrato

[Lema de vida: jamais serei arrogante, mas ignoro ser ignorante. Ainda agrilhoado na caverna, assistindo ao teatro de sombras onde se projectam os detentores da verdade suprema.]

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Massa Assobiativa

Já foi o Costa (José Alberto), ou o Semedo, ou o Sérgio Conceição, agora é o Quaresma. Todos, jogadores de futebol de primeira água que passaram pelo meu clube e cujas carreiras contribuíram de forma indelével, ao longos dos últimos anos, para o engrandecimento do seu nome, mas que nunca caíram no goto de um conjunto de adeptos que, nada entendendo de futebol, escolhe em cada época desportiva um bode expiatório, a equipar de azul e branco, para descarregar porventura as suas frustrações diárias que uma mentalidade e uma vidinha medíocres não deixam ultrapassar.
Sou sócio desde 1976 (ainda nem sequer havia completado 4 anos) e era muito novo quando comecei a acompanhar o meu pai ao futebol. Lembro-me do extinto “tribunal” (no falecido Estádio das Antas, situava-se na Superior Sul junto à Bancada da Maratona, este último e a Arquibancada eram os locais onde assistíamos aos jogos) e das invectivas contra os nossos jogadores.
Os anos foram passando e o “tribunal” disseminou-se por outros locais do estádio – fenómeno que ocorreu ainda no velhinho estádio quando, no advento do futebol como negócio sujeito às regras empresariais, surgiram os lugares marcados com bilhete de época. Por todo o lado espalhou-se o vírus da assobiadela crónica de pendor masoquista. Curiosamente, esses que assobiam os jogadores da equipa de que se dizem sócios e adeptos não pertencem nem aos proscritos Super Dragões, nem ao Colectivo 95, como não pertenciam à extinta claque dos Dragões Azuis. Esses, fazem parte da Massa Assobiativa – expressão usada pelo meu pai, quando armado de Mao Tsé-Tung das Antas, tentava educar, repreendendo, essas alimárias ditas portistas, atitude que lhe valeu alguns insultos –, o extinto “tribunal”, e são, na verdade, uma imagem fiel do povinho português que desdenha do êxito, não do alcançado pelos outros, os rivais – isso seria inveja –, mas do sucesso que, com esforço, aqueles que esses dizem admirar lograram alcançar – a isto chama-se mediocridade.
Esses involuntários paladinos da mediocridade são os tais que assobiam as claques quando estas entoam os famosos cânticos de ode às mães dos adeptos do SLB, mas que, ao invés, não se inibem de, na altura de soltar as suas frustrações quotidianas, amesquinhar aqueles que lhes dão as poucas alegrias que podem (ou poderão) desfrutar nas suas vidas miseráveis.
Insultar o Quaresma, é insultar o melhor jogador português a actuar dentro de portas, o activo mais valioso de uma sociedade anónima desportiva que tudo deveria fazer para o proteger e, acima de tudo, um dos poucos que de azul e branco vestido nos sacia a sede de magia tão rara no panorama futebolístico nacional.
Mas, o que dizer daqueles que o fazem contra o vento e que, para além de tudo, se pavoneiam em público, orgulhosos e húmidos, pela sua infeliz incontinência?

*Eu sei, fui muito polido…

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Of Rats and Men*

«Os ratos são quase tão fecundos como os germes. […] Crescem rapidamente e são capazes de procriar desde os quatro meses de idade […] um rato de quatro anos é mais velho do que um homem de noventas anos. “Os ratos que sobrevivem além dos quatro anos são dos bichos mais sabidos e mais cínicos que há à face da terra. […] Uma ratoeira não é nada para eles, por mais habilmente que tenha sido montada. […] são capazes de detectar um isco envenenado a um metro de distância. Estou convencido de que alguns deles sabem ler.»**
Joseph Mitchell, O Fundo da Baía, “Ratos da Beira-Rio”, pág. 80.

Zbigniew HerbertÉ curioso que as usem como cobaias para proteger e perpetuar uma espécie cujo código genético lhes é tão familiar. Tão idiossincraticamente familiar. Tão indistintamente próximo. Uma turba de roedores parasitários que dão abrigo a outros parasitas mais insignificantes, alguns verminosos, pegajosos, escorregadios ou estaladiços. Uns papa-hóstias, outros pedreiros livres, outros ainda materialistas dialécticos, anarcas, conservadores, neoconinhas, comichosos, ranhosos e bexigosos… e no entanto, todos roem. São os patrulheiros do sectarismo, mais reaccionários que os patrulhados. São os do pensamento único, intolerantes à diferença, travestidos de defensores da moral pública ou da liberdade de expressão; dos direitos liberdades e garantias; da sociedade civil; da liberdade, da igualdade e da fraternidade; das mãos limpas; da puta que os pariu; são, enfim, todos tão lúcidos e esclarecidos, sapientes e eruditos… foda-se, até citam nomes e textos, amalgamas de letras subitamente dotadas de vida e por isso sujeitas às mais do que necessárias distorções; tantas fontes, que não há sede que resista; arremessam-nas e esperam pela resposta. Acordam de manhã e cagam filósofos, políticos, escritores. Estão convencidos da clarividência do seu pensamento, de possuírem a mais preclara das cabeças – trabalhassem mais com as de baixo, estariam aquelas menos poluídas. Boçal, eu?
Ah, e que bem dizia Pessoa, transformado em Bernardo Soares – epígrafe do meu anterior blogue… cito, corto e colo… tanta lucidez, ou convencimento dela… perdi para sempre a segura certeza da lucidez da minha lucidez.

A minha divisa passou a ser a ratazana…

Cito, sem pruridos sectários, o grande poeta polaco Zbigniew Herbert, via DeLillo (o meu Nobel***):

Too old to carry arms and fight like the others—

they graciously gave me the inferior role of chronicler
I record—I don't know for whom—the history of the siege

I am supposed to be exact but I don't know when the invasion began
two hundred years ago in December perhaps yesterday at dawn
everyone here suffers from a loss of the sense of time

all we have left is the place the attachment to the place
we still rule over the ruins of temples specters of gardens and houses
if we lose the ruins nothing will be left

I write as I can in the rhythms of the interminable weeks
monday: empty storehouses a rat became the unit of currency
tuesday: the mayor murdered by unknown assailants
wednesday: negotiations for a cease-fire the enemy has imprisoned our messengers
we don't know where they are held that is the place of torture
thursday: after a stormy meeting a majority of voices rejected
the motion of the spice merchants for unconditional surrender
friday: the beginning of the plague saturday: our invincible defender
N.N. committed suicide sunday: no more water we drove back
an attack at the eastern gate called the Gate of the Alliance

all of this is monotonous I know it can't move anyone

I avoid any commentary I keep a tight hold on my emotions I write about the facts
only they it seems are appreciated in foreign markets

yet with a certain pride I would like to inform the world
that thanks to the war we have raised a new species of children
our children don't like fairy tales they play at killing
awake and asleep they dream of soup of bread and bones
just like dogs and cats

in the evening I like to wander near the outposts of the City
along the frontier of our uncertain freedom
I look at the swarms of soldiers below their lights

I listen to the noise of drums barbarian shrieks
truly it is inconceivable the City is still defending itself
the siege has lasted a long time the enemies must take turns
nothing unites them except the desire for our extermination
Goths the Tartars Swedes troops of the Emperor regiments of the Transfiguration
who can count them
the colors of their banners change like the forest on the horizon
from delicate bird's yellow in spring through green through red to winter's black

and so in the evening released from facts I can think
about distant ancient matters for example our
friends beyond the sea I know they sincerely sympathize
they send us flour lard sacks of comfort and good advice
they don't even know their fathers betrayed us
our former allies at the time of the second Apocalypse
their sons are blameless they deserve our gratitude therefore we are grateful
they have not experienced a siege as long as eternity
those struck by misfortune are always alone
the defenders of the Dalai Lama the Kurds the Afghan mountaineers

now as I write these words the advocates of conciliation
have won the upper hand over the party of the inflexibles
a normal hesitation of moods fate still hangs in the balance

cemeteries grow larger the number of defenders is smaller
yet the defense continues it will continue to the end
and if the City falls but a single man escapes
he will carry the City within himself on the roads of exile
he will be the City

we look in the face of hunger the face of fire face of death
worst of all—the face of betrayal

and only our dreams have not been humiliated

Zbigniew Herbert (1924-1998), Report from the Besieged City, 1982 (tradução do polaco por Bogdana Carpenter e John Carpenter)****.


Notas:
*Com a cortesia de Steinbeck e da sua obra Of Mice and Men (1937).
**Referência bibliográfica completa: Joseph Mitchell, O Fundo da Baía, “Ratos da Beira-Rio”. Porto: Ambar, 1.ª edição, Março de 2007, 219 pp. (tradução de José Lima; obra original: The Bottom of the Harbor, 1960; Capítulo: “Os Ratos da Beira-Rio, “The Rats of the Waterfront”, crónica publicada, sob outro título, na revista The New Yorker, Maio de 1944).
***Pronto, revelei. E desta já não posso fugir.
****No caso de haver tradução portuguesa, comunicar à redacção, obrigado.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Sou literariamente sionista

É necessário estabelecer um ponto prévio, à guisa de pequena autobiografia. Nasci em 1972, na burguesa cidade do Porto, no seio de uma família conservadora, católica praticante e, acrescente-se, plenamente às direitas – por conseguinte, não-sinistra.
Hoje, seguindo-se a minha regular e natural evolução ontogénica, pese embora a minha visceral rotulofobia, considero-me um liberal apartidário, tendencialmente laico – para grande desgosto do meu pai –, não-keynesiano, antimarxista, adepto confesso do capitalismo popular como veículo primordial para a completa erradicação da iniquidade social na distribuição da riqueza criada.
Serei de direita?
Há, todavia, algo que se me afigura como quase natural, com a esquerda opinativa que, hoje em dia, domina os meios tradicionais de comunicação social, a classe jornalística em geral e os denominados ou autoproclamados centros da intelectualidade lusa, de esquerda não serei certamente… e a direita não bate assim.

«A Direita está cheia de preconceitos que se instalam, dominam e oprimem. Um filho de uma família de Direita tem muito menos abertura de espírito do que um filho de uma família de esquerda. E faz-me impressão uma sociedade em que se premeie apenas o mérito, independentemente das condições à partida. Isso é a Direita e isso faz-me muita impressão.» Margarida Pinto Correia, in Sol, 11 de Agosto de 2007, pág. 3.

«Penso que este Nobel [da Literatura, a Doris Lessing em 2007] corresponde a um certo desejo de nos últimos anos premiar obras com marcas sociais e humanas de dádiva, autores com uma marca de empenhamento e intervenção humana e social. […] [julgo] muito difícil que grandes escritores cínicos, desencantados, como Philip
Roth ou Mário Vargas Llosa, sejam premiados.
» Urbano Tavares Rodrigues, in Público, 12 de Outubro de 2007, pág. 18.

«A característica primeira da Doris Lessing, quanto a mim, é realmente ser uma mulher de ideais, uma mulher de causas, uma mulher da liberdade: uma mulher de esquerda.» Maria Teresa Horta, in Câmara Clara, RTP2, 14 de Outubro de 2007.

O mais preocupante nestas três citações, entre muitas outras que poderia encontrar – sabendo que a blogosfera seria o local privilegiado para descobrir, de forma quase instantânea, um bom punhado de referências da mesma índole –, é o primitivismo maniqueísta no espírito destes esquerdistas de afirmação e a apropriação ilegítima dos chavões de defesa da liberdade, dos valores sociais, do direito à diferença, dos desprotegidos. Hoje, temos uma esquerda sectária, intolerante, tendencialmente reaccionária, profundamente convencida de que é proprietária, em rigoroso exclusivo, do graal da verdade suprema. E foi essa esquerda, irascível, dona putativa do bem, do pensamento cultural e da intelectualidade, que se insurgiu contra o Pedro Mexia quando este, fazendo uma alusão ao normalizador estalinista Andrei Jdanov – e poderia ter ido mais longe, se falasse dos candidatos a Savonarola da revolução cultural maoísta – constatou que existe, de facto, uma agenda política da Academia Sueca na atribuição de um prémio literário e defendeu, na sua inalienável opinião pessoal, como estranho o recalcitrante esquecimento de Philip Roth... um judeu norte-americano.
Ora, esta esquerda, que numa só década conseguiu apoderar-se dos tiques da direita tradicional e reaccionária, apodou o Pedro Mexia de sionista. Este, defendeu um judeu para o Nobel da Literatura e, imagine-se, para cúmulo da insensatez, é norte-americano.
Mas Roth é de esquerda, ou estarei enganado!?
Não conheço o Pedro Mexia, nunca li um livro seu, e como podem constatar nem sequer existe uma reciprocidade lincacional, embora acompanhe os seus escritos na imprensa e na blogosfera. Considero-o, todavia, uma das referências culturais nacionais, tanto nas artes literárias – a sua área de criação artística –, como nas cinematográficas. Mas Mexia tem um óbice, confessa-se como conservador de direita, e a doxa intelectual, no seu fervoroso exclusivismo, não lhe perdoa.

Eis quatro protagonistas, vivos, judeus e norte-americanos de esquerda, escritores de profissão, pertencentes ao olimpo das minhas preferências literárias, que fazem de mim um sionista:

Philip RothJ. D. SalingerNorman MailerPaul Auster