Mostrar mensagens com a etiqueta Cormac McCarthy. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Cormac McCarthy. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Suttree

Mais uma vez escrevo um texto neste blogue – que, parecendo que não, é um sinal de resistência às minhas tentativas de bloguicídio que surgem de forma intermitente há mais de três anos –, para felicitar, senão mesmo a melhor, uma das melhores editoras nacionais: a Relógio D’Água.
Para os membros do seu corpo editorial, evidenciado na figura tutelar de Francisco Vale – editor principal que tem sabido resistir ao assédio provindo da febre aquisitiva, de índole oligárquica, dos empórios lusos dos meios de comunicação e editoriais –, não há ano de publicação de uma obra (por mais longínquo que tenha sido), número de páginas de um livro (por mais volumoso que este seja), autor (por mais esquecido, hermético ou desconhecido, assim apontado pelas ondas de intelectualidade literária emanadas da perene sapiência de alguns notáveis que integram determinados órgãos de outras casas editoriais), que os assustem ou desviem do seu objectivo primordial: publicar livros de qualidade, independentemente da sua capacidade para gerar receitas imediatas, engrandecer o volume de negócios para ostentação futura, muitas vezes com lucros diminutos ou até inexistentes, apenas para alimentar a empáfia mediática.
Existem edições menos bem conseguidas – é por demais inevitável que assim seja. Há falhas de diversos níveis e gradações – claro que as há. Insucessos potencialmente ruinosos. Mas essas falhas e esses insucessos são claramente minorados, reduzidos à sua insignificância, desde que a pontaria, afinada por anos de prática e experiência no mercado dos livros, vá permitindo que se acerte quase sempre no coração do alvo. Uma marca de gestão: acompanhar o mercado em aparente silêncio, sem uma estratégia de marketing mix deliberadamente ofensiva. Reflecte-se, por exemplo, num produto bem construído, havendo-se contratado os melhores tradutores; numa excelente política de preços; numa simples, mas estudada, política de distribuição do produto literário pelos principais livreiros; são actos de gestão que quase evitam uma política promocional excessiva, meramente esbanjadora de recursos – contudo, e é de primordial importância realçar, todos estes encómios desinteressados, não devem servir de desculpa para as fracas actualização, facilidade de navegação e interactividade da página da internet da referida editora; no momento presente, reveste-se de um carácter urgente uma intervenção de fundo que permita melhorar esta funcionalidade, um dos principais pontos de contacto entre o consumidor final e a casa editora, antes de o primeiro tomar a decisão de compra.

E qual é a razão de ser de todo o palavreado anterior?
A Relógio D’Água publicará em breve uma das obras lapidares do icónico escritor norte-americano, Cormac McCarthy, nascido em Providence, no Estado de Rhode Island em 1933, vive, actualmente, enclausurado no seu rancho no Novo México, longe dos focos mediáticos. McCarthy pertence ao grupo dos quatro grandes escritores americanos contemporâneos identificado pelo crítico literário e professor univeristário, criador de cânones, Harold Bloom – para além do escritor de Providence, o “bando dos quatro” inclui os escritores Philip Roth, Don DeLillo e Thomas Pynchon, grupo a que eu, na minha modesta opinião de amante das letras, haveria juntado John Updike (falecido no passado dia 27 de Janeiro), mas que por qualquer motivo (político ou religioso, quiçá meramente por critérios estético-literários) nunca caiu nas suas graças; consulte-se, a título de exemplo, a sua obra de 1994 The Western Canon: The Books and School of the Ages, na Parte IV “The Chaotic Age”, onde Updike é apenas incluído no cânone literário ocidental pelo seu romance As Bruxas de Eastwick (The Witches of Eastwick, 1984), atirando para segundo plano toda a obra notável e multidimensional deste prolífico ficcionista, poeta e ensaísta.
Regressando ao assunto principal deste texto, a casa dirigida por Francisco Vale editará mais uma obra de ficção de autoria de Cormac McCarthy: trata-se do romance, originalmente publicado em 1979, intitulado Suttree, que se estende, nas suas versões americanas, por quase 500 páginas. O personagem principal, que dá o nome ao livro, abandona uma vida familiar e profissional confortável na cidade para se refugiar nos bairros de lata de Knoxville, partindo numa digressão que muitos comparam à de Leopold Bloom no colossal Ulisses de James Joyce – à semelhança dos itinerários joycianos de Dublin, existe um percurso em Knoxville marcado pelos lugares por onde perambulou Suttree. Por outro lado, segundo refere a crítica, Suttree é o romance mais faulkneriano de McCarthy, com notas bem vincadas de Mark Twain – já só falta falar dos taninos… –, designadamente através do seu púbere personagem Gene Harrogate que se identifica com a rebeldia anárquica de Tom Sawyer.
Suttree é o quarto de dez romances de Cormac McCarthy. Segundo a opinião de muitos entendidos em matérias qualificativo-literárias, trata-se, até ao presente, do magnum opus do autor, apesar de cronologicamente se lhe seguir a obra magistral Meridiano de Sangue (Blood Meridian, 1985), essa sim, considerada por uma grande maioria de críticos e de leitores como o seu melhor romance – onde me incluo, apesar de ainda não haver lido a primeira.
Na sua edição pela Vintage (cuja capa figura na imagem acima reproduzida) – a Vintage é uma chancela da Random House, destinada a reeditar os romances consagrados em formato paperback –, figuram nas primeiras páginas, depois da ficha técnica, algumas frases que destacam a eminência e o brilhantismo do autor, uma delas pertence a um dos escritores mais bartlebianos de toda a literatura norte-americana, Ralph Ellison (1913-1994) – escreveu e publicou em vida apenas um romance, uma obra-prima, Homem Invisível (Invisible Man, 1952). Segundo Ellison, «McCarthy é um escritor para ser lido, admirado e, muito honestamente, invejado.» [tradução: AMC]

Sem perder tempo com traduções livres, uma vez que o livro deverá estar prestes a chegar às livrarias, deixo ficar o parágrafo de abertura do romance, capítulo inicial escrito em forma de prefácio pelo próprio protagonista da obra (atente-se nestas escassas oitenta palavras, estão bem presentes os sinais idiossincráticos mccartianos em alguns neologismos e na repetição exaustiva da conjunção copulativa “e” em detrimento da vírgula):

«Dear friend now in the dusky clockless hours of the town when the streets lie black and steaming in the wake of the watertrucks and now when the drunk and the homeless have washed up in the lee of walls in alleys or abandoned lots and cats go forth highshouldered and lean in the grim perimeters about, now in these sootblacked brick or cobbled corridors where lightwire shadows make a gothic harp of cellar doors no soul shall walk save you.»
Cormac McCarthy, Suttree. New York: Vintage, May, 1992, p. 3.

Romances de Cormac McCarthy (por ordem cronológica da publicação original):

  • O Guarda do Pomar (ed. port. Relógio D’Água; The Orchard Keeper, 1965);
  • Outer Dark (1968);
  • Filho de Deus (ed. port. Relógio D’Água; Child of God, 1974);
  • Suttree (ed. port. Relógio D’Água; 1979);
  • Meridiano de Sangue ou O Crepúsculo Vermelho no Oeste (ed. port. Relógio D’Água; Blood Meridian, Or the Evening Redness in the West, 1985);
  • Belos Cavalos (ed. port. Teorema; All the Pretty Horses, 1992);
  • The Crossing (1994);
  • Cities of the Plain (1998);
  • Este País Não É para Velhos (ed. port. Relógio D’Água; No Country for Old Men, 2005);
  • A Estrada (ed. port. Relógio D’Água; The Road, 2006).

Nota: tendo em consideração a tão distintiva penúria qualitativa do meio editorial português, o rácio “obras editadas em Portugal/obras do autor estrangeiro”, regista um coeficiente bastante aceitável: 0,7 (7/10 ou 70% dos romances de Cormac McCarthy já se encontram editados em Portugal).

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Representação de um “banho de sangue”

É um facto indesmentível, o esquivo escritor norte-americano Cormac McCarthy (n. 1933), ausentado do mundo no seu rancho no Novo México, está definitivamente na moda em Hollywood.
Depois de Belos Cavalos (All the Pretty Horses, 1992) – primeiro romance da trilogia da Fronteira –, vítima de uma paupérrima adaptação ao cinema em 2000 pelo vaidoso Billy Bob Thornton, com argumento de Ted Tally (o mesmo que adaptou o romance de Thomas Harris para o inesquecível O Silêncio dos Inocentes do sossegado Jonathan Demme) e um conjunto de interpretações a roçar o cabotinismo do, na altura, auspicioso Matt Damon, da irritante Penélope Cruz e do quase sempre deslustrado Henry Thomas (porventura, ainda sente a falta do seu amigo alienígena), apareceu a celebrada e consagrada adaptação de Este País Não É para Velhos (No Country for Old Men, 2005) pelas mãos dos desinquietos irmãos Coen.

[Depois da adjectivação de um conjunto de personagens que pululam pelas famosas colinas californianas, o desenvolvimento do texto segue o seu percurso, para os parâmetros deste blogue, normal.]

Falemos, então, de McCarthy e de parte das suas dez obras de ficção, que se vai transformando em texto para cinema, mais conhecido por argumento.
Em rodagem ou em pré-produção encontram-se mais quatro adaptações de outros tantos romances do escritor de Providence, Rhode Island:

  • Outer Dark (1968), o primeiro romance do autor, adaptação em curta-metragem, com realização e argumento a cargo do desconhecido (pelo menos, por mim) Stephen Imwalle;
  • A Estrada (The Road, 2006; ed. port. Relógio D’Água), realizado pelo australiano John Hillcoat;
  • Cities of the Plain (1998) – terceiro livro da trilogia da Fronteira – a realizar pelo neozelandês Andrew Dominik (realizou, por exemplo, o excelente O Assassínio de Jesse James…)
  • Meridiano de Sangue (Blood Meridian, 1985; ed. port. Relógio D’Água), a realizar por Ridley Scott? Já não…

Este texto do José Mário Silva contém uma citação de parte de uma mensagem de correio electrónico que lhe enviei e que remete o leitor para um texto que aqui publiquei em Agosto deste ano. A sua publicação deveu-se ao horror que se apoderou de mim e que, por excitação, se antecipou à estreia, para nem falar da rodagem, do filme Meridiano de Sangue quando foi anunciado o realizador britânico Ridley Scott para dirigir o filme.

Ponto de ordem: a razão de ser do que se segue (e não só): perda de actualidade do que aqui escrevi em Agosto. Retomo…
Porém, a indústria de Hollywood é pródiga em rumores provindos dos bastidores da indústria e em previsões proto-astrológicas. Pelos vistos os produtores de Meridiano de Sangue terão substituído Scott por Todd Field – sim, esse mesmo, o de Pecados Íntimos (Little Children, 2006), baseado no romance homónimo de Tom Perrotta.
A que se ficou a dever esta substituição? Ninguém, por enquanto, sabe, mas parece ter provocado uma certa azia ao criador de Blade Runner. Scott, em entrevista à revista Empire, diz a respeito do filme (ver o vídeo):



«Está escrito. Penso tratar-se de um [argumento] bastante complexo, e talvez seja algo que deva permanecer apenas como romance. Se se opta por [levar ao grande ecrã] Meridiano de Sangue ter-se-á de representar na íntegra o banho de sangue e não há solução para o banho de sangue, ele faz parte da história, sem tirar nem pôr. Quando se começa a escalpar em cerimónias de casamento mexicanas isso irá exigir a definição de um limite.» [tradução aproximada: AMC]

Retirada estratégica e voluntária? Ou simples vislumbre, por parte de quem financia, de um inevitável e desaconselhável produto a raiar o paroxismo do sanguinário, se for deixado às mãos do primeiro nome a quem se pensou entregar a direcção da película? (Se Maxime du Camp lesse, do inescrutável lugar onde se encontra, este blogue, teria dito: «corrige lá isso, os nomes não têm mãos»; é claro que, tal como GF, não acataria a admoestação literária.)
Analisando as palavras e a postura de Scott parece que daí advém alguma forma de ressentimento por eventual recusa, e um aviso à navegação. O argumento de Monahan também parece haver sido abandonado, cabendo a Field a dupla tarefa: escrever o guião e realizar.
De Scott conta-se uma história a propósito da produção e da rodagem de Hannibal (2001). O realizador leu e recusou filmar, pela violência que reservava, o argumento escrito por David Mamet, que foi integralmente refeito por Steven Zaillian. Mesmo assim, Liotta, despojado de grande parte do crânio – previamente cortado por Hannibal (Anthony Hopkins) –, come o seu próprio cérebro preparado pelo famoso canibal, numa das cenas mais horripilantes e grotescas de toda a história do cinema – a que se juntou uma posterior fase de hilaridade e escárnio pelo picaresco do seu conteúdo.

E tanta verborreia e palavra gasta, apenas para mencionar a desactualização do tal texto de Agosto deste ano.

Mas, se Meridiano de Sangue for parar à grande tela, estou curioso, não tanto pela forma como Field, ou, eliminado mais um realizador, outro que se lhe possa seguir, irá tentar amenizar a brutalidade imanente do romance em imagens – essa, será, como refere Scott, tarefa quase impossível –, mas pelos actores que irão fazer parte do elenco e representar papéis tão fortemente idiossincráticos como o misterioso, diabólico e pedófilo Juiz Holden, o celerado e sanguinário Glanton e o “rapaz”, o provável protagonista, de quem se conhecem os antecedentes e que se junta ao bando no início da narrativa.

Para terminar em beleza, deixo ficar uma das três epígrafes escolhidas por McCarthy para o seu extraordinário romance, que se baseia, imagine-se, em factos verídicos:

«As vossas ideias são apavorantes e os vossos corações fracos. Os vossos actos de clemência e crueldade são absurdos, executados sem ponderação, como se fossem irresistíveis. Por fim, vocês temem cada vez mais o sangue. O sangue e o tempo.»
Paul Valéry
in Cormac McCarthy, Meridiano de Sangue ou o Crepúsculo Vermelho no Oeste, p.13
[Lisboa: Relógio D’Água, Junho de 2004, 391 pp.; tradução de Paulo Faria; obra original: Blood Meridian, or the Evening Redness in the West, 1985]

Dança, dança sempre. Diz que nunca vai morrer.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Trapalhada Intolerável


Quando em 1984 surge a dupla Joel e Ethan Coen com o seu primeiro trabalho, um filme negro série B, Sangue por Sangue (Blood Simple), as portas da selectiva – particularidade que se rege por critérios que não interessa aqui e agora explorar – indústria de Hollywood foram-lhe franqueadas, por via da aclamação unânime gerada no circuito cinematográfico independente. Os Óscares, antecedidos, decerto, pela brisa marítima que perambula pela passadeira vermelha da emproada Cannes seria apenas uma questão de tempo.
E assim foi, de lá para cá, a chancela “Irmãos Coen” juntou-se ao exclusivíssimo conjunto de fazedores de cinema americano cuja crítica, e produtos derivados, trata com alguma complacência, nalgumas vezes merecida.
Na realidade, houve fortes razões para isso, na minha discutibilíssima opinião, Fargo (1996) e O Grande Lebowski (The Big Lebowski, 1998) por si só mereceriam o Olimpo e a chama eterna da memória cinematográfica. Para trás tinham ficado os aceitáveis Arizona Júnior (Raising Arizona, 1987), História de Gangsters (Miller's Crossing, 1990) e Barton Fink (1991), para além do anódino O Grande Salto (The Hudsucker Proxy, 1994).
Mas, 2000 foi a marca indelével para o início do desencanto, o ano em que surgiu o paupérrimo Irmão, Onde Estás? (O Brother, Where Art Thou?) com início do abuso da utilização da compassiva e celebrada estrela ascensional George Clooney e o recrutamento da irritante e histriónica Holly Hunter – aqueles que me conhecem, já sabem da minha qualificação apriorística de sofrível a qualquer película em que figure, mesmo que de forma fugaz, a enervante meia-leca georgiana; está acima da minha vontade, fazendo tinir as campainhas de alarme pela entrada na zona restrita da minha psique denominada por “ódios de estimação”.
Seguiu-se-lhe um trio indesculpável – onde O Barbeiro (The Man Who Wasn't There, 2001) se distingue dos demais por vestígios de alguma qualidade – que precedeu o euromilhões cinematográfico, em grande parte proporcionado pelo brilhante enredo de um dos melhores escritores norte-americanos da actualidade, Cormac McCarthy.
O livro de McCarthy, como por aqui fui referindo amiúde, é uma pequena obra-prima, e exigiria cautelas na sua adaptação cinematográfica. Todavia, os manos Coen conseguiram-no, apesar de, pelo caminho, se haver perdido alguma de massa encefálica (que até pode ser literal) do cérebro literário do romance, aparando-lhe alguma da frondosidade moral elucubrada por McCarthy, sem contudo danificar a raiz – mas esses são os tais graus de liberdade que deverá gozar a adaptação de uma obra literária consagrada ao cinema, sob pena da textualidade arruinar as necessárias ductilidade e comunicabilidade entre artes.
Este País Não É para Velhos (No Country for Old Men, 2007) vence 4 Óscares (incluindo o de Melhor Filme), 3 BAFTA e 2 Globos de Ouro, para além de mais umas oito dezenas de prémios e galardões cinematográficos – apenas falhou, entre os grandes, a Palma de Ouro de Cannes, para a qual estava também nomeado.
Os Coen rejubilam, recolhem os louros e prosseguem na tarefa de inscrição de títulos nas suas ainda não muito extensas filmografias.

Menos de um ano depois da estreia comercial do filme de todos os sucessos, os manos voltam a atacar, regressando aos domínios da comédia, com o filme Destruir Depois de Ler (Burn After Reading, 2008) e com um elenco de luxo – expediente muito em voga, que o diga Soderbergh, talvez para disfarçar algum sentido desconforto artístico perante a obra forjada: John Malkovich, Frances McDormand, Clooney, Brad Pitt e Tilda Swinton – esta última acabadinha de ganhar, desmerecidamente, o Óscar para Melhor Actriz Secundária pelo seu banalíssimo papel em Michael Clayton (2007) de Tony Gilroy.
Destruir Depois de Ler é tipicamente um filme produto de dois fenómenos que costumam ocorrer quase em simultâneo em Hollywood após um grande sucesso: uma clamorosa ressaca vitoriosa e uma desmesurada insuflação do ego. Regra que se confirma não só com a realização mas com este desastroso regresso dos irmãos Coen ao argumento original: uma completa nulidade, confuso e desgarrado. Este País Não É para Velhos foi o livre-trânsito para este desastre, para esta imbecilidade fílmica, e estou certo de que a dupla se deve ter apercebido da manifestação de alguns sintomas eminentemente suicidários por negligência e de puro menosprezo por aqueles que se interessam pela manifestações artísticas da 7.ª arte. Nem se trata sequer de um exercício para invocar algum experimentalismo cénico, e com isso obter alguma condescendência. Já foi feito, e este é um acto falhado.
Nas interpretações, Brad Pitt está magnifico na personificação do típico bronco dos ginásios que inunda as nossas sociedades cultoras do físico a qualquer preço – consegue enroupar-se de todos os tiques do típico troll urbano que enxameia aqueles espaços bafientos com o seu adocicado perfume sudorífero. McDormand não sabe interpretar mal. Malkovich é prejudicado por um personagem oco num enredo sem nexo, fazendo com que o simples acto de assistir à sua performance se torne, de certa forma, num exercício confrangedor e masoquista, principalmente quando se é um admirador confesso do actor. Swinton está bem, e não mais do que isso, num papel que condiz com a sua cara de falsa pudica. Clooney está igual a si próprio, um pateta consumado.
O filme é uma sucessão de gags, quase todos sem o mínimo vestígio de graça e que jamais se unem num todo harmonioso e consistente. É um delírio fílmico arrevesado que nada tem de artístico no sentido lynchiano do termo, ou neste caso, pela índole que se lhe quis atribuir, no sentido gilliamiano de cinema.
Destruir Depois de Ler é um descarado assalto à mão armada para os admiradores do dueto fraterno e um roubo por esticão para todos aqueles que o meteram nos seus frágeis corações depois do seu último sucesso. E até me dou ao luxo de prescindir das metáforas anteriores, verbalizando alguma da minha pretendida violência classificativa: é um filme intelectual e literalmente desonesto.

Atrevo-me a finalizar com uma das frases do argumento, proferida por Chad Feldheimer (Pitt), que, pela pertinência, poderá ter servido de mote na concepção deste subproduto cinematográfico:

«As soon as you give us the money, dickwad!»

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Pós-Humano

Para o antigo fã de Carpenter e dos restantes subprodutos da arte da realização cinematográfica, não é sem um arrepio de um horror declarado que me vou lembrando da atribuição do romance Meridiano de Sangue ou o Crepúsculo Vermelho no Oeste (Blood Meridian, or the Evening Redness in the West, 1985) do escritor norte-americano Cormac McCarthy ao realizador britânico Ridley Scott para dele erigir um filme. O argumento passará, no entanto, pelas mãos curiosamente mais subtis de William Monahan – reescreveu o argumento de Entre Inimigos (The Departed, 2006) de Scorsese.

Este devaneio de tons negros (o medo de um acontecimento que, com forte probabilidade, ocorrerá num futuro próximo) fez-me recordar um artigo publicado na novíssima revista
n+1, no seu primeiro número no Outono de 2004. Apesar de aí se discutir de forma lateral o assunto que me levou a escrever este texto, não resisto a enunciar a matéria principal que aí se tratava: a crítica literária praticada pela rival The New Republic. Os editores da n+1 dedicam-se a zurzir no negativismo do mais destacado crítico literário da revista e, certamente, da sua geração, o inglês James Wood (n.1965), actualmente ao serviço da revista The New Yorker, depois de quinze anos de serviço de recenseador repartidos pelo jornal britânico de The Guardian e pela já mencionada The New Republic.
O editorial da n+1 ataca-o em diversas frentes, por um lado acusando-o por exemplo de uma perseguição implacável a escritores consagrados como Don DeLillo, Toni Morrison (Nobel da Literatura em 1993), John Updike, Thomas Pynchon, Ian McEwan, Julian Barnes, Martin Amis e ao seu alvo dilecto Salman Rushdie, tal como a novos talentos que incluem autores como Zadie Smith ou Jonathan Frazen. E, por outro lado, afirmando que o esteticismo preconizado por Wood pretende pôr os escritores contemporâneos a escrever como os realistas do século XIX.
Wood defende-se, e bem, numa longa carta aos editores publicada na íntegra na edição número 3 da revista. Para além de refutar o negativismo militante que lhe é apontado, recordando um extenso rol de autores vivos e recentemente falecidos de quem as suas recensões foram assaz positivas – relembrando, ainda, outros que deixaram de publicar quando iniciou as suas funções e que de certa forma fazem parte do seu panteão pessoal –, Wood defende-se da crítica da sua alegada apologia do arcaizamento da escrita contemporânea ou pós-moderna. O crítico inglês diz que defender isso seria um total absurdo, porque apesar das realidades envolventes diferentes, hoje mais mediática e informacional, e das constantes mutações que afectam a arte da escrita, há toda uma ontologia da identidade que atravessa e supera as modas, as tendências e as formas de criação artística, concretamente a Literatura.

Eis uma explicação mais clara, usando para isso a suas próprias palavras:

«A forma e a linguagem da ficção encontram-se em permanente mudança. E o eu pode também estar a mudar. Mas não de forma tão rápida como as representações desse eu. A nossa geração pós-moderna cai frequentemente numa espécie de superioridade histórica ou provincianismo metafísico, já que nos orgulhamos no quão diferente é a nossa subjectividade – menos evidente, mais fracturada, mais consciente de si, etc. – em relação à dos nossos antepassados. Se isto fosse verdadeiro, seríamos incapazes de ler a ficção produzida por esses predecessores. Além disso, há escritores, como Hamsun e Dostoievski, cujas ideias do eu continuam a ser mais radicais do que qualquer coisa engendrada por, digamos, Thomas Pynchon. Nada na ficção contemporânea, nem mesmo as fantasias sádicas de Dennis Cooper ou as destruições sangrentas de Cormac McCarthy, é mais chocante que o momento em que o narrador de Hunger (1890) de Hamsun põe o seu próprio dedo na boca e começa a comê-lo. Não é pós-modernismo, é pós-humano. Beckett pediu claramente de empréstimo esta cena a Hamsun, quando Molloy come as suas pedras. E, claro, Beckett é um bom exemplo de escritor cujas forma e linguagem são completamente diferentes dos seus predecessores, mas cuja metafísica do eu seria reconhecível não só por Schopenhauer, mas provavelmente por Tomás de Aquino. (Poderão chamar a Beckett o último dos realistas.)» (pp. 135-136)
James Wood, “A Reply to the Editors”, n+1, n. 3, Fall 2005, pp. 129-139 [tradução: AMC]

O que hoje há, seguramente, de diferente em relação a épocas mais remotas é a possibilidade de perpetuação mediática de pós-humano referido por Wood, através de novas formas de representação artística, que ultrapassam a simples mimese, confundida amiúde com literalismo, a representação da beleza – conceito indissociável aos fundamentos da arte –, para entrar no domínio da repetição, do choque gratuito, em suma, da dita pornografia pseudo-artística.
O choque faz despertar sensações, retira-nos do torpor da indiferença. Porém, a sua reiteração faz desviar-nos do objecto de criação artística para um estado de catarse convulsiva, onde náusea passa à condição de reflexo condicionado sempre que as campainhas anunciam a chegada do seu criador.

O tal devaneio ridley-scottiano, levam-me já a vislumbrar uma sucessão inimaginável de cabeças cortadas e de escalpes arrancados. Começo a salivar… vem aí a náusea.

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Pequenas notas sobre quase nada

  1. O Código Nabokov: Rosenbaum strikes back (Slate)
  2. Cinema: (a) esplendorosa adaptação de Este País Não É para Velhos pelos irmãos Coen. (b) Não se compreende a não-nomeação de Tommy Lee Jones para Óscar de Melhor Actor pela imaculada interpretação do Xerife Ed Tom Bell (a alma do romance tão bem transposta para o filme). (c) Bardem, na pele de Anton Chigurh, é soberbo. (d) Iniciei o texto sobre a minha apreciação do filme, arquivei-o, por enquanto, e para quem estiver interessado, remeto-vos para o texto que escrevi no passado dia 1 de Dezembro sobre o romance de Cormac McCarthy, editado pela Relógio D'Água. Não há muito a acrescentar... Joel e Ethan captaram quase tudo; Cormac pode sentir-se mais que recompensado.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Óscares III – Os Vencedores de 2008


Vitória em três apelidos: Bardem, Coen e McCarthy

Acabaram de ser atribuídos os galardões mais importantes no mundo do cinema – quer se goste ou não, repudiando ou simplesmente tentando ignorar, ninguém consegue ficar indiferente à noite mágica de Hollywood; é assim desde 1929, ano em que uma estatueta misteriosamente apelidada de Óscar vai enchendo de sonhos o imaginário de todos aqueles que do Cinema fazem a sua arte.
Eis os vencedores da 80.ª Cerimónia de entrega dos Óscares da Academia das Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood:

4 Óscares (1 filme)
Este País Não É para Velhos (No Country for Old Men) de Joel e Ethan Coen
- Actor Secundário – Javier Bardem
- Argumento Adaptado – Joel e Ethan Coen
- Filme
- Realização – Joel e Ethan Coen

3 Óscares (1 filme)
Ultimato (Bourne Ultimatum) de Paul Greengrass
- Efeitos de Som
- Montagem
- Som

2 Óscares (2 filmes)
Haverá Sangue (There Will Be Blood) de Paul Thomas Anderson
- Actor – Daniel Day-Lewis
- Fotografia

La Vie en Rose (La Môme) de Olivier Dahan
- Actriz – Marion Cotillard
- Caracterização

1 Óscar (9 filmes)
A Bússola Dourada (The Golden Compass) de Chris Weitz
- Efeitos Especiais

Elizabeth – A Idade do Ouro (Elizabeth: The Golden Age) de Shekhar Kapur
- Guarda-Roupa

Expiação (Atonement) de Joe Wright
- Música (BSO) – Dario Marianelli

Os Falsificadores (Die Fälscher) de Stefan Ruzowitzky
- Filme Estrangeiro – País de Origem: Áustria; Título EUA: The Counterfeiters

Juno (Juno) de Jason Reitman
- Argumento Original – Diablo Cody

Michael Clayton – Uma Questão de Consciência (Michael Clayton) de Tony Gilroy
- Actriz Secundária – Tilda Swinton

Once de John Carney
- Canção – “Falling Slowly”, por Glen Hansard e Markéta Irglová

Ratatui (Ratatouille) de Brad Bird
- Filme de Animação

Sweeney Todd: O Terrível Barbeiro de Fleet Street (Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street) de Tim Burton
- Direcção Artística



Despeço-me com a pose de Tio Alfred H, sabendo que me esperam apenas 3 marcelistas horas de sono (talvez haja mais considerações para quando o sono estiver em dia):

Ladies and Gentlemen, good night!

domingo, 23 de dezembro de 2007

Peste Bubónica

Anton Chigurh por Javier Bardem
– How well do you know Chigurh?
– Well enough.
– That's not an answer.
– What do you want to know?
– I'd just like to know your opinion of him. In general. Just how dangerous is he?
– Compared to what? The bubonic plague? He's bad enough that you called me. He's a psychopathic killer but so what? There's plenty of them around.
– He killed three men in a motel in Del Rio yesterday. And two others at that colossal goatfuck out in the desert.
– Okay. We can stop that.
– You seem pretty sure of yourself. You've led something of a charmed life haven't you Mr. Wells?
– In all honesty I can't say that charm has had a whole lot to do with it.

2007 Best Film of the Year – The National Board of Review (em 5/Dez/2007).


E, a talho de foice*, o Top 10 da NBR (os 10 que se seguem, por ordem alfabética do título em português, caso exista):
  • O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford (The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford, realizado por Andrew Dominik);
  • The Bucket List (realizado por Rob Reiner);
  • Expiação (Atonement, realizado por Joe Wright);
  • Juno (Juno, realizado por Jason Reitman);
  • The Kite Runner (realizado por Marc Forster);
  • O Lado Selvagem (Into The Wild, realizado por Sean Penn);
  • Lars and the Real Girl (realizado por Craig Gillespie);
  • Michael Clayton - Uma Questão de Consciência (Michael Clayton, realizado por Tony Gilroy);
  • Sweeney Todd: O Terrível Barbeiro de Fleet Street (Sweeney Todd, realizado por Tim Burton);
  • Ultimato (The Bourne Ultimatum, realizado por Paul Greengrass).

*expressão postada a título terapêutico e profiláctico.

sábado, 1 de dezembro de 2007

Brutalidades – I

Um livro e um filme (este último, para o capítulo II).

O livro
Cormac McCarthy, esse grandessíssimo autor da sublime escola literária norte-americana contemporânea, novelista que vou aprendendo a admirar, residente no Novo México, nascido em Providence, Rhode Island, em 1933, escreveu um dos melhores romances mascarados de thriller que li nos últimos tempos: Este País Não É para Velhos (No Country for Old Men, 2005).
Com uma economia e uma precisão narrativas, McCarthy constrói uma fábula sobre a perversidade e o apodrecimento humanos provindos de uma decadência, aparentemente irreversível, do outrora admirável Novo Mundo: terra dos bravos e dos homens livres, agora terreno fértil para as elucubrações literárias – alguém disse, e não me lembro quem, que o grau de excelência da Literatura (entendida como profusão de livros e do número de autores coetâneos de altíssima qualidade) representativa de um lugar, de uma região, de um país num dado momento é directamente proporcional ao seu grau de anomia, de desintegração e de desenraizamento sociais.
McCarthy e DeLillo são, neste momento, as vozes literárias que, de forma precisa, testemunham e alertam para essa desolação travestida de um, tão inútil como afanoso, fervor vivencial que invadiu a sociedade americana, cujo destino real – lê-se nas entrelinhas –, quiçá num futuro mais próximo que o conjecturado, poderá ir muito além da ficção, da visão distópica modelada pela obra de arte.
Este País Não É para Velhos é, na sua aparência, uma obra de ficção policial: um frio e calculista assassino, Anton Chigurh, a soldo dos grandes traficantes de droga que operam na fronteira territorial entre os Estados Unidos e o México, e um banal mecânico de província, soldador de peças de automóveis, veterano da guerra do Vietname, Llewelyn Moss, que descobre, enquanto caçava na paisagem desértica da fronteira, uma mala recheada com mais de 2 milhões de dólares, um carregamento de heroína mexicana e um estranho morticínio que apenas deixou um homem moribundo e uns tantos cadáveres espalhados pelo terreno.
Contado assim, o enredo do penúltimo romance de McCarthy não passaria de mais um thriller paraliterário, potencialmente hollywoodiano, pejado de cenas de uma violência gratuita, abordando, com uma reflexão exasperantemente débil e minimalista, a eterna disputa entre o bem e o mal, neste caso transformado no visto e revisto jogo do gato e do rato entre o criminoso e o inocente; em suma, uma história sobre a presciência, a frieza e a sabedoria de um assassino que se empenha numa busca desenfreada para recuperar o dinheiro sujo que foi roubado por um inexperiente e anódino homem da província, com uma vida banal e de escassa inteligência prática.
No entanto, é precisamente aí, nesse jogo de ilusão e de aparência, que reside o desafio que McCarthy lança ao leitor. A lhaneza dos diálogos, o emagrecimento descritivo e a frenética sequência dos factos exigem ao leitor atento, amante das artes literárias, um esforço de desconstrução: ler um subtexto supostamente inexistente, mas que o autor, de forma engenhosa, deixou visível, como o novelo de fio de Teseu que desenrolado o pôde conduzir à saída do labirinto de encontro à sua amada Ariadne.
McCarthy mostra-nos o fio da narrativa através das intervaladas reflexões do velho xerife Ed Tom Bell, ex-combatente da II Guerra Mundial, sobre o envelhecimento e a memória de um passado obscuro que nos persegue – «Ele disse que eu estava a ser demasiado severo comigo mesmo. Disse que era sinal da velhice. Tentar emendar os erros que se cometeram. Se calhar há nisto alguma verdade. Mas não é a verdade toda. Concordei com ele quando disse que não havia muita coisa boa para dizer sobre a velhice e ele disse que tinha descoberto uma e eu perguntei o que era. E ele disse: É que não dura muito.» (pág. 203) –, sobre a inadaptação por um país em que a violência parece tomar conta de vida dos seus filhos, embora, com um mínimo esforço de memória, se possa concluir que toda a sua história foi construída sob o domínio da violência, desde as primeiras investidas territoriais dos primeiros colonos, passando pela Guerra da Secessão, acabando no Vietname (o romance decorre no final da década de 70 do século XX) – «Pensei na minha família e pensei nele, sozinho naquela velha casa, na cadeira de rodas, e dei comigo a pensar que este país tem uma estranha história e bem sanguinolenta, diga-se, chiça.» (pág. 205); «As pessoas dizem que foi o Vietname que pôs este país de rastos. Mas eu nunca acreditei nisso. O país já estava em muito mau estado. O Vietname foi só a cereja em cima do bolo.» (pág. 214).
É nestas reflexões de Ed Tom, verbalizadas num estilo de linguagem coloquial, em que se funda e materializa a mensagem, transformando a aparente acção principal num teatro de sombras do inexorável caminho para o apocalipse de uma sociedade corrupta, perversa e materialista que deprecia o valor absoluto da vida humana, estabelecendo-se um paralelismo bíblico com as profecias de São João Evangelista determinadas no último dos Livros do Novo Testamento.
«Dizem que os olhos são as janelas da alma. Eu cá por mim não sei de que é que os olhos são as janelas e se calhar até prefiro não saber. Mas há uma outra maneira de ver o mundo e outros olhos para o ver e é por esse caminho que nós vamos. Eu próprio o trilhei e conduziu-me a um lugar na minha vida que nunca imaginei chegar a conhecer. Algures por aí anda um profeta da destruição, um profeta genuíno, de carne e osso, e eu não o quero enfrentar.» (pp. 15-16).
Com este romance, Cormac McCarthy traz-nos de novo uma atroadora e descoroçoante alegoria. Uma narrativa com vida própria, autónoma, para além da vontade do próprio escritor, viril, brutal, desoladora e inóspita, sem mesuras e lamentos, expurgada de derivações metafísicas ou de pretensas respostas sobre o declínio da América e da nossa civilização, e a percebida inexorabilidade – o espírito deste tempo – na aproximação das trevas.

Classificação: ***** (Muito Bom)

Referência bibliográfica:
Cormac McCarthy, Este País Não É para Velhos. Lisboa: Relógio D’Água, 1.ª edição, Outubro de 2007, 231 pp. (tradução de Paulo Faria; obra original: No Country for Old Men, 2005).


Nota: Os fabulosos irmãos Coen (Joel e Ethan) – responsáveis por alguns dos filmes do meu Olimpo íntimo e intransmissível: Fargo (1996) ou O Grande Lebowski (The Great Lebowski, 1998) – produziram, realizaram, montaram e escreveram o argumento do filme homónimo – estreou na semana passada nas salas de cinema norte-americanas –, com interpretações de Tommy Lee Jones, Javier Bardem, Woody Harrelson, entre outros. Tanto a crítica, como a esmagadora maioria dos espectadores, têm demonstrado, empregando algumas hipérboles encomiásticas, a sua admiração irrestrita pelo último filme desta dupla.

Por aqui vou esperando, dando por mim a desejar que a história, na versão fílmica dos irmãos Coen, haja logrado captar a verdadeira essência do romance de McCarthy. Todavia, enfatizando a ressalva, a um filme dessincronizado com a obra literária que lhe deu origem não pode, nem deve, seguir-se uma imediata sentença de repúdio ou de rotulagem de inabilidade na adaptação do romance de base. São artes diferentes que merecem um tratamento diferenciado. Normalmente, a natureza descritiva de um livro é incompatível com o imediatismo imagético de uma obra cinematográfica. De outro modo, correríamos o risco de cair na célebre imagem satírica de Hitchcock das duas cabras que pastavam bobines de celulóide talvez nas colinas de Hollywood, em que a primeira pergunta à segunda se esta está a gostar da refeição; ao que a segunda responde: “Nada mal!... Mas, gostei mais de comer o livro…»

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Um poema, um livro, um filme

THAT is no country for old men. The young
In one another's arms, birds in the trees
– Those dying generations – at their song,
The salmon-falls, the mackerel-crowded seas,
Fish, flesh, or fowl, commend all summer long
Whatever is begotten, born, and dies.
Caught in that sensual music all neglect
Monuments of unageing intellect.

An aged man is but a paltry thing,
A tattered coat upon a stick, unless
Soul clap its hands and sing, and louder sing
For every tatter in its mortal dress,
Nor is there singing school but studying
Monuments of its own magnificence;
And therefore I have sailed the seas and come
To the holy city of Byzantium.

O sages standing in God's holy fire
As in the gold mosaic of a wall,
Come from the holy fire, perne in a gyre,
And be the singing-masters of my soul.
Consume my heart away; sick with desire
And fastened to a dying animal
It knows not what it is; and gather me
Into the artifice of eternity.

Once out of nature I shall never take
My bodily form from any natural thing,
But such a form as Grecian goldsmiths make
Of hammered gold and gold enamelling
To keep a drowsy Emperor awake;
Or set upon a golden bough to sing
To lords and ladies of Byzantium
Of what is past, or passing, or to come.


William Butler Yeats, Sailing to Byzantium (1928)
Nota: seguir tags.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Devastação

«Os dias passavam, vagarosos, sem que ninguém os contasse, os assinalasse num calendário. Lá longe, ao longo da interestadual, enormes filas de carros calcinados e cobertos de ferrugem. O metal despido das jantes mergulhado numa pasta dura e cinzenta de borracha derretida, em anéis enegrecidos de arame. Os cadáveres incinerados, mirrados até ao tamanho de crianças e apoiados nas molas nuas dos assentos. Milhares de sonhos sepultados naqueles corações reduzidos a lascas de pedra. Eles continuaram a caminhar. Palmilhavam o mundo sem vida como ratinhos numa roda. De noite, silêncio de morte e trevas sepulcrais. Tanto frio.» (pág. 179)
Trevas. Suponhamos a Terra definitiva e perenemente coberta de nuvens negras, fuliginosas, que raramente deixam entrever os raios do astro-rei que outrora fora a fonte criadora de vida. A superfície da América é apenas um deserto cruzado por uma intricada rede de estradas de asfalto negro derretido, por onde deambulam seres humanos em busca de alimento, revirando os despojos de uma devastação de chamas, de árvores queimadas, cidades inteiras destruídas, onde já nem se escuta o trinado dos pássaros que cruzavam os céus. O Homem sozinho com ele mesmo, curiosamente o único ser que remanesceu à barbárie por ele ocasionada; o Homem e a sua desmesurada inteligência, desviada apenas para o objectivo último de sobreviver numa paisagem hostil que ele próprio criou no seu afã de conquista, de poder, de dominar a indomável Natureza.

Pai e filho caminham sós por essa imensa estrada, unindo-os uma relação de amor incondicional, resquícios dos afectos de um tempo que já passou. Pequenos nadas que se consolidaram numa liga indestrutível perante a miséria.
Pai e filho caminham para Leste, em direcção ao mar. Talvez a única força viva da Natureza que, pela distância – na memória do pai – ou pelo desconhecimento que não seja através de uma memória secundária – no caso do filho –, simboliza todo o fulgor e o fascínio que necessariamente o simples acto de viver, toda uma existência, requer para lhe atribuir um significado, um propósito, um objectivo cuja génese incognoscível – Deus? – poderá encerrar algo de absolutamente aterrador, mas que decerto conduz à libertação... à luz.
Pela estrada deambulam pessoas em busca de alimento, quando não pertencem e nem se encontram organizados em comunas fortemente hostis ao contacto com o exterior despedaçado. No pai subsiste a memória de um espaço de luz e toda a aprendizagem de um processo que conduziu o planeta ao apocalipse. Ao filho resta-lhe a obediência cega à voz da experiência do seu velho companheiro de caminhada, e um coração puro, não contaminado, desconhecedor das atrocidades praticadas e, principalmente, da razão de ser para aquele cenário de autodestruição: «Está bem», simboliza a tal obediência que é simultaneamente o epítome de um sentimento arrebatador que extravasa toda a degradação; e, enfim, a caridade que, como dizia o Profeta, recolherá os seus frutos num tempo que há-de vir.

Cormac McCarthy conquistou com este livro o prémio Pulitzer 2007 para a melhor obra de ficção literária. Nas cerca de 190 páginas do romance, que se lêem de um só fôlego, o escritor norte-americano faz jus às atribuídas solidez e integridade narrativas, especialmente difícil numa obra de carácter distópico.
Com alguma crueza em determinados relatos – vide a descrição, tão discutida pela crítica, do bebé canibalizado – e, por outro lado, sem haver deixado algum do barroquismo que caracteriza a sua bibliografia ficcional activa, esta é, no meu entender a sua melhor obra e, seguramente um dos romances do ano editorial português, uma vez mais com a chancela de uma das minhas editoras preferidas, a
Relógio D’Água.

Classificação: ***** (Muito Bom)

Referência bibliográfica
Cormac McCarthy, A Estrada. Lisboa: Relógio D’Água, 1.ª edição, Março de 2007, 187 pp. (tradução de Paulo Faria; obra original: The Road, 2006).

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Nos Escaparates

Vencedor, na segunda-feira passada, do Pulitzer 2007 na categoria de obra literária de ficção, A Estrada (The Road, 2006) do escritor norte-americano Cormac McCarthy já se encontra à venda em Portugal, editado pela Relógio D’Água, com tradução de Paulo Faria.

Nota: McCarthy também figura na lista de finalistas para o IMPAC Award 2007, com o seu romance de 2005 No Country for Old Men, ainda sem edição em Portugal.





Obras de McCarthy editadas em Portugal, para além de A Estrada:
  • O Guarda do Pomar – Relógio D’Água, 1996 (The Orchard Keeper, 1965);
  • Filho de Deus – Relógio D’Água, 1994 (Child of God, 1974);
  • Meridiano de Sangue ou o Crepúsculo Vermelho no Oeste – Relógio D’Água, 2004 (Blood Meridian, or the Evening Redness in the West, 1985);
  • Belos Cavalos – Teorema, 1994 (All the Pretty Horses, 1992)*.

*Obra que, conjuntamente com The Crossing (1994) e Cities of the Plain (1998), integra a denominada Trilogia da Fronteira do autor norte-americano.

terça-feira, 17 de abril de 2007

Pulitzer 2007

Foram hoje (ontem, dia 16) anunciados os vencedores do Pulitzer Prize do ano de 2007.
Na categoria “Ficção” venceu Cormac McCarthy – a quem B. R. Myers apontou no seu Reader’s Manifesto como epítome da “prosa musculada”, apresentando-o como sujeito de sobreavaliação literária pelo feudo da crítica norte-americana – com o seu romance The Road – suponho que já se encontra no prelo para o mercado editorial português, sob o título A Estrada, com chancela da editora Relógio D’Água.

Foram também atribuídas duas menções honrosas: uma ao autor de Fahrenheit 451, Ray Bradbury, hoje com 86 anos, pela sua «distinta, prolífica e altamente influente carreira como autor, sem par, nas áreas da ficção científica e do fantástico», e a outra, a título póstumo, ao fabuloso – e meu muito dilecto – compositor e saxofonista de jazz John Coltrane, que, por complicações hepáticas, faleceu prematuramente aos 40 anos de idade, em Julho de 1967.

Ver aqui os prémios Pulitzer 2007 para as restantes categorias.