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sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Seguidismo crítico

«Parece que os críticos do Reino Unido gostaram realmente de Invisível, o último romance de Paul Auster, e eu dei por mim a pensar se valeria a pena analisá-lo – já não leio um livro dele desde O Livro das Ilusões (2002) – quando, na New Yorker, James Wood veio a terreiro e zurziu no livro.» [tradução livre: AMC, 2009]
Estas palavras pertencem a Christopher Tayler, postadas no blogue da London Review of Books no passado dia 9, sítio onde, em conjunto com outros peritos em assuntos artístico-literários, escreve sobre livros e supostamente sobre Literatura.
Tayler, de 34 anos, para além de colaborar com a LRB, é o crítico-chefe de ficção literária no jornal londrino The Guardian.
Todo o texto é hiperbólico, escrito num estilo de tragicomédia, cujo excerto atrás traduzido revela, à partida, uma debilidade preocupante – que muitos julgavam exclusiva dos críticos literários portugueses, vide as recensões em que se nota, num impudor ostensivo, um cunho eminentemente sintético, uma espécie de súmula dos textos produzidos pelos principais críticos anglófonos e, até, por alguns francófonos de reputação assegurada –, a subordinação da opinião de determinados críticos à concepção e ao pensamento provindos dos putativos donos da crítica literária. Porém, pensar que essa debilidade evidente é um caso exclusivo do recenseador e da publicação em questão, não só seria uma mentira muito mal amanhada, como branquearia todo o comportamento de uma nova horda recenseadora que se fundou com o endeusamento do crítico britânico James Wood e as suas repreensões (sovas eruditas) estético-literárias. É, aliás, com este personagem das letras contemporâneas que esse depauperamento, eucalíptico, da crítica se tornou flagrantemente chocante.
O caso não é de agora, Wood com a sua prosa inteligente e aparentemente dominadora do fenómeno, fomentou a ortodoxia literária que tem circunstanciado a análise crítica da ficção que se vai publicando por esse mundo fora.
Umberto Eco, referindo-se aos repetidos episódios inscritos na História universal de queima pública de livros – de Savonarola a Hitler, entre outros –, fala de uma censura promovida por um tipo de totalitarismo (pensamento único, se quisermos), em que o fomentador, longe de pensar que a fogueira extinguirá a obra queimada, assume um papel de demiurgo com vista a moldar e a purgar todo pensamento cultural de uma determinada comunidade. E esse é precisamente o perigo do anátema woodiano, promotor de um pernicioso unanimismo. 
Se provas faltassem para o seguidismo messiânico, onde se professa uma liturgia de estrita observância – usando da censura, do sarcasmo e dos ataques ad hominem –, benzendo-se, em contínua persignação supersticiosa e aduladora, todo o objecto de talento que fuja ao dogma do criador, leia-se para o efeito o artigo completo deste crítico em incubação (embora, como se afirmou, estejamos a falar do editor-chefe da secção de literatura de ficção no The Guardian) que, por vontade própria, não pretende sair da proveta, porquanto se sente aconchegado pelas palavras do deus criador – o curioso subtítulo deste texto é “Eu fui um adolescente fanático por Auster”.
As ondas sísmicas do abalo provocado pelo texto “covas rasas” – uma alusão à sepultura metaficcional em que August Brill introduziu Owen Brick no romance Homem na Escuridão (Man in the Dark, 2008) como exercício de diversão dos pensamentos tenebrosos que o assaltavam diariamente na titânica luta contra a insónia –, parte integrante do n.º 89, volume 35, da New Yorker, fizeram-se sentir um pouco por todo lado, basta para isso efectuar uma pequena e breve pesquisa na Internet num qualquer motor de busca. Para além dos diversos textos de recriminação dedicados ao emérito professor de crítica literária de Harvard, ressuscitaram algumas mentes cuja planura argumentativa não consegue fugir da mera corroboração: “eu sempre disse”, “até que enfim alguém pôs o dedo na ferida”. Como se não houvesse uma passado, um autor, toda uma obra que não deixou de ser escrutinada com encómios, indiferença ou duras críticas, fazendo tábua rasa de toda a sua biobibliografia, em suma, da própria história recente da literatura.
Mas, para nosso profundo pesar, estes são os campeões da nova crítica contemporânea, os filhos dilectos de qualquer publicação literária ou com pretensões a assumir esse estatuto; todos umbilicalmente ligados por um gritante minimalismo conceptual: “Shallow Thinking”.
PS – o acaso – um tema tão caro a Auster nas suas efabulações –, talvez o acaso (e quero continuar ingénuo) fez com que James Wood, nas habituais listas de final do ano, nomeasse o livro de contos de Lydia Davis como o melhor do ano no campo da ficção. As palavras são dele: «Este ano fiquei excitado com as “Collected Stories” de Lydia Davis. […] Davis é divertida, mordaz, autodepreciativa (até auto-repulsiva) e muito bem-humorada.» [tradução livre: AMC, 2009] Acaso sabem, os poucos que me lêem, com quem foi casada a autora supramencionada no início dos anos 70 e com quem compartilhou a experiência de vida de fome e atribulações em França, tendo gerado um filho em comum chamado Daniel? Bingo! Isso mesmo, um tal de Paul Benjamin Auster, nascido a 3 de Fevereiro de 1947 em Newark, Nova Jérsia. Usando uma frase feita, estafada, o velho cliché que se usa sem itálicos, qual Adamastor woodiano, apetece perguntar, abusando da retórica: Há coisas fantásticas, não há?

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O Regresso seguido de “O Opróbrio” (act.)

Numa operação inédita com Auster, que gerou o contentamento geral nos fãs lusos do autor, a antiga editora portuense Asa – hoje propriedade do grupo LeYa –, anunciou no início do ano a publicação em Portugal do 13.º romance do autor de Nova Jérsia – nos dias que correm, um filho dilecto do distrito de Brooklyn em Nova Iorque com direito a um dia no calendário a ele dedicado –, em simultâneo com a sua saída para o mercado literário nos Estados Unidos.
Paul Benjamin Auster (n. 1947), para muitos a voz contemporânea mais autorizada para carregar o epíteto de “o poeta do acaso”, considerado por outros tantos como o mais europeu dos escritores norte-americanos vivos, seguido por um alargado grupo de fãs espalhados por todo o mundo, (coeso embora heterogéneo nos elementos que o estabelecem, genuíno pelo ostentado deleite por todo o imaginário das suas histórias, que se constitui como uma espécie de milícia de defesa acérrima do seu processo criativo, mesmo quando o defendido se confessa cansado e vulnerável, na iminência de um ataque da terrível síndrome de que padecem alguns dos eminentes profissionais da palavra escrita, conhecida como “bloqueio do escritor”), parece ter feito a vontade àqueles que há anos vêm denunciando o desvio do rumo da sua prosa, para um intricado de convulsões metaficcionais – Invisível, cedo se provou como o regresso do ícone Auster .
Paul Auster é idolatrado em França e em Espanha – neste último pude constatar in loco a efervescente austeromania –, elevado ao estatuto de chanceler do pós-modernismo na Alemanha, autor de culto dos nórdicos e, paradoxalmente, quase censurado no seu país natal, recebendo sempre críticas que abrangem todo o espectro de qualificativos do soberbo ao hórrido, e glosado como ligeiro no Reino Unido – jamais separando o homem da sua obra na adjectivação empregada –, apesar de já se pressentir que, bem ao longe e de forma tímida, a brisa que hoje se anuncia já é parte integrante do silvo dos ventos de mudança opinativa da crítica profissional anglófona. Com efeito, Auster era (e ainda é) criticado por ser ele mesmo, independentemente da obra analisada. A cada novo romance seu, a escrita automática dos recenseadores anglófonos, especialmente os britânicos, onde o insulto travestido em frases mais ou menos buriladas porventura pelo medo imanente de uma assertividade que se transformaria em alvo de censura pública, saltava para as páginas dos jornais e revistas mais reputados em assuntos literários – com excepção do Independent, a crítica dos jornais londrinos está aí para corroborar a tal mudança.
A sua última obra de ficção, Invisível, confirma o retorno de Auster a Leviathan, à Música do Acaso, à Trilogia, ou a Palácio da Lua – obras que consolidaram, há muito, o seu estilo literário, quer se goste ou não, quer se ridicularize ou idolatre. Apesar de não abandonar por completo os seus dilectíssimos jogos metaficcionais – bem presentes nos seus dois últimos romances, eminentemente auto-referenciais, labirínticos, de uma impudica ostentação da omnisciência autoral e de mero exercício de forma literário –, porquanto nesta obra ainda se consegue pressentir o pulsar de Auster na fina camada primordial do quadro narrativo, em Invisível os três narradores que integram os quatro segmentos narrativos interdependentes, com estilos e vozes diferentes, ampliando a um nível de exigência extrema a gama diegética, são o sal mas não o fulcro de uma história com uma ímpar densidade psicológica dos seus personagens; o que outrora (especialmente em Viagens no Scriptorium e Homem na Escuridão) era a matéria-prima fundamental, assume nesta obra o papel de mero elemento adjuvante, embora necessário, não é de todo a sua alma, a essência, o espírito que paira por sobre as nossas cabeças mal lemos «Para o resto da minha vida, onde quer que me encontre, faça eu o que fizer, aquele som estará sempre comigo.» (p. 236) – que entendi como um apelo, através da alegoria, ao horror concentracionário das diversas formas de agrilhoamento do Homem que subsistem no mundo em que vivemos – e que nos assombra pelo manancial de interpretações que daí poderão ocorrer – as pontas soltas que o romancista não quis atar; o seu cunho literário mais marcante de um anti-Deus ex machina, e que induzem a um inebriamento que obriga a uma releitura.
Negro como A Trilogia de Nova Iorque. Obstinado como A Música do Acaso. Cativante, glamoroso e comovedor como Leviathan. Desesperado e descoroçoante como Palácio da Lua. Sufocante e devastador como No País das Últimas Coisas. Terno e fracturante como Mr. Vertigo. Invisível é a súmula de uma obra ímpar no panorama literário mundial. Muitos descrevem-na como a sua melhor obra de ficção. Eu como fã quase incondicional do homem de ascendência judaica nascido há 62 anos entre os despojos materiais e humanos da II Guerra Mundial, acrescento mais um traço às suas obras de ficção de minha eleição.
Por fim, reveste-se como obrigatório salientar que há muito que Auster não gozava de uma crítica tão favorável no mundo da anglofonia, e a crítica lusa é quase unânime na aclamação ou louvor da obra – e ainda faltam as recensões alemãs, francesas, espanholas, italianas e escandinavas, já que em muitos desses países o romance ainda não foi publicado. Como consequência, face a uma quase unanimidade da crítica anglófona sobre a arte desta última obra, era mais do que esperado o surgimento de…
O que James Wood (n. 1965) fez no alargadíssimo espaço de crítica que lhe é reservado na revista The New Yorker no passado mês de Novembro, só pode ser entendido no estreitíssimo campo semântico do opróbrio que atrás falei de forma meramente alusiva. O texto de Wood é um manifesto ataque ad hominem, com todos os seus ingredientes de confusão mental entre produção literária e carácter do criador – e qual a necessidade de gastar mais palavras e quatro páginas, mais espaço precioso no n.º 39 do volume 85 da afamada revista americana, crime que se agrava por haver sido perpetrado na vizinhança da Cimeira de Copenhaga, quando ao 7.º parágrafo (num total de 20) Wood afirma: «Embora existam coisas de apreciar na ficção de Auster, a prosa nunca está entre elas»? [tradução livre de minha responsabilidade] E o mais confrangedor é que o opróbrio vem primorosamente adornado com uma excelente caricatura de Paul Auster pelas mãos do nosso André Carrilho.
De facto, depois de haver lido dezenas de críticas e um ou outro livro do grande paladino das letras contemporâneas em defesa do realismo e das vicissitudes monomaníacas do “discurso indirecto livre” na Literatura (ou na ficção?) – esse nobre recurso estilístico, magno promotor da invisibilidade autoral na obra, uma espécie de Frankenstein narrativo –, um David em Elah contra os malefícios das aviltantes correntes do modernismo e do pós-modernismo, profanos enquanto fautores do festim orgiástico entre criador e personagens, qualquer pessoa moderadamente identificada com Auster e a sua obra não pode deixar de apresentar sintomas de algum desconforto perante este exercício de uma frivolidade inusitada, a roçar o maniqueísmo pueril, em conflito com o reconhecimento académico, e não só, do recenseador em questão.
Não vale a pena desbaratar mais palavras com o chorrilho de asserções sem substância, com um exercício formal de puro enxovalho. O tempo encarregar-se-á de separar as águas. O crítico britânico exportado como pré-vintage para a Ivy League, já nos habituou a estes meros panfletos que denunciam a heresia contra a teologia da sua literatura – vista, pela sua igreja, como uma entidade isolada, asséptica, do ambiente cultural que a rodeia. É certo que sem o grau ominoso e de amarga verborreia de fusão da criatura com o criador como neste caso, contra tudo que não derive do realismo novecentista de Flaubert ou de Henry James – que até são autores muito cá da casa –, erigindo, entre outros, DeLillo, Rushdie ou Pynchon como alvos, perdoando, em simultâneo, os passos em falso de alguns dos seus contemporâneos e conterrâneos, nos casos mais notáveis de Christopher Hitchens e Martin Amis.
Mas o erro crasso, o pecado primordial, adveio de quem teve a ousadia de o comparar com Edmund Wilson. A partir de um acontecimento com essa natureza contrafactual, emerge uma soberba declaradamente adiposa que costuma obnubilar a mente preclara, outrora livre da placa bloqueante do fausto louvaminheiro. É que um louvaminheiro astuto tem de ser selectivo, sob pena de não ver sancionados os seus ataques no pós-desferimento e cair, sem apelo, na mais sombria das indigências.  
Indo um pouco mais longe, não nos podemos esquecer que Wood – emprego, sem pedir meças, a sua técnica da asserção gratuita – é, aos 44 anos, um romancista frustrado. Para afiançar a validade de tal certeza, basta ler as críticas a The Book Against God, publicado em 2003, que curiosamente se socorre de um tique pós-modernista, que o próprio censura nos outros, mas que não se coibiu de usar no seu título e na sua abertura distintamente kitsch, usando o cliché sem ironia, isto é, de forma séria, sem itálicos…
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[actualizado às 23:39, 08/12/2009]: Auster, entrevistado no jornal espanhol La Vanguardia, é confrontado com a crítica de Wood, dissonante da publicada no New York Times Book Review, que considera Invisível como o seu melhor romance [dias mais tarde, o respeitado periódico nova-iorquino considerou-o como uma das 50 melhores obras de ficção publicadas em 2009]:
«JORNALISTA: […] nesta semana James Wood investe contra si na The New Yorker.
AUSTER: Não li a crítica. Não leio nenhuma crítica há quatro ou cinco anos, embora a conheça. Sei que me ataca. Não tenho nada de pessoal contra ele, mas é sempre assim. Muitos amigos perguntam-me qual é o problema. É um reaccionário. Não quero preocupar-me. Siri, a minha mulher, que está em viagem, telefonou para mo comentar. Disse que era como se fosses na rua e um desconhecido te desferisse um murro na cara.»
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Nota: E já agora, intervindo aqui apenas como um leitor interessado e noviço da liturgia woodiana – afirmações circunstanciadas na sua obra minimal –, será que Wood já releu a Parte II de Dom Quixote? Deixo essa tarefa indagadora a Deresiewicz.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

90 anos

©2000 Margaret A. Salinger e J. D. SalingerFoi ontem. Um tal de Jerome David, mais conhecido pelo seu apelido Salinger, completou noventa anos de idade.
Desapareceu das luzes da ribalta em 1965, permanecendo em estrito isolamento perante o turbilhão do mundo exterior.
Nasceu a 1 de Janeiro de 1919, no seio de uma família de raízes judaicas (apesar de a mãe, de origem irlandesa, se haver convertido ao judaísmo somente após o casamento com o seu pai de ascendência polaca). Depois da aproximação do espiritualismo Zen, Yoga, e das religiões orientais, em meados da década de 1950 converteu-se à Ciência Cristã – não confundir com Cientologia, são seitas religiosas completamente distintas em todos os seus preceitos.
Salinger despediu-se do meio editorial com a novela Hapworth 16, 1924, publicada na íntegra na edição de 19 de Junho de 1965 da revista The New Yorker – número esgotado, tendo Salinger impedido a reedição, apesar de em 2005 ter surgido em oito DVD’s e um livro The Complete New Yorker: Eighty Years of the Nation's Greatest Magazine, onde o referido número não foi retirado.
O seu primeiro trabalho de ficção de fundo trouxe-lhe, de uma forma vertiginosa, a fama mundial: The Catcher in the Rye, de 1951, (ed. port: Uma Agulha em Palheiro, na edição da Livros do Brasil; À Espera no Centeio, na edição da Difel) e o seu protagonista de dezasseis anos Holden Caulfield.
Mais tarde dedicou-se à disfuncional família de prodígios de nome Glass e retirou-se.
Diversas fontes asseguram que, Salinger após a retirada, continuou com o seu ritmo normal de escrita, mas escorraçou a publicação da sua rotina, confidenciando à sua quase-ninfeta e amante Joyce Maynard (de apenas 18 anos), com quem viveu maritalmente durante dez meses entre 1972 e 1973, que:
«A publicação é um negócio sujo […] Irás ver a que me refiro um dia. Todos aqueles boçais, opinativos frequentadores de cocktails, tão prontos a julgar. Suficientemente maus quando o fazem a um escritor. Mas quando eles começam a fazê-lo com os teus personagens – e eles fazem-no – é assassinato. […] Trata-se apenas de uma maldita interrupção que eu não posso mais tolerar».
Joyce Maynard, At Home in the World: A Memoir, p.89 (tradução: AMC)
[New York : Picador, 1st edition, 1998, 347 pp.]
Ontem J. D. fez 90 anos, a fazer fé na escassa informação que fugiu do seu escrupuloso escrutínio, deixou instruções quanto à publicação dos seus escritos inéditos. O polémico livro de memórias da sua filha Margaret, Dream Catcher: A Memoir, publicado em 2000, expande não só o ambiente de clausura para dentro da própria casa do autor, como aguça o apetite do mundo salingeriano pelas possíveis obras a publicar num futuro, que a avançada idade do autor deixa entrever, próximo:

«Eu não sei por que razão os seus fatos não cabem no armário do seu quarto. Embora tenha visitado a sua casa por mais de trinta anos, eu nunca vi o seu armário nem o seu quarto de banho. O seu quarto, quarto de banho e escritório formam um “L” à volta da cozinha. A porta permanece sempre fechada. Fui convidada a entrar uma ou duas vezes em toda a minha vida quando ele me queria mostrar alguma coisa no seu escritório. Uma vez para me mostrar umas prateleiras novas com as quais ficara encantado. Outra para me mostrar um novo sistema de catalogação que ele havia engendrado para o material que se encontrava num dos seus cofres. Uma marca vermelha significava, se eu morrer antes de terminar o meu trabalho, publicar isto “tal como está”, azul significava publicar mas só depois de o corrigir e rever, e por aí em diante.»
Margaret A. Salinger, Dream Catcher: A Memoir, p. 323. (tradução: AMC)
[New York: Washington Square Press, 2000, 436 pp.]

E, afinal, para onde vão os patos do Central Park quando o lago gela no Inverno?

sábado, 7 de junho de 2008

Volodya, de novo

Vladimir NabokovEnquanto Dmitri filho único de Vladimir Nabokov (1899-1977) anda, em letras de imprensa, a distrair meio mundo literário com a fábula dos manuscritos encerrados no cofre-forte de um banco suíço que só pode ser aberto pela combinação de chaves detidas por duas pessoas – qual trama browniana. Vão, estranhamente, surgindo uns dispersos do ilustre pai, escritos originalmente em russo e posteriormente traduzidos pelo filho – ou seja, manuscritos provavelmente com data anterior ao início da década de 40 do século passado, altura a partir da qual Nabokov, já nos Estados Unidos, passou a escrever exclusivamente em inglês.
Desta feita, surgiu do nada, no número desta semana da revista norte-americana The New Yorker (de 9 a 16 de Junho de 2008) um conto inédito do eminente escritor russo-americano intitulado “Natasha”.
Enquanto nada sai sobre o alegado romance inacabado The Original of Laura, depois de Lolita (1955) e de O Encantador (Volshebnik, 1939; publicado postumamente em 1985 por Dmitri sob o título The Enchanter, como uma versão, em forma de novela, mais punitiva de Lolita; a mácula da pederastia contribui para o desfecho trágico do perpetrador, dando-se a redenção da ninfeta sem nome), surge-nos agora “Natasha” provavelmente escrito em 1925.
Alguém me consegue explicar, para além de uma provável cupidez, o que anda Dmitri a fazer com o espólio de seu pai? Seguramente, a par de Borges, o melhor escritor dos 2.º e 3.º quartéis do século XX, e um dos melhores escritores de todos os tempos?

Eis as primeiras palavras do conto:

«On the stairs Natasha ran into her neighbor from across the hall, Baron Wolfe. He was somewhat laboriously ascending the bare wooden steps, caressing the bannister with his hand and whistling softly through his teeth.
“Where are you off to in such a hurry, Natasha?”
“To the drugstore to get a prescription filled. The doctor was just here. Father is better.”
“Ah, that’s good news.”
She flitted past in her rustling raincoat, hatless.
Leaning over the bannister, Wolfe glanced back at her. For an instant he caught sight from overhead of the sleek, girlish part in her hair. Still whistling, he climbed to the top floor, threw his rain-soaked briefcase on the bed, then thoroughly and satisfyingly washed and dried his hands.
[…]»

(versão completa aqui)