O TEU DESEJO É A TUA ORAÇÃO
“‘Meu
coração grita e geme de dor’ (Sl 37,9). Há gemidos ocultos que não são ouvidos
pelos homens. Contudo, se o coração está possuído por tão ardente desejo que a
ferida interior do homem se manifesta em sons externos, procuramos a causa e
dizemos a nós mesmos: Talvez ele tenha razão de gemer; e talvez lhe tenha
ocorrido algo. Mas quem pode compreender esses gemidos, senão Aquele a cujos
olhos e ouvidos eles se dirigem? Por isso diz: ‘Meu coração grita e geme de
dor’, porque os homens, se às vezes ouvem os gemidos de um homem, ouvem
frequentemente os gemidos da carne; mas não ouvem o que geme em seu coração.
E quem seria capaz de compreender
por que grita? Escuta o que diz: ‘Diante de Vós está todo o meu desejo’ (Sl
37,10). Não ‘diante dos homens’, que não podem ver o coração, mas ‘diante de
Vós’ está todo o meu desejo. Se, pois, o teu desejo está diante do Pai, Ele que
vê o que está oculto, te recompensará.
Teu desejo é a tua oração: se o
desejo é contínuo, também a oração é contínua. Não foi em vão que o Apóstolo
disse: ‘Orai sem cessar’ (1Ts 5,17). Será preciso ter sempre os joelhos em
terra, o corpo prostrado, as mãos levantadas, para que ele nos diga: ‘Orai sem
cessar?’ Se é isto que chamamos orar, não creio que possamos fazê-lo sem
cessar.
Há outra oração interior e
contínua: é o desejo. Ainda que faças qualquer outra coisa, se desejas aquele
‘repouso do sábado eterno’, não cessas de orar. Se não queres cessar de orar,
não cesses de desejar.
Se teu desejo é contínuo, a tua
voz é contínua. Ficarás calado, se deixares de amar. Quais são os que se
calaram? Aqueles de quem foi dito: ‘A maldade se espalhará tanto, que o amor de
muitos esfriará’ (Mt 24,12).
O arrefecimento da caridade é o
silêncio do coração; o fervor da caridade é o clamor do coração. Se a tua
caridade permanece sempre, clamas sempre; se clamas sempre, desejas sempre; se
desejas, tu te recordas do repouso eterno.
‘Diante de Vós está todo o meu
desejo’. Se o desejo está diante de Deus, o gemido não estará? Como poderia ser
assim, se o gemido é a expressão do desejo?
Por isso o Salmista continua:
‘Meu gemido não Vos é oculto’ (Sl 37,10): Não é oculto para Deus, mas é oculto
para a multidão dos homens. Ouve-se por vezes um humilde servo de Deus dizer:
‘Meu gemido não Vos é oculto’ e vê-se também esse servo sorrir. Será por que o
desejo está morto em seu coração? Se o desejo permanece, também permanece o
gemido; este nem sempre chega aos ouvidos dos homens, mas nunca está longe dos
ouvidos de Deus” (Comentário ao Salmo 37,13-14; CCL 38,391-392).
Santo Agostinho de Hipona, +430
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