No dia 15 de maio, a corrida Desafio da Paz teve sua largada no Campo do Progresso, na Vila Cruzeiro, atravessou o morro e passou por um lugar que, seis meses antes, ficou conhecido no Brasil inteiro: a estrada por onde traficantes do Complexo da Penha fugiram em direção ao vizinho Complexo do Alemão – conjuntos de favelas ocupados por forças de segurança desde novembro. Entre os participantes estava o vendedor de sorvetes José Cantídio Leal Ferreira Neto, 50 anos, conhecido como o Sorveteiro Corredor. José fez o acidentado trajeto de 5 km em 23 minutos, sete a mais do que o vencedor, o maratonista Franck Caldeira, medalha de ouro nos Jogos Pan-Americanos do Rio, em 2007.
"Eu fui o primeiro a me inscrever. Cheguei cedinho, fiquei mais de 2 horas esperando e ganhei o número 1. O Franck Caldeira estava com o número 402 e me pediu para trocar com ele. Troquei e ficamos conversando. Depois da corrida, com subida, mata, chão de barro e pedras, ele me disse que achou o caminho difícil. Era quase uma corrida de obstáculos", conta José, morador do Complexo do Alemão há sete anos. "Aqui, quando saía tiroteio, não dava para trabalhar. Por duas vezes me abriguei com carrinho e tudo na casa dos outros. Agora dá para trabalhar todo dia."
Nascido em Recife e criado em Olinda, José mudou-se para o Rio de Janeiro aos 16 anos. Foi serralheiro, operário numa fábrica de copos e numa de guarda-chuvas e pintor de paredes, entre outras profissões, até virar vendedor de sorvete.
Há 15 anos, passou a sair com seu carrinho de domingo a domingo, das 9h às 18h. "No inverno, passo apertos, porque vendo menos sorvete. Aí preciso fazer uns biscatezinhos, trabalho de cobrador de van, pinto casa...", conta José, que só vende sorvete no copinho. A fábrica fica na Vila Cruzeiro, na Penha, uma das comunidades ocupadas pelo Exército desde o fim do ano passado. "Rodo muito, a pé o dia inteiro. Ando pela Grota, Inhaúma, Bonsucesso e vou até o Jacaré. Vendo pelas comunidades mesmo. Dia de semana, quem mais compra é adulto. Mas fim de semana só dá criança."
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A corrida entrou na vida de José aos 18 anos, quando serviu ao Exército, mas ele logo a abandonou por falta de tempo. Aos 30, retomou e não parou mais. José treina todos os dias antes de trabalhar, de 7h às 8h30. Às terças e quintas, costuma ir para a Quinta da Boa Vista (parque em São Cristóvão, zona norte do Rio), onde faz os exercícios e circuitos propostos por um professor para um grupo. Não pode pagar, mas ele e uns amigos observam de longe e reproduzem as instruções. Às segundas, quartas e sextas, corre sozinho e varia o trajeto: pode ser na praça próxima ao ponto final do ônibus 312, na mata onde ocorreu o Desafio da Paz ou na rua mesmo, perto de onde mora, no Complexo do Alemão.
Até uns anos atrás, fazia parte da Associação dos Veteranos de Atletismo do Rio de Janeiro e treinava no Maracanã, orientado por um professor, seu Fred. Mas não pode mais pagar a taxa anual de 100 reais. "Era bom, seu Fred ensina bem. Tem quase 90 anos e ainda corre, quero ser igual a ele. A gente treinava corrida de 800, de 1500 metros. Em 2008, fui segundo colocado no Estadual, na faixa de 45 a 50 anos. Ganhei medalha e certificado!", lembra.
Hoje, trocou os 800 metros por meias maratonas. Lembra que em 2009 terminou uma em 1h38. "Já fiz tempo mais baixo também, mas não me lembro qual nem onde", comenta ele, que pensa em tentar a maratona um dia. "Às vezes passo 2 horas correndo em treino, é só aumentar um pouco mais. Acho que dá para fazer uma maratona em três horas e pouco."
Sua mãe, Dona Júlia, continua em Recife, mas de vez em quando vem visitar os filhos no Rio. E fica orgulhosa ao ver José. "Corro porque gosto, porque dá mais disposição para trabalhar. Ando e vendo sorvete o dia todo e não fico cansado, é a corrida que faz isso", afirma o atleta.