Título original: Il Cimitero di Praga
Ano da edição original: 2011
Autor: Umberto Eco
Tradução: Jorge Vaz de Carvalho
Editora: Gradiva
"Durante o século XIX, entre Turim, Palermo e Paris, encontramos uma satanista histérica, um abade que morre duas vezes, alguns cadáveres num esgoto parisiense, um garibaldino que se chamava Ippolito Nievo, desaparecido no mar nas proximidades de Stromboli, o falso bordereau de Dreyfus para a embaixada alemã, a disseminação gradual daquela falsificação conhecida como «Os Protocolos dos Sábios de Sião» (que inspirará a Hitler os campos de extermínio), jesuítas que tramam contra maçons, maçons, carbonários e mazzinianos que estrangulam padres com as suas próprias tripas, um Garibaldi artrítico, com as pernas tortas, os planos dos serviços secretos piemontenses, franceses, prussianos e russos, os massacres numa Paris da Comuna em que se comem os ratos, golpes de punhal, horrendas e fétidas reuniões por parte de criminosos que, entre vapores de absinto, planeiam explosões e revoltas de rua, barbas falsas, falsos notários testamentos enganosos, irmandades diabólicas e missas negras. Óptimo material para um romance-folhetim de estilo oitocentista, para mais, ilustrado como os feuilletons daquela época. Há aqui com que contentar o pior dos leitores. Salvo um pormenor. Excepto o protagonista, todos os outros personagens deste romance existiram realmente e fizeram aquilo que fazem. E até o protagonista faz coisas que foram verdadeiramente feitas, salvo que faz muitas que provavelmente tiveram autores diferentes. Mas quando alguém se movimenta entre serviços secretos, agentes duplos, oficiais traidores e eclesiásticos pecadores, tudo pode acontecer. Até o único personagem inventado desta história ser o mais verdadeiro de todos, e se assemelhar muitíssimo a outros que estão ainda entre nós."
Julgo que ainda não tinha comentado aqui nenhum dos livros que li do
Umberto Eco, acho que os li todos antes da criação do
Quero Um Livro. Ficam, no entanto a saber que Umberto Eco é um dos meus autores preferidos e só não o leio mais porque... bem porque os livros dele são tão cheios de cultura, de história e de conhecimento que devem ser "tomados" em doses controladas! ;) Com isto não quero dizer que os seus livros são pretensiosos e intelectuais, nada disso. Não conheço nenhum escritor que faça o que Umberto Eco faz com tanta eficácia, a linha que separa o que realmente aconteceu daquilo que é puramente ficcionado é tão ténue mas tão magistralmente mantida que as lições de história transformam-se em puro prazer e alimento para o cérebro. :)
Feito o elogio a quem de direito, passemos ao que realmente interessa, o livro,
O Cemitério de Praga.
Começo por dizer que não é um livro fácil de seguir, acho que nunca senti tanta necessidade de tomar notas, de escrever uns lembretes, para conseguir manter todas as personagens e o seu papel na história, bem vivas na memória. Tem imensas referências literárias e históricas e, como é dito na sinopse e no fim do livro, todas as personagens são reais, excepto Simone Simonini o nosso protagonista rabugento, o que torna o livro ainda mais envolvente.
Como desconhecia a grande maioria dos nomes referidos e sei muito pouco sobre a história europeia do século XIX, para mim, o livro foi sempre encarado como um romance, embora algumas das referências e personagens não me fossem totalmente desconhecidas, não sou assim tão ignorante. :p No fim senti-me na obrigação de pesquisar todos aqueles nomes e redescobrir a história que tinha acabado de ler.
E de que história estamos a falar?
Os Protocolos dos Sábios de Sião são uma obra, publicada nos finais do século XIX, por
Serge Nilus, na Rússia onde, supostamente é denunciada uma mega conspiração dos Judeus para acabarem com os cristãos e tomarem conta do mundo. Este livro, foi durante uns anos tido como autêntico, tendo sido revelada a sua verdadeira natureza uns anos antes de Hitler começar a sua longa caminhada na conquista do mundo, facto que não o impediu de o usar como justificação para o horror que levou a cabo nos anos que se seguiram.
O Cemitério de Praga tem como fio condutor este livro, desde a sua invenção até à sua publicação. Paralelamente vamos acompanhando, na primeira fila, acontecimentos importantes na história da Europa.
É Simone Simonini quem nos empresta os olhos para assistir a tudo isto, ou não fosse ele o nosso protagonista, um italiano que se muda para Paris e que ao longo de toda a história colabora com os serviços secretos de Itália, França, Rússia e Alemanha. A sua espantosa capacidade para falsificar todo o tipo de documentos, associada a uma prodigiosa imaginação para conspirar, chamou naturalmente a atenção destas entidades.
Em Itália, terra natal de Simonini, este vive de perto os conflitos que levaram à
unificação de Itália, privando com
Giuseppe Garibaldi e
Giuseppe Mazzini, membros da
Carbonária e acérrimos defensores de uma República Italiana com todos os seus territórios unificados. É neste período conturbado que Simonini inicia os seus trabalhos para Bianco, um agente dos serviços secretos italianos e que introduz o nosso protagonista no fantástico mundo dos espiões. E é durante estes anos que surge a suposta acta de um encontro secreto num Cemitério em Praga, onde um grupo de judeus, de forma conspiratória, planeiam tomar as rédeas do mundo. Este encontro nunca existiu (que o saibamos) e o autor da magnífica falsificação só podia ser Simonini. Uns anos mais tarde quando, a criatividade, por vezes demasiado independente, começa a incomodar os italianos, e este é enviado para França, onde inicia uma estreita colaboração com Lagrange, um importante membro dos serviços secretos franceses. França torna-se a sua pátria e é com os serviços secretos franceses que ganha a sua fama de espião e faz a sua fortuna. França é caracterizada, por Umberto Eco, como um país que não se envolvia directamente nos conflitos e nas tensões que estalavam junto às suas fronteiras. Era o país da igualdade e fraternidade, no entanto os serviços secretos franceses trabalhavam que se fartavam para influenciar e garantir alguns acontecimentos políticos. O único desgosto de Simonini em França era o facto de estes não estarem interessados em diminuir a influência dos judeus, são demasiado importantes para que possam ser tocados. Depressa Simonini descobre que, fora das fronteiras francesas e sem o apoio oficial da equipa de Lagrange, nada o impede de prosseguir com a sua missão, uma vez que os russos e, mais tarde os alemães, começam a sentir-se incomodados com os hebreus. Durante todo livro, a sua história sobre o Cemitério de Praga é reinventada e transforma-se naquilo que Simonini chamava carinhosamente os seus Protocolos do Cemitério de Praga, que para o fim deixam de ser seus e são renomeados como
Os Protocolos dos Sábios de Sião.
É impossível referir tudo aquilo de que fala o livro, porque paralelamente a tudo isto, conhecemos de perto uma personagem infame,
Léo Taxil o rosto de um dos maiores
embustes da época, por ter escrito e publicado como verdadeiros, os relatos de Diana
Vaughan, uma satanista que participava em reuniões maçónicas. Com o pretexto de descredibilizar os maçons, algo que interessava muito à igreja católica, Taxil, tendo como mentor Simonini, leva a cabo uma das farsas mais bem conseguidas da época.
Simonini cruza-se ainda com
Drumont,
Dumas e outras figuras mais ou menos conhecidas e mais ou menos importantes para a história.
A forma como a história nos é contada é muito original, pois chega-nos em forma de diário, escrito a duas mãos. A grande maioria é escrita por um Simonini confuso que parece ter apagado da memória alguns acontecimentos importantes. É neste estado de confusão mental que Simonini decide escrever, com o objectivo de recuperar pedaços da sua vida que desapareceram. No meio dos escritos de Simonini, surge de quando em vez um intruso, Dalla Picolla que, funciona um pouco como a voz da consciência de Simonini. Se não fossem as intrusões de Dalla Picolla, talvez nunca conhecessemos o lado mais negro do nosso protagonista.
Mas quem é Dalla Picolla?
Dalla Picolla e Simonini são vizinhos mas nenhum dos dois se recorda de alguma vez se terem cruzado, no entanto partilham alguns conhecimentos e segredos... Como é que isto é possível? É a pergunta que nos acompanha todo o livro.
Enfim, não é um livro muito fácil de ler, mas que vale cada segundo que se gasta com ele. Vale pelo que acabamos por aprender com ele, vale pela lição de história e por nos recordar que, como sociedade temos de facto uma memória muito curta e extremamente selectiva. Somos perigosamente tendenciosos relativamente ao que, e em quem escolhemos acreditar e seguir. Só assim se percebe que textos republicados em diversas alturas, como sendo originais e actuais, nunca tenham sido postos em causa. E não o foram porque se limitavam a expressar aquilo que, secretamente ou não, a maioria pensava.
É um livro que vale a pena pelo que conta mas também porque Umberto Eco é divertido e os seus protagonistas tendem a ser inesquecíveis! O
Baudolino, depois de estes anos todos, ainda me desenha um sorriso nos lábios. :)
Gostei muito e recomendo, ressalvando que pessoas religiosamente menos tolerantes podem sentir-se de alguma forma, atacadas.
Boas leituras!
Excertos:
"- Dás-te conta, rapaz - dizia -, de que as leis daquele Siccardi aboliram os denominados privilégios do clero? Porquê abolir o direito de asilo nos lugares sagrados? Porventura uma igreja tem menos direitos do que uma gendarmaria? Porquê abolir o tribunal eclesiástico para religiosos acusados de delitos comuns? A Igreja não tem porventura direito de julgar os seus? Porquê abolir a censura religiosa preventiva sobre as publicações? Porventura agora cada um pode dizer aquilo que lhe agrada. sem moderação e sem respeito pela fé e pela moral? (...) E agora chegámos à supressão das ordens mendicantes e contemplativas. quase seis mil religiosos. O Estado confisca-lhes os bens e diz que servirão para pagamento das côngruas aos párocos, mas, se juntares todos o bens destas ordens, atinges uma quantia que é dez... que digo eu!... cem vezes mais do que todas as côngruas do reino, e o Governo gastará esse dinheiro na escola pública, onde se ensinará aquilo que não serve aos humildes ou há-de servir-lhes para calcetar os guetos! E tudo sob a divisa do movimento «Igreja livre em Estado livre», lá onde quem é verdadeiramente livre de prevaricar é o Estado. A verdadeira liberdade é o direito do homem de seguir a lei de Deus, de merecer o paraíso ou o inferno. Ora, em vez disso, entende-se por liberdade a possibilidade de escolher as crenças e as opiniões que mais te agradam, em que tanto vale uma como outra; é igual para o Estado que tu sejas maçom, cristão, judeu ou sequaz do Grão-Turco. É desse modo que nos tornamos indiferentes à Verdade."
"Alguém disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas: quem não tem princípios morais envolve-se habitualmente numa bandeira, e os bastardos remetem-se sempre para a pureza da sua raça. A identidade nacional é o último recurso dos deserdados. Ora, o sentido da identidade funda-se no ódio, no ódio por quem não é idêntico. É necessário cultivar o ódio como paixão civil. O inimigo é o amigo dos povos. Faz falta sempre alguém a quem odiar para nos sentirmos justificados na própria miséria. O ódio é a verdadeira paixão primordial. É o amor que é uma situação anómala. Por isso, Cristo foi morto: falava contra natura. Não se ama alguém para toda a vida; dessa esperança impossível nascem o adultério, o matricídio, a traição do amigo... Por contrário, pode-se odiar alguém durante toda a vida. Desde que esteja sempre lá, para reacender o nosso ódio. O ódio aquece o coração."