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sábado, 22 de janeiro de 2011

No mundo da letras


Vem à livraria nas horas de maior movimento, mas isso, já se sabe, é de propósito: facilita-lhe o trabalho.

Rouba livros. Faz isso há muitos anos, desde a infância, praticamente. Começou roubando um texto escolar que precisava para o colégio: foi tão fácil que gostou; e passou a roubar romances de aventura, livros de ficção científica, textos sobre arte, política, ciência, economia. Aperfeiçoou tanto a técnica que chegava a furtar quatro, cinco livros de uma vez. Roubou livros em todas as cidades por onde passou. Em Londres, uma vez, quase o pegaram; um incidente que recorda com divertida emoção.

No início, lia os livros que roubava. Depois, a leitura deixou de lhe interessar. A coisa era roubar por roubar, por amor à arte; dava os livros de presente ou simplesmente os jogava fora. Mas cada vez tinha menos tempo para ir às livrarias; os negócios o absorviam demais. Além disso, não podia, como empresário, correr o risco de um flagrante. Um problema - que ele resolveu como resolve todos os problemas, com argúcia, com arrojo, com imaginação.

Zás! Acabou de surrupiar um. Nada de espetacular nessa operação: simplesmente pegou um pequeno livro e o enfiou no bolso. Olha para os lados; aparentemente ninguém notou nada. Cumprimenta-me e se vai.

Um minuto depois retorna. Como é que me saí, pergunta, não sem ansiedade. Perfeito, respondo, e ele sorri, agradecido. O que me deixa satisfeito; elogiá-lo é não apenas um ato de compaixão, é também uma medida de prudência. Afinal, ele é o dono da livraria.


Moacyr Scliar

Melhora logo !


sábado, 11 de setembro de 2010

Qual independência ?


O brado de dom Pedro I no 7 de setembro sintetiza um desafio que também aparece em lemas, em canções, em hinos, em poemas: ou a liberdade ou a luta, luta encarniçada, mortal. É algo universal: se vocês entrarem no Google e digitarem a (aproximada) versão em inglês desta expressão, “freedom or death”, aparecerão nada menos de 68 milhões de referências, que incluem o título de um livro do grego Nikos Kazantzakis (autor de Zorba, o Grego), o nome de uma banda, e a inscrição de uma camiseta apreendida no aeroporto de Londres sob a alegação de que incitava ao terrorismo. “Independência ou morte” expressa o indignado desejo coletivo de um país, de um grupo humano; no caso de dom Pedro havia também o drama pessoal, desencadeado pela carta recebida junto ao Ipiranga, em que o pai lhe ordena que retorne a Portugal. O príncipe era muito jovem e tinha emoções à flor da pele – suas paixões eram célebres. Certamente, e quem sabe movido por um sentimento edipiano, tomou a determinação paterna como medida opressora, tirânica. E, aí, sacou a espada e soltou seu brado, aclamado entusiasticamente pela comitiva; o povo, como de costume, não estava presente.

Surge a pergunta: o Brasil estava, de fato, independente? Aparentemente, sim: os laços com a Coroa portuguesa haviam sido cortados (ironicamente o imperador, como Pedro IV, assumiria anos mais tarde o trono de Portugal). Mas o domínio político luso havia sido apenas substituído pelo mais sutil domínio britânico, que se exercia no plano econômico; os produtos ingleses vendidos no Brasil custavam muito caro; declinou a produção de artigos de exportação, cacau, algodão, café; a dívida externa cresceu e também a inflação. A oposição a dom Pedro aumentava e ele teve de deixar o trono.

Isto nos faz pensar que há duas formas de proclamar a independência. Uma é a forma súbita, o gesto ousado, destemido: dê-me a independência ou lutarei por ela até a morte, se for preciso. A cena do Ipiranga tem correspondência em muitos lugares: na casa, quando o filho diz aos pais que não quer mais receber ordens; no emprego, quando o empregado diz desaforos para o patrão.

O gesto é coisa de minutos: o tempo de ler a carta, de puxar a espada de soltar o brado. A vida, não. A vida é lenta, e feita mais de rotinas do que de rupturas. E é ao longo da vida que temos de, aos poucos, nos tornar independentes. Isso é feito sem arroubos, sem gritarias; depende basicamente de um processo de autoconhecimento, pelo qual identificamos, em nós mesmos, aqueles mecanismos que nos tornam dependentes de outros, dos pais, dos cônjuges, dos chefes. A independência ocorre num 7 de setembro, mas também num 8, num 9, num 10, em muitos meses, em muitos anos. E ela surge em silêncio, às vezes acompanhada de lágrimas, às vezes de sorrisos. A independência tarda. Porém, ao fim e ao cabo, é sempre gloriosa .


Moacyr Scliar
ZH 07/09/2010

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Leituras


NO MUNDO DAS LETRAS


Vem à livraria nas horas de maior movimento, mas isso, já se sabe, é de propósito: facilita-lhe o trabalho. Rouba livros. Faz isso há muitos anos, desde a infância, praticamente. Começou roubando um texto escolar que precisava para o colégio: foi tão fácil que gostou; e passou a roubar romances de aventura, livros de ficção científica, textos sobre arte, política, ciência, economia. Aperfeiçoou tanto a técnica que chegava a furtar quatro, cinco livros de uma vez. Roubou livros em todas as cidades por onde passou. Em Londres, uma vez, quase o pegaram; um incidente que recorda com divertida emoção.



No início, lia os livros que roubava. Depois, a leitura deixou de lhe interessar. A coisa era roubar por roubar, por amor à arte; dava os livros de presente ou simplesmente os jogava fora. Mas cada vez tinha menos tempo para ir às livrarias; os negócios o absorviam demais. Além disso, não podia, como empresário, correr o risco de um flagrante. Um problema - que ele resolveu como resolve todos os problemas, com argúcia, com arrojo, com imaginação. Zás! Acabou de surrupiar um. Nada de espetacular nessa operação: simplesmente pegou um pequeno livro e o enfiou no bolso. Olha para os lados; aparentemente ninguém notou nada. Cumprimenta-me e se vai.



Um minuto depois retorna. Como é que me saí, pergunta, não sem ansiedade. Perfeito, respondo, e ele sorri, agradecido. O que me deixa satisfeito; elogiá-lo é não apenas um ato de compaixão, é também uma medida de prudência. Afinal, ele é o dono da livraria.


Moacyr Scliar