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domingo, 23 de fevereiro de 2014

A canção mais recente



O poeta
com a sua lanterna
mágica está sempre
no começo das coisas.
É como a água, eternamente matutina.

Pouco importa a noite
lhe ponha a pena
do silêncio na asa.
Ele tem a manhã
em tudo quanto faça.
Alem disso o amanhã
nunca deixará de ter pássaros.


Cassiano ricardo

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

A Orquídea




A orquídea parece
uma flor viva, uma
boca, e nos assusta.
Flor aracnídea.

Vagamente humana,
boca, embora feita
de inocentes pétalas,
já supõe perfídia.

Já supõe palavra
embora muda.
Já supõe insídia.

Que estará dizendo
o lábio quase humano
da orquídea?


Cassiano Ricardo

sábado, 30 de novembro de 2013

Relógio



Diante de coisa tão doída
conservemo-nos serenos.

Cada minuto de vida
nunca é mais, é sempre menos.

Ser é apenas uma face
do não ser, e não do ser.

Desde o instante em que se nasce
já se começa a morrer.

domingo, 3 de novembro de 2013

Campanário de São José







Quem
não
tem
seu

bem
que
não
vem?

Ou
vem
mas

em
vão?
Quem?



Cassiano Ricardo

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Flechas contra o muro


Pra se poder viver

compra-se o mundo em que

se vive.

Como quem compra um objeto

secreto, mas visível.

Compram-se os seus problemas

sem solução.

Quem nasce no mundo de hoje,

compra, sem o querer,

uma pomba.

Com um alfinete feérico

na cabeça.


Uma pomba extremamente vizinha

de bomba.

Uma e outra têm asas.

Uma e outra são limpas.

Ambas são irmãs pelo som.

Um simples equívoco

de fonemas ou de telefonemas

entre os dois hemisférios

uma troca de p por b

e o mundo explodirá

em nossa mão

(p) bomba.


Cassiano Ricardo

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Reis Magos


E para ouvir sua história

vieram três reis encantados:

um vermelho, o que lhe trouxe

a manhã como presente;

outro branco, o que lhe havia

feito presente do dia;

outro preto, finalmente,

rosto cortado de açoite,

O que lhe trouxera a Noite ...


Cassiano Ricardo

terça-feira, 29 de junho de 2010

Queixa antiga


É uma dor que me dói muito longe...
Dor antiga, separada do corpo.

É uma dor que me dói não sei onde,
meio física, metade celeste.

Um tanto minha, outro tanto da terra.

Veja o galho cortado a uma fronde
e que ainda dá flores sentidas
e que assim à sua árvore responde.

Seu futuro parece o meu passado:
minhas longas raízes ficaram
no chão duro de onde fui arrancado.

(No chão duro onde arroios felizes
ainda cantam pelos vãos do passado).

Cassino Ricardo

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Fuga em azul menor


O meu rosto de terra
ficará aqui mesmo
no mar ou no horizonte.
Ficará defronte
à casa onde morei.
Mas o meu rosto azul,
O meu rosto de viagem,
esse, irá pra onde irei.

Todo o mundo físico
que gorjeia lá fora
não me procure agora.
Embarquei numa nuvem
por um vão de janela
dos meus cinco sentidos.
E que adianta a alegria
dizer que estou presente
com o meu rosto de terra
se não estou em casa?

Inútil insistência.
Cortei em mim a cauda
das formas e das cores.
(A abstração é uma forma
de se inventar a ausência)
e estou longe de mim
nesta viagem abstrata
sem horizonte e fim.

Um dia voltarei
qual pássaro marítimo,
numa tarde bem mansa
à hora do sol posto.
Então, loura criança,
Ouvirás o meu ritmo
e me perguntarás:
quem és tu, pobre ser?
Mas, eu vim de tão longe
e tão azul de rosto
que não me podes ver.

A graça de quem mora
no país da ausência
certo consiste nisto:
ficar azul de rosto
pra não poder ser visto.

Cassiano Ricardo

Outro Epigrama


Se perdi a inocência
para ganhar o pão de cada dia,
com o suor do próprio rosto
lamento apenas tenha sido tão escassa
a inocência de que eu era servido.

Para que tão facilmente eu a houvesse perdido
e o pão de cada dia, em conseqüência,
me seja, agora, uma simples migalha.

Por que não foi maior minha inocência?


Cassiano Ricardo

terça-feira, 18 de maio de 2010

Poética



Que é a Poesia?

uma ilha
cercada
de palavras
por todos
os lados.


Que é o Poeta?

um homem
que trabalha o poema
com o suor do seu rosto.
Um homem
que tem fome
como qualquer outro
homem.


Cassiano Ricardo