Olá pessoal, tudo bem? Hoje trago a resenha do livro "Ghost Rider: A estrada da cura", escrito pelo canadense Neil Peart e publicado no Brasil pela Editora
Belas-Letras.
Neil Peart é baterista e compositor na banda de rock Rush
(que eu não conhecia até então). No livro, através de suas lembranças, trechos de seu diário de viajem e de cartas que ele escreveu para amigos e familiares, ele conta o que vivenciou e como sobreviveu no final dos anos 90. Sua jovem e única filha, Selena, faleceu num acidente de carro. Poucos meses depois, Jackie, sua esposa, ficou doente e também faleceu.
Neil perdeu as pessoas que mais amava num curto espaço de tempo. Como e por quê ele continuaria vivendo? Como Neil diz em seu livro, se ele se embebedasse ou morresse de overdose, quem o condenaria?
"Logo no início desse duplo pesadelo, lembro de ter pensado: 'Como alguém sobrevive a uma coisa dessas? E, se sobrevive, em que estado esse alguém ressurge do outro lado?'
Bem, eu não sei, mas vou descobrir, porque estou protegido por um pequeno reflexo, característico de minha natureza: 'Alguma coisa vai acontecer'." (página 111)
Bem lá no fundo, Neil tinha uma pontinha de esperança de que alguma coisa boa ainda podia existir; sentimento que, creio eu, esteja presente na vida de muitas pessoas que passam por momentos difíceis
(esteve presente na minha).
Neil decidiu viajar, cair na estrada, ir para lugares onde ele pudesse ficar longe do passado. Em anos anteriores, ele já havia feito algumas viagens de moto ou bicicleta e isso sempre lhe fazia bem, parecia a única coisa que ele ainda tinha vontade de fazer.
Montou em sua BMW R1100GS e partiu rumo ao Alasca, o único estado dos Estados Unidos que ele ainda não conhecia
(e já comecei a aprender, ao contrário do que eu imaginava, no Alasca não tem só gelo e esquimós morando em iglus).
Depois do Alasca, viajou pelo Canadá, Estados Unidos, México e veio até a América Central. Nunca ficando mais do que alguns dias em um mesmo lugar, passando por diversas cidades (algumas ele já havia visitado antes e tinha recordações delas) e paisagens. Neil precisava estar sempre em movimento, para que suas dores não conseguissem imobilizá-lo.
"Há pessoas que realmente dizem me invejar, embora a maioria seja de estranhos, e duvido que você teria sido tão limitado ou egoísta a ponto de dizer uma coisa dessa. Isto é muito mais liberdade do que qualquer um jamais deveria desejar. Isto é mais com um 'voo desesperado', e um outro nome que tenho para mim mesmo é 'Ghost Rider'. Sou um fantasma, carrego alguns fantasmas comigo e viajo por um mundo que não é muito real. Por enquanto fico bem, contanto que eu me mantenha em movimento..." (página 194)
No livro, Neil relata os cenários pelos quais passou (com riqueza de detalhes na maioria das vezes), as histórias de moradores ilustres e curiosidades ou relembra fatos que ele viveu naquelas cidades em suas turnês com o Rush. Neil fala também sobre os perrengues da viagem: os tombos, as hospedagens e restaurantes ruins, os empecilhos de se viajar fora da temporada.
"Assistir a um filme ou ler um romance pode deixá-lo triste ou amedrontado, até mesmo inspirado, mas no final daquela experiência nada realmente aconteceu na sua vida. As experiências da vida real não são assim, como eu certamente acabei aprendendo. A imagem fantasiosa de um espírito livre vagando sem cuidado ou esforço por algum filme em IMAX de paisagem deslumbrante não apenas ignorava as possibilidades mais tenebrosas (pane, acidente, ferimento, morte), mas também omitia meros cortadores de barato como mau tempo, indigestão, dor de dente ou diesel no seu tanque de gasolina. Qualquer coisa podia acontecer, e o cenário nunca é 'neutro'." (página 59)
Neil não fez de "Ghost Rider: A estrada da cura" um livro triste ou cheio de lamentações, apesar do tamanho de sua dor e de elas estarem presentes de forma muito sincera e compreensível ao longo da história.
"Às vezes, eu podia direcionar meus pensamentos para longe de certos lugares, e até mesmo me prevenir conscientemente para não me sentir triste ou desanimado. Às vezes, eu conseguia fazer isso... Mas não o tempo todo." (página 349)
"(...) não se pode dizer a si mesmo como se sentir." (página 384)
Tem muitas partes divertidas e pensamentos interessantes e inteligentes. Além de Neil falar sobre vários autores e livros que ele já havia lido ou lia no decorrer da viajem (deu vontade de anotar cada um e procurar para ler depois).
"Steven, Shelly e eu nos inscrevemos para uma caminhada noturna após o jantar. Depois de olhar as fotos da trilha próxima do hotel feitas com uma câmera equipada com dispositivo infravermelho - de jaguares, onças-pintadas e esse tipo de coisa - estou torcendo para que a gente depare com, bem, talvez com algumas formigas carregadeiras..." (página 255)
"Percebi que era completamente errado avaliar as pessoas de acordo com a raça, porque era claro que a cultura era o divisor real entre as pessoas. Dado tempo suficiente, uma geração ou duas, todos nós nos tornamos o 'Outro'..." (página 44)
Inicialmente, tive receio de não saber como analisar o livro, afinal, é uma história real. Diferente da ficção, não dá pra dizer, por exemplo, que faltou isso ou aquilo, ou que o desfecho poderia ser diferente. É a vida de uma pessoa contada por ela mesma.
"Ghost Rider: A estrada da cura" me confirmou que a realidade pode ter muito em comum com os livros de ficção. Quando parecia que nada mais poderia acontecer de ruim para o Neil, aconteceu! E fez com que ele mudasse os poucos planos que tinha (spoiler: um problema que impediu que seu melhor amigo o acompanhasse na viagem). Mas no fim, talvez se esse acontecimento não tivesse ocorrido, ele não teria sentido a necessidade de contar imediatamente sobre as coisas e os lugares por onde ia passando para alguém; esses registros certamente fariam muita falta no resultado final do livro.
Pobre Brutus! (Brutus é o nome do melhor amigo de Neil.)
O livro traz várias cartas que Neil escreveu para amigos e familiares, muitas vezes ele precisava contar um mesmo acontecimento para várias pessoas em cartas diferentes, o que temi que poderia ser chato, mas não foi. Cada carta tinha um destinatário e uma completava a outra para que fosse possível compreender o que Neil sentia e vivia de uma forma mais ampla.
"Ghost Rider: A estrada da cura" é uma leitura que leva tempo, um livro para se ler aos poucos (são 528 páginas), são muitos lugares e histórias e se você ler rápido demais vai acabar perdendo a graça. Em compensação, é um livro que vai valer cada centavo que você pagar por ele; um companheiro para vários dias ou semanas. Foi meu companheiro por dois meses, já que eu interrompi a leitura inúmeras vezes (primeiro semestre na faculdade me deixando louca, não fosse isso, teria conseguido ler em algumas semanas) mas sempre que retomava a leitura sentia como se não tivesse perdido o
fio da meada.
Um fato curioso (para mim): sempre que minha sobrinha (ela tem três anos) me vê lendo, pede para eu ler em voz alta. Raramente ela ouve mais do que algumas linhas e já sai de perto. Com "Ghost Rider: A estrada da cura" ela ficou um tempão do meu lado, me ouvindo ler. Só saiu quando terminamos o capítulo. Talvez tenha sido pelas descrições dos cenários, não sei ao certo, só sei que não quero esquecer.
Foi o primeiro livro da Belas-Letras que tive em mãos e preciso destacar que a tradução (um trabalho de Candice Soldatelli) e a revisão me pareceram ótimas! Gostei da capa (além de bonita, aparentemente resistente para um livro grande), das folhas amareladas, do ótimo tamanho das margens, letras e espaçamento.
Ah, o livro é dividido em duas partes e subdividido em capítulos; sempre com um trecho e a tradução (gostei disso) de uma música do Rush no início e no final de cada capítulo.
Vi que alguns leitores gostariam que o livro tivesse um mapa para que fosse possível visualizar melhor a rota feita por Neil Peart, mas acho que são tantos lugares que o mapa acabaria ficando incompreensível.
No fim das contas, valeu muito a pena ler "Ghost Rider: A estrada da cura". É um livro que recomendo para qualquer leitor (desde que ele se lembre que é uma história real), especialmente para quem: é fã do Rush ou
só tem curiosidade sobre o mundo da música; para quem gosta de livros de viagem, de motos ou quer conhecer um pouco das estradas da América ou para quem perdeu uma pessoa querida.
"John Steinbeck uma vez escreveu que às vezes a melhor coisa que se pode fazer por alguém é permitir que essa pessoa faça algo por você, e aprendi que isso era a mais pura verdade." (página 49)
"Bem, se há uma coisa que aprendi com as reviravoltas do mundo é que é simplesmente inútil tentar controlar esta montanha-russa maluca chamada Vida, então tudo que podemos fazer é aguentar firme." (página 399)
"Ao mesmo tempo, assim como havia acontecido durante a minha jornada pela Estrada da Cura, ao fim eu acabei alcançando certo estado de 'Aceitação', mesmo que fosse uma aceitação atormentada. Também me pareceu que eu estava adquirindo um senso de aceitação sobre o mundo do jeito que ele era. E, como sempre, meus pensamento, minhas viagens, minhas leituras e minha escrita pareciam estar todos interligados." (página 472)
Detalhes: 528 páginas, ISBN: 9788581741536,
Skoob,
release,
leia o primeiro capítulo.
Onde comprar online: site da editora,
Saraiva,
Submarino.
Ouvindo as músicas do Rush após terminar a leitura, sem perceber, fico tentando distinguir o som da bateria do Neil Peart.
Uma boa notícia: a Belas-Letras vai publicar mais quatro livros do Neil Peart, o primeiro ("Clockwork Angels", uma ficção de Kevin J. Anderson baseado nas composições do Rush) sai em novembro deste ano (
leia a notícia completa aqui).
Espero que vocês tenham gostado da resenha (sei que ficou grande, mas é tanta coisa pra registrar sobre esse livro que não tinha outro jeito; se você leu tudo até o final, muito obrigada!).
Vocês já conheciam o Neil Peart, sua história, ou o Rush?
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