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Quaresma XXXVI

Apenas porque isto é, sem dar muito nas vistas...

«Nesse mesmo momento, o suor amontoado nas sobrancelhas correu-me de súbito pelas pálpebras abaixo o cobriu-as com um véu morno e espesso. Os meus olhos ficaram cegos, por detrás desta cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas as pancadas do sol na testa e, indistintamente, a espada de fogo brotou da navalha, sempre diante de mim. Esta espada a arder corroía-me as pestanas e penetrava-me nos olhos doridos. Foi então que tudo vacilou. O mar enviou-me um sopro espesso e fervente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando tombar uma chuva de fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão que segurava o revólver. O gatilho cedeu, toquei na superfície lisa da coronha e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo principiou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Voltei então a disparar mais quatro vezes contra um corpo inerte, onde as balas se enterravam sem se dar por isso. E era como se batesse quatro breves pancadas, à porta da desgraça.»

... sem cânones de serviço, sem eu saber explicar bem porquê, um dos momentos mais densos da literatura de todos os tempos. A. Camus, em ‘O Estrangeiro’, «seco e nítido« como diz Sartre na Introdução.
E, apesar de não ter cão, «espero que os cães não ladrem esta noite. Julgo sempre que é o meu»
Quaresma XXXI’’

Mas afinal havia este...

«Le manque de goût de Dostoievski, son commerce monotone avec des êtres souffrant de complexes préfreudiens, sa façon de se complaire dans les mésaventures tragiques de la dignité humaine, voilá qui est difficile à admirer. Je n’aime pas cet expédient auquel ont recours ses personnages et qui consiste à 'paver de péchés la voi qui mène à Jesus'»

...o Nabokov, nas suas ‘Littératures II’ ( ed Fayard, pg 158). Mas relaxemos porque este tipo está para a literatura como o Guterres para as percentagens do PIB.
Quaresma XXXI’

Isto sim...

«Em Dostoievski (...) quando as personagens desejam qualquer coisa, preferem ser repudiadas a ser exaltadas. (...) No desejo já gozam o prazer; no prazer sentem já o fastio; no acto saboreiam o arrependimento, e(..) no arrependimento sentem de novo a acção. (...) Mas o que é mais surpreendente é a análise do amor. (...) Para ele o amor não é um estado de felicidade, um acordo, mas uma luta sublimada. (...) Quando as personagens de Dostoievski se amam com um amor retribuído, não encontram a calma; nunca são tão agitadas pelas contradições do seu ser como no momento em que o amor corresponde ao amor. (...) O fenómeno do amor duplo, tão complicado nos outros romancistas, é banal, natural em Dostoievski»

... são amores para homens; como bem descreve Stefan Zweig no seu ‘Três mestres- Balzac-Dickens-Dostoievski’ (ed. Civilização, 1976, pg 209 e segs). E por isso desconfiem sempre das reais capacidades de um homem seguro num amor correspondido.
Quaresma XXXI

E aparentemente sem pozinhos de cheiro...

«A desordem é geral. E geral também a inquietação. O que tortura esses seres não são a doença ou o temor do dia seguinte: é Deus. Por gentileza do seu autor, estão libertos das pequenas arrelias e preocupações quotidianas a fim de serem colocados, nus, em face do Mistério. A sua vida activa corresponde à nossa vida profunda.
Eles são nós mesmos observados do interior. Graças a esse método de ‘tomada de vistas’, o que está mais perto do operador é o tormento mais inconsciente, o que dele está mais afastado é a carne, a roupa, a luz do dia. (...) E, quando nos mostram essa prova de nós mesmos, não nos reconhecemos melhor do que numa radiografia»

... é este o Dostoievski que H. Troyat descreve no capítulo da sua Biografia ( ed Lello & irmão, pg 377) dedicado aos ‘Irmãos Karamanzov’, no qual o escritor faria a tal conciliação dos inconciliáveis: «o fantástico e o real».