Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

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sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Canção do dia(4) : " Arrependimento " - Sam the Kid(2002)

« Se pudesse viver novamente, na próxima vida tentaria cometer mais erros. »


Jorge Luís Borges

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O disco

Sou lenhador. O nome não importa. A cabana onde nasci e em breve hei-de morrer fica na orla do bosque. O bosque, ao que dizem, estende-se até ao mar que rodeia a terra e por ele fora existem casas de madeira iguais à minha. Não sei; nunca as vi. Nem mesmo o outro lado do bosque. Quando éramos pequenos, o meu irmão mais velho fez-me jurar que arrasaríamos ambos o bosque inteiro, até não restar uma só árvore. O meu irmão morreu e agora procuro e continuo a procurar uma coisa diferente. Corre para oeste um riacho onde sei pescar à mão. No bosque há lobos mas não me atemorizam, os lobos, e o meu machado nunca me foi infiel. Perdi a conta aos anos que tenho. Sei que são muitos. Os meus olhos já não vêem. Na aldeia, aonde agora não vou porque havia de perder-me, tenho fama de avarento. Mas o que pode ter amealhado um lenhador?
A porta da minha casa fecho-a com uma pedra para a neve não entrar. Uma tarde ouvi passos cautelosos e logo a seguir uma pancada. Abri e entrou um desconhecido. Era um homem alto e velho, envolto numa manta puída. Cruzava-lhe a cara uma cicatriz. Os anos pareciam ter-lhe dado mais autoridade do que fraqueza, mas reparei que sentia dificuldade em andar sem o apoio do bordão. Trocámos palavras de que não guardo já nenhuma ideia. Por fim, disse:
- Não tenho lar e durmo onde calha. Já corri toda a Saxónia.
Convinham à sua velhice tais palavras. O meu pai falava muito da Saxónia; agora as pessoas dizem Inglaterra.
Eu tinha pão e peixe. Durante o jantar não falámos. Começou a chover. No chão de terra instalei-lhe a enxerga com umas peles onde o meu irmão tinha morrido. Ao cair da noite adormecemos.
Quando chegou o dia, saímos de casa. A chuva terminara e a terra estava coberta de neve recente. Caiu-lhe o bordão e ordenou-me que o apanhasse.
- Por que hei-de obedecer-te? - disse eu.
Julguei-o louco. Apanhei o bordão e entreguei-lho.
Falou com uma voz muito nítida.
- Sou rei dos Secgens. Em duras batalhas conduzi-os à vitória, muitos vezes, mas quando soou a hora do destino perdi o meu reino. Chamo-me Isern e sou da estirpe de Odin.
- Não venero Odin - respondi. - Venero Cristo.
Como se não me tivesse ouvido, continuou:
- Ando pelos caminhos do desterro, mas sou o rei porque tenho o disco. Queres vê-lo?
Abriu a palma da mão que era ossuda. Nada tinha dentro. Estava vazia. E só então reparei que a conservara sempre fechada.
Olhou-me fixamente, e disse:
- Podes tocar-lhe.
Já um pouco receoso, na palma da mão pus-lhe a ponta dos meus dedos. Senti uma coisa fria e vi um brilho qualquer. Depois a mão fechou-se, de repente. Eu nada disse e o outro continuou cheio de paciência, como se estivesse a falar com uma criança.
- É de ouro? - perguntei.
- Não sei. É o disco de Odin e só tem um lado.
Cobicei aquele disco, então. se fosse meu poderia vendê-lo por uma barra de ouro e ser rei.
Disse-o àquele vagabundo, que ainda hoje odeio:
- Na cabana tenho escondida uma caixa de moedas. São de ouro e brilham tanto como este machado. Se me deres o disco, dou-te a caixa.
Respondeu teimosamente:
- Não quero.
- Então podes continuar o teu caminho - disse eu.
Voltou-me as costas. Uma só machadada na nuca chegou e sobrou para ele vacilar e cair, mas quando o fez abriu a mão e vi um brilho pelo ar. Com o machado marquei bem aquele sítio e arrastei o morto até um ribeiro que corria, muito alto. Uma vez lá, atirei-o à água.
De volta para casa procurei o disco e não o encontrei. Há anos que o procuro.

Conto de Jorge Luís Borges, incluído em " O Livro de Areia ", Trd. Aníbal Fernandes, Editorial Estampa, Colecção Livro-B, 1975

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

A seita dos trinta

O manuscrito original pode ser consultado na Biblioteca de Leiden; está em latim mas helenismos vários justificam a conjectura de o terem traduzido do grego. Segundo Leisegang, data do século quarto da era cristã. De passagem Gibbon menciona-o numa das notas do capítulo décimo quinto do seu "Decline and Fall". Reza o autor anónimo:

...« A Seita nunca foi numerosa e já são raros os seus prosélitos. Dizimados pelo ferro e pelo fogo, dormem na berma dos caminhos ou nas ruínas que a guerra perdoou, já que vedado lhes é construir habitações. Costumam andar do conhecimento geral; proponho-me agora sua doutrina e s seus hábitos. Discuti com os mestres da Seita, demoradamente, e não consegui convertê-los à Fé do Senhor.

«Atraiu logo a minha atenção a diversidade dos pareceres que têm sobre os mortos. Julgam os mas incultos que os espíritos de quem deixou esta vida se encarregam de os enterrar; outros, que à letra se não agarram, que a repreensão de Jesus: Deixa que os mortos enterrem os seus mortos condena a vaidade pomposa dos nossos ritos fúnebres.

«O conselho de vender o que temos, e dá-lo aos pobres, é rigorosamente acatado por todos; os primeiros beneficiados dão-no a outros, e estes a outros. Assim ficam suficientemente explicadas a inteligência e a nudez que os avizinha, também, do estado paradisíaco. Repetem com fervor estas palavras: Olhai os corvos, que não semeiam nem ceifam; que não têm celeiro nem guarda de celeiro, e Deus alimenta-os. Quanto mais valiosos não sois do que as aves? O texto prescreve a poupança: Se Deus veste a erva que existe hoje no campo, e amanhã é lançada ao forno, quanto mais vós, homens de pouca fé? Não procureis o que comer, o que beber; nem viveis em ansiosa perplexidade.

«O preceito: Quem olha uma mulher, para cobiçá-la, já com ela praticou o adultério no seu coração é um iniludível conselho de pureza. Muitos sectários, porém, afirmam que não existe homem debaixo dos céus isento desse olhar de cobiça deitado a uma mulher, e já todos praticámos, portanto, o adultério.

Como o desejo não é menos culposo do que o acto, podem os justos praticar sem risco o exercício da mais desbragada luxúria.

«A Seita evita as igrejas; os seus doutores pregam ao ar livre, de cima de um outeiro ou de um muro, às vezes de um barco em terra.

«O nome da Seita suscitou bem acesas conjecturas. Pretende uma delas que traduz o número a que os fiéis se reduziram, coisa irrisória mas profética pois a Seita, dada a perversa doutrina que perfilha, está predestinada a morrer. Outra fá-lo derivar da altura da arca, que era de trinta côvados;outra, falseando a astronomia, do número de noites que é a soma de cada mês lunar; outra do baptismo do Salvador; outra dos anos de Adão quando surgiu do pó vermelho. Todas são igualmente falsas. E não menos mentiroso é o catálogo de trinta divindades ou tronos, um deles Abraxas representando com cabeça de galo, braços e torso de homem, com um remate de serpente enroscada.

«Sei a Verdade mas não posso discorrer sobre a Verdade. O inapreciável dom de transmiti-la não me foi concedido. Que outros, mais felizes do que eu, salvem os sectários pela palavra. Pela palavra ou pelo fogo. Mais vale sermos executados do que matar-nos. Por isso vou limitar-me à exposição desta abominável heresia.

«O Verbo fez-se carne para ser homem entre os homens que iriam entregá-lo à cruz, e ser por Ele redimidos. Nasceu do ventre de uma mulher do povo eleito, não só para pregar o amor como sofrer o martírio.

«Era preciso que as coisas fossem inesquecíveis. A morte de um ser humano pelo ferro ou pela cicuta não bastava para ferir a imaginação dos homens até ao fim dos dias.

O Senhor preparou os factos de uma forma patética. Assim se explicam a última ceia, as palavras de Jesus que pressagiam a entrega, o repetido sinal a um dos discípulos, a benção do pão e do vinho, o suor parecido com sangue, as espadas, o beijo que atraiçoa, o Piltos que lava as mãos, a flagelação, o escárnio, os espinhos, a púrpura e o ceptro de caniço, o vinagre com fel, a Cruz no alto de uma colina, a promessa ao bom ladrão, a terra que treme e as trevas.

«A misericórdia divina, à qual tantas graças devo, permitiu-me descobrir a razão autêntica e secreta do nome da Seita. Em Kerioth, onde é verosímil que ela tenha nascido, perdura um conventículo alcunhado dos Trinta Dinheiros. Foi este o primitivo nome, que nos dá a chave. Na tragédia da Cruz - com a devida reverência o escrevo - houve actores voluntários e involuntários, todos imprescindíveis, todos fatais. Foram involuntários os sacerdotes que entregaram os dinheiros de prata, involuntária foi a plebe que escolheu Barrabás, involuntário o procurador da Judeia, involuntários foram os romanos que levantaram a Cruz do Seu martírio e pregaram os cravos e jogaram aos dados. Voluntários só dois: o Redentor e Judas. Este rejeitou as trinta moedas, que eram preço da salvação das almas, e a seguir enforcou-se. Na altura tinha trinta e três anos como o Filho do Homem. A Seita venera-os por igual e absolve os outros.

«Não existe só um culpado; convicto ou não, ninguém há que não seja executor do plano que a Sabedoria traçou. Agora todos partilham a glória.

«A minha mão não resiste a escrever outra coisa abominável. Ao cumprir a idade assinalada, deixam os iniciados que escarneçam deles e os crucifiquem no alto de um monte para seguirem o exemplo dos seus mestres.

Esta criminosa violação do quinto mandamento deve ser reprimida com o rigor sempre exigido pelas leis humanas e divinas. Que as maldições do Firmamento, que o ódio dos anjos»...

Não se encontra o fim do manuscrito.

Conto de Jorge Luís Borges, incluído no livro "O Livro de Areia", Trd. Aníbal Fernandes, Ed. Livro B, Editorial Estampa

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

A propósito de desertos...


Os dois reis e os dois labirintos


" Contam os homens dignos de fé( porém Alá sabe mais) que nos primeiros dias houve um rei das ilhas da Babilónia que reuniu os seus arquitectos e magos e lhes mandou construir um labirinto tão complexo e subtil que os varões mais prudentes não se aventuravam a entrar nele, pois a confusão e a maravilha são atitudes próprias de Deus e não dos homens. Com o correr do tempo, chegou à corte um rei dos Árabes, e o rei da Babilónia(para zombar da simplicidade do seu hóspede) fez com que ele penetrasse no labirinto, onde vagueou humilhado e confuso até ao fim da tarde. Implorou então o socorro divino e encontrou a saída. Os seus lábios não pronunciaram queixa alguma,mas disse ao rei da Babilónia que tinha na Arábia um labirinto melhor e que, se Deus quisesse, lho daria a conhecer algum dia. Depois regressou à Arábia, juntou os seus homens e fez cativo o próprio rei. Amarrou-o sobre um camelo veloz e levou-o para o deserto. Cavalgaram três dias, e disse-lhe: «Oh, rei do tempo e substância e símbolo do século, na Babilónia quiseste-me perder num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; agora o Poderoso achou por bem que eu te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros que te impeçam os passos.»
Depois, desatou-lhe as cordas e abandonou-o no meio do deserto, onde morreu de fome e de sede. A glória esteja com Aquele que não morre."

Jorge Luís Borges, Trd. Flávio José Cardoso

«Este es el relato de un viaje al infierno, el de 73 inmigrantes subsaharianos que partieron rumbo a Canarias, como otros tantos otras tantas veces, con la diferencia de que esta vez conocemos los detalles. Al menos 33 de ellos murieron en la travesía. El resto, después de días a la deriva, fueron interceptados y encarcelados por las autoridades marroquíes, que luego les han soltado en medio del desierto, según el relato de 16 inmigrantes encontrados hoy en una situación lamentable por miembros de Médicos del Mundo. Un equipo de la ONG, acompañados de miembros de la Cruz Roja y del Comité Español de Ayuda al Refugiado (CEAR), buscan desde las 16.00 a los 21 inmigrantes restantes, perdidos en una zona minada cerca el muro que Marruecos construyó en el Sáhara Occidental, no muy lejos de la frontera con Mauritania.»

Juan Carlos Galindo,08/09/08, El País Online

sábado, 7 de julho de 2007

" There are more things " - Jorge Luís Borges

" Derrubada que fora a parede divisória, a sala de jantar e a biblioteca das minhas recordações eram agora uma divisão única, grande e desmantelada, com muito poucos móveis. Não vou tentar descrevê-los, pois não estou certo de tê-los realmente visto apesar da implacável luz branca. Explicando melhor. Para vermos uma coisa é preciso compreendê-la. Um cadeirão pressupõe o corpo humano, as suas articulações e as suas partes; a tesoura, o acto de cortar. E o que dizer de um candeeiro ou de um veículo? O selvagem não pode entender a bíblia do missionário; o passageiro não vê o mesmo cordame que os homens de bordo: Se víssemos de perto o universo talvez não o percebêssemos. "


Excerto de " There are more things ", de Jorge Luís Borges, incluído em " O livro de Areia ", Ed. Editorial Estampa, colecção Livro B, trd. Aníbal Fernandes

sábado, 2 de junho de 2007

" Instantes " - Jorge Luís Borges

INSTANTES

Se eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros.

Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.

Seria mais tolo ainda do que tenho sido, na verdade bem poucas coisas levaria a sério.

Seria menos higiênico.

Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios.

Iria a mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos lentilha, teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.

Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e produtivamente cada minuto da vida, claro que tive momentos de alegria.

Mas se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos.

Porque, se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos, não percas o agora.

Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas. Se voltasse a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono.

Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças, se tivesse outra vez uma vida pela frente.

Mas já viram, tenho oitenta e cinco anos e sei que estou morrendo.

(Jorge Luís Borges)

domingo, 27 de maio de 2007

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" Muitas vezes, meu caro senhor, as aparências iludem, e quanto a pronunciar uma sentença sobre uma pessoa, o melhor é deixar que seja ela o seu próprio juiz. " Robert Walser

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