Em termos de produção, este livro contém material feito antes de Electrodomésticos Classificados, com o qual estabelece mais do que uma afinidade, quer dizer, para além da óbvia relação de pertencer à mesma mão autoral, partilha elos semânticos, iconológicos, temáticos, etc. Essa informação, porém, é um problema em si mesmo. Por um lado, trata-se de uma camada cujo acesso não é universal aos leitores, logo, é totalmente desprovida de importância para a leitura, interpretação e fruição da obra da sua parte (tal como é a liberdade de ler um livro de uma autora e não ler um outro da mesma, e isso não significar uma leitura mais pobre necessariamente). Por outro, mal ela surge, é impossível dissipá-la e não querer que estabeleça uma qualquer pressão de interpretação sobre o livro e, até retrospectivamente, sobre o outro.
Este é um objecto belíssimo, em acordeão, impresso em offset, mas baseado em trabalhos da artista em linogravura (julgamos nós), feitos sobre papel de seda, multicoloridos, com legendas escritas numa ponta de lápis afinadíssima e ainda a intervenção de carimbos. Tudo isto faz parte do arsenal material de Maria João Worm, que sempre foi não apenas pluridisciplinar mas totalmente livre, flutuante e mesclado. O resultado são 9 imagens, cada uma com um animal (nalguns casos aos pares, num só dois animais) diferente ocupado numa tarefa doméstica - passar a ferro, lavar os rodapés estender a roupa, lavar a loiça. Há ainda um texto final, que pode ser visto como uma mistura de texto explicativo e programático, pequeno poema em prosa, ou condutor de ideias. Nele, a autora (imaginemos que se trata de um exercício autobiográfico) conta como quando começou a cumprir tarefas domésticas as suas referências eram do mundo da arte, o que a levaria a ser como “Bonnard a dar banho à loiça” ou “Matisse nas molas”… O resultado é que a sua “profissão sincera era a de doméstica plástica”. Que cada animal ou par de animais seja uma projecção de uma mesma pessoa parece estar prometida na capa da publicação, onde uma mulher se encontra numa pausa do seu trabalho, rodeada dos seus animais. O que veremos no interior serão o seu sonho acordado?Este livro não é narrativo, no sentido em que não tem uma situação unívoca que se vai complexificando e desenvolvendo ao longo das páginas. Não há cruzamentos entre as personagens, nem momentos de cronologias múltiplas. Trata-se tão-somente de uma colecção de imagens díspares, todas unidas pelas tarefas domésticas e pelo facto de serem animais antropomorfizados a cumprirem-nas. Esta antropomorfização é feita de uma forma simples, sem recorrer a transformações icónicas ou figurativas sobre os animais (uma das mais usuais estratégias na ilustração infantil, por exemplo), ou manipulação das escalas, com a excepção das suas posições ou gestos. Na verdade, recorda-nos o emprego que Ladislaw Starewicz fazia com os insectos nos seus filmes de animação, cujos resultados são sempre unheimliche.
De certa forma, é como se fosse uma forma de dar corpo ou imagem a uma tradição popular portuguesa, que encontra nos “Contos da Carochinha” a sua prestação mais acabada. Seria interessante levantar daí as implicações sócio-culturais, os papéis que os animais tinham para representarem tipos da paisagem portuguesa, a distribuição de papéis ao longo de linhas sexuais, económicas e culturais, e tentar encontrar que ecos poderiam ter com estes animais domésticos. Estas imagens, e os seus brevíssimos textos explicativos, legendas quase desprovidas de qualificativos, criam uma imagem ideal do espaço doméstico, semi-ficcional semi-realista. Os pormenores gráficos, a forma como alisam a representação e tornam cada um destes espaços numa superfície (independentemente de serem trabalho de gravura, que implica sempre uma ideia de profundidade, de escavamento dessa mesma superfície lisa original, e esta questão complicar-se-á com o uso das cores), concorrem para essa imagem idealizada.Se bem que não apresente um mesmo nível de complexidade, este livro de Worm aparenta-se ainda com os emblemata clássicos, como os de Alciato. Invertendo a presença de dois textos (o mote, inscriptio, e um poema narrativo/explicativo, subscriptio) e uma imagem (pictura), a artista apresenta sempre duas imagens - uma maior, gravada, e uma menor, carimbada - e uma brevíssima frase. No entanto, a relação da imagem menor, icónica, esquemática, carimbada, não traz uma dimensão de desdobramento da primeira imagem, mas apenas uma sua simplificação, uma espécie de sublinhado, de ponto final. As imagens gravadas apresentam sempre um trabalho de duas ou três cores (não contando com o branco da não-impressão), levemente descentrados ou não respeitando os contornos dos objectos, ou até mesmo em que cada cor se comporta como uma superfície autónoma, todas elas sobrepostas sem hierarquias claras, o que leva a uma sensação de desfocamento, de perda de controlo (onde, até à década de 1970, isto seria visto como um erro de impressão, Maria João Worm explora-o na sua totalidade como mais um instrumento de expressão e criação plástica). Daí que a segunda imagem menor possa servir de contraponto decisivo.
Ao mesmo tempo, a moldura branca em torno das imagens centrais, a sua colocação no centro da página, e as letras a lápis muito bem desenhadas, fará recordar também um álbum de fotografias, no qual quem o compõem anota uma breve rememoração, para mais tarde recordar. Daí que algumas sejam meramente descritivas, sem mais - “1 Porco passa a ferro se 1 Peixe borrifar a água” -, outras acrescentem informações circunstanciais - “2 Coelhos estendem a roupa num dia de vento” - , outras ainda atinam numa sensação da personagem - “1 Gato a sacudir minuciosamente um pano do pó á janela”. Claro que aquele “se” da primeira frase já possui em si mesmo a promessa de um desdobramento maior narrativo, estabelecendo uma relação, mais do que de cooperação, de dependência entre um e outro, senão mesmo hierárquica. Porque é que o peixe poderá não borrifar a água? Por uma briga anterior? A relação entre os dois encontra-se frágil?
Os usos que este livro poderá conter, parece-nos, é tão alargado quanto o número dos seus eventuais leitores. É um livro que nos parece habitar um território tão vasto quanto reduzido, onde se cruzarão muitas fronteiras, de livro de artista a livro ilustrado infantil, de exercício plástico a mais um bloco na operação contínua da obra de Maria João Worm.
No fim do dia, é um livro, unidade autónoma e provida de vida própria, e isso é já em si uma enorme conquista.
Nota final: agradecimentos à artista, pela oferta do livro. As imagens foram retiradas do próprio blog da autora. “Quarto de Jade” passa a ser o nome oficial das publicações desta autora, na companhia das de Diniz Conefrey, e alguns futuros títulos já se prometem neste volume.
16 de outubro de 2011
Os Animais Domésticos. Maria João Worm (Quarto de Jade)
Publicada por
Pedro Moura
à(s)
9:36 da tarde
0
comentários
Etiquetas: Gravura, Portugal, Territórios contíguos
25 de junho de 2009
The Life of Christ in woodcuts. James Reid; e Vertigo. Lynd Ward (Dover)
Podemos afirmar que a história da banda desenhada, na sua máxima amplitude, ainda está por trilhar completamente. Existem, sem quaisquer dúvidas, muitos sendeiros parciais, a cartografia dos principais marcos, o sulcar das direcções a seguir e pesquisar. Mas em termos de síntese e de fluidez (quer dizer, ainda nos faz falta um The Story of Comics, à la Gombrich), existem ainda cantos por perscrutar, nichos por trazer à luz, blocos por considerar. A história, porém, faz-se no presente.No seu livro sobre esta classe de livros – novelas sem palavras e usualmente de xilogravura, cuja maior concentração se deu na década de 1930 -, David A Beronä indicou numa pequena nota como não incluiria no seu estudo alguns dos livros que lhe poderiam ser coligidos, citando os vários livros em torno da vida do Cristo, e citando este título de Reid, originalmente publicado em 1930. A opção, parece-nos, deve-se a duas razões: em primeiro lugar, para se garantir uma maior reflexão sobre os títulos abordados, não se procurando uma dispersão enciclopédica, o autor centra-se em obras de invenção “original”; em segundo lugar, dado que a inventabilidade associada à vida de Jesus se encontra profundamente limitada, e ocorre no interior de uma história sobejamente conhecida na nossa cultura e civilização, apenas se procurariam explicações meramente estilísticas, que não garantiriam um aumento da qualidade média dos trabalhos discutidos. O acesso agora permitido pelas edições Dover - sobejamente conhecida pela garantia e acessibilidade de obras há muito esgotadas, antigas ou de difícil manejo, desde as gravuras tardo-medievais de Durer aos romans-collage de Ernst, dos desenhos de um batalhão de referências às ilustrações de grande referência – a este livro (e do Vertigo de Ward) permite-nos compreender melhor, e até aceitar, a precisão da exclusão de Beronä. De facto, The Life of Christ in woodcuts apresenta-se-nos como uma obra pouco notável.
Dividido em quatro capítulos de tamanho similar (“The Infant”, “The Boy”, “The Son of Man” e “The Messiah”), James Reid apresenta os episódios mais famosos e esquemáticos da vida de Jesus: poucos em maior pormenor, como a matança dos inocentes, sendo a sua maioria apresentados sumariamente, como os milagres dos anos da sua pregação pública. A juventude (o capítulo intitulado “The Boy”) apenas apresenta cinco imagens, com grandes saltos temporais entre si, uma vez que é uma fase da vida de Cristo sobre o qual nem há escritos nos Evangelhos nem se desenvolveriam mitos ou lendas suficientemente fortes para vir a fazer parte do imaginário com ele relacionados. As duas últimas imagens desse capítulo mostram um Jesus observando um grupo de jovens casais caminhando, e ele ficando para trás, cabisbaixo, como se soubesse ter de abandonar essa vida mundana e isso representasse algum peso e, quem sabe, arrependimento ou mesmo desejo de renúncia. É, portanto, o único momento em que Reid parece contribuir com uma ideia ou interpretação sua, mas que acaba por não se desenvolver e cuja força, assim, não pode ser avaliada. Não estamos perante uma ficção forte em torno desta personagem como em King Jesus/Rei Jesus, de Robert Graves, nem num anedotário poderoso como 2001 Après Jesus Christ, de Jean-Luc Coudray com Moebius. Não há espaço para isso.Um outro ponto problemático é o da representação de Judas: a de um homem de tez absolutamente negra, com orelhas e dedos pontiagudos, dentes aguçados e expressões assaz melodramáticas, idênticas às do demónio que havia tentado o Cristo, umas páginas atrás (em contraste com o rosto carregado do Cristo maduro ou sem expressão dos discípulos, por estarem envoltos em grandes sombras, da barba, cabelos, etc.). Deve mais a Nosferatu do que à representação de um negro, hipótese que não é de descartar completamente, se bem que fosse necessária uma avaliação histórica mais concreta e exacta. O que se retira dessa representação, para além das óbvias conotações racistas, é a de que Judas era intrinsecamente mau... Nada de surpresa aqui, segue-se o dogma, e espera-se que venha a ser roído eternamente pelas presas do Satanás de Dante.
Para além do paupérrimo contributo de Reid ao discurso teológico possível, à invenção romanciada da vida de Jesus, estilisticamente estamos perante uma obra com pouca matéria de agradibilidade. Os corpos são demasiado alongados, e o expressionismo parece mais caricato do que intenso. Alguns dos filmes bíblicos de Cecil B. DeMiller já haviam sido feitos, mas aqui ganham uma qualidade menos heróica do que de sobras de papelão.Não colocamos em dúvida a pertinência do estudo deste livro no quadro dos livros ilustrados em xilogravura do seu tempo (terreno ainda por resgatar nas histórias amplas da banda desenhada e da ilustração), e até mesmo dos livros em torno da figura de Jesus, cuja história iconográfica é reveladora das transformações mentais de cada época, mas por si só, The Life of Christ in woodcuts de Reid não sobrevive enquanto grande obra.
Aliás, a sua apreciação “pela negativa” leva a um reequilíbrio curioso, ou melhor, a uma asserção cada vez mais forte “pela positiva” de outro autor. Tal como estudo da vastíssima produção de ilustração dita “vitoriana” nos obriga a uma travessia por um cerrado mato de personagens sem expressão, situações sem densidade, meros décors de correcção social, e pura e simplesmente desenhos sem qualquer traço de verdadeira vida, mas ao mesmo tempo nos permite aperceber as razões pelas quais os nomes de Gustave Doré, Richard Doyle, John Gilbert, Harrison Weir, entre outros, brilham como excepções, também a leitura de livros como os de Reid e de Ward nos fazem recalibrar o peso, cada vez mais exacto e inevitável, de Masereel.
O problema de Lynd Ward não é tanto a falta de expressividade do rosto das personagens (varrendo o “expressionismo”, portanto, para apenas a angulosidade dos ambientes, o recurso às tramas de linhas paralelas para a dinamização das acções e o melodrama das situações), como ocorre nas dezenas de negligenciáveis ilustradores vitorianos, ou até mesmo de Reid. É antes da a expressão errada, ou errónea. O melodrama, a hipérbole, o bathos, são as características – apetece quase dizer “americanismos”, se no permitirem este abuso generalista e preconceituoso, que apenas dá conta das produções culturais dadas à espectacularidade, e não daquelas que partem de uma pesquisa mais pessoal dos seus autores. Ward encontra eco numa espécie de “espírito médio”. A esmagadora maioria dos rostos das personagens que apresenta jamais mostra os olhos, ora por se apresentar numa posição que não apresenta o rosto aos leitores, ora por ocultá-los em densas sombras negras. Quando o faz, como ao banqueiro assustado, o edifício da expressão rui, pois Ward não consegue transmitir pelos seus traços o modo de comportamento mais humano previsto nos olhos (e na sua representação).Vertigo (de 1937) tem as suas forças, naturalmente. O texto introdutório de Beronä sublinha-os: a opção pela construção narrativa separada entre as três personagens, obrigando o leitor a uma re-construção dos eventos e das relações; o tamanho da obra que permite explorar várias camadas narrativas e desenvolvimentos das acções; o posicionamento político de esquerda que atravessa a “moral” da história; o desencantamento social com a modernidade e a apresentação de um final quase desesperado (se não mesmo de desistência); a “abertura” das gravuras às generosas margens brancas da página; a fina resolução do trabalho das tramas e do grão da imagem, mostrando o domínio técnico de Ward da xilogravura; a integração do texto escrito no universo diegético para concorrer e apoiar a história; a oscilação entre abandonar as personagens no centro das paisagens, urbanas ou não, demonstrando o seu fraco poder, ou aproximando-nos delas para dar a ver pormenores significativos. No entanto, muitos destes aspectos já haviam sido explorados em datas anteriores por outros autores, noutras paragens às quais seguramente Ward teria acesso, na sua aprendizagem académica. A relação entre a xilogravura e a escola expressionista (e, depois, a do Novo Objectivismo), de sinal político de esquerda e todos os valores sociais e económicos que ela representa, eram já apanágio de todo um grupo de expressão alemã que contava com Kathe Kollowitz, Kirchner ou Emil Nolde, por exemplo (a própria Dover tem um livro dedicado a esse “grupo”; e é directamente aliado à mesma veia que encontramos Frans Masereel). A sua aplicação à caricatura narrativa, ao cartoon, à banda desenhada e até mesmo ao livro de imagens, ainda que mais temático do que narrativo, era também algo detectável na Europa, pelas mãos dos autores da Simplicissimus ou da L’Assiete au Beurre (nos Estados Unidos, a publicação correspondente era The Masses). Quando falamos de livros, falamos de “álbuns de caricaturas”, ou de desenhos, como os de George Grosz, Das Gesicht der herrschenden Klasse (de 1921) e Abrechnung folgt! (de 1923), podendo mesmo recuar-se a Bordalo.
Ou seja, Ward estava na esteira de uma já longa tradição, mas apura-a enquanto forma narrativa (e modo de publicação), tornando-a mais clara, mais espectacular, quem sabe mais eficiente perante o imaginário da sua época, paulatinamente a passar a ser criado quase em exclusivo pela indústria do cinema. Beronä quer reavaliar a história da banda desenhada, considerando Ward (e Vertigo em particular) como percursor daquilo que viria a ser chamado nos Estados Unidos por “graphic novel”, formato o qual – nesse país e de acordo somente com os princípios com que lá se pautam – apenas surgiria mais tarde. Será por essa razão que a acapa deste livro é refeita para que o título e o nome do autor figurem integrados de um modo dinâmico nas estruturas dos edifícios? De certa forma, é uma recuperação e aplicação retroactiva de uma conhecida fórmula de Will Eisner (o suposto “inventor” da graphic novel, suposição sobre a qual já existe uma larga história que corrige essa ideia), para tornar ainda mais clara essa inscrição no tecido histórico. Todavia, parece-nos que é maior o esforço quanto menor a verve interna da obra... Ward não é desprovido de interesse, bem pelo contrário: deve desde já fazer parte de uma consideração maior sobre este território. Mas é curioso como a cada sua leitura se torna mais forte a presença de Masereel, incólume e crescendo.
Nota: o vídeo é de má qualidade, mas ainda demorarei a aprender a controlá-lo. Se o fim vos parecer abrupto, é porque o é: mais uma vez a interrupção deve-se à Miki.
Publicada por
Pedro Moura
à(s)
11:58 da manhã
0
comentários
26 de julho de 2008
Brian Cronin. 25 anos de desenho (Ar.Co/Casa da Cerca)
Este post centrar-se-á nas duas exposições apresentadas em conjunto na Casa da Cerca, Almada, numa co-produção com a escola Ar.Co, nomeadamente o seu Departamento de Banda Desenhada e Ilustração. Essas exposições são uma retrospectiva dos cerca de 25 anos do ilustrador irlandês, mas radicado nos E.U.A., Brian Cronin, e uma colectiva de quinze autores portugueses, em torno de um tema ou matéria central. As oportunidades de encontrar gestos desta natureza fora dos grandes certames é rara, por isso, logo desde a partida, são não só produtivos como merecedores da nossa atenção. Não significa isso, porém, que sejam depositários de todo o nosso entusiasmo ou entrega.
Vejamos primeiro Brian Cronin. Este ilustrador tem uma carreira consolidada e erguida nas mais prestigiantes plataformas da ilustração editorial dos Estados Unidos, começando pela Rolling Stone, passando pela Time, a Reader’s Digest, e muitas outras publicações, ora generalistas ora especializadas, terminando no acme dos ilustradores (pelo menos na metade do mundo anglófila), a New Yorker, a qual, de quando em quando volta às bocas do mundo graças às suas controversas – política e humanamente – capas.
Cronin é um daqueles artistas que cai na categoria dos “ilustrador dos ilustradores”, isto é, um artista mais imediatamente apreciado e discutido pelos seus colegas do que por um público mais geral e mais inclinado a trabalhos de uma maior espectacularidade, seja esta do domínio do virtuosismo técnico ou dos grandes efeitos especiais do político e do social. No entanto, a força de Cronin, a meu ver, não é assim tão poderosa que o coloque num qualquer domínio único ou de singularidade fulgurante. Se alguém ocupa esses limiares, falemos de Steinberg, de Saul Bass, de Al Hirschfeld, para ficarmos sensivelmente num intervalo de tempo que parece estar na mira do trabalho de Cronin em termos de fonte estilística de inspiração. Pois o que se sente é que todo o trabalho de Cronin escapa um pouco da maior parte da produção dos seus colegas dos mesmos anos - cada vez mais apaixonados pelo computador mais enquanto ferramenta de efeitos, decoração e filtros do que de auxílio de descoberta e pensamento – para ser devedor de um design retro que mergulha as suas raízes no design inglês moderno, com artistas como Tom Eckersley, por exemplo, se bem que com mais “ruído”, intervenções de elementos visuais não-representativos sobre o espaço de representação, e a figuração vogue num figurativismo (passe o pleonasmo) quase icónico, estilizado. Algumas das suas opções e estratégias visuais podem tanto remeter ao design de propaganda militar das duas grandes guerras mundiais, como às capas da New Yorker de Sempé, como à publicidade oriental, etc. Há uma coadunação, natural, de cada um dos trabalhos à imagística empregue, sem nunca de se deixar de reconhecer as características comuns. A qualidade artesanal e conservadora a que nos referíamos é visível nas informações encontradas no catálogo e na visita à exposição, notando-se que a esmagadora maioria dos trabalhos expostos, para além de serem desenhos em aguarela, acrílico e a tinta-da-china sobre papel, parecem fazer parte de trabalhos em serigrafia, ou em outras técnicas mistas de impressão, com intervenção de instrumentos vários, colagens (alguns desenhos parecem feitos por módulos), papéis rasgados, puzzles de papéis de várias cores marchetados numa figura, posteriores ingerência com lápis ou outros materiais, etc. Mas há algo que fica aquém no trabalho de Cronin...
O catálogo em si tem alguns problemas, mas pode ser que sejam apenas uma impressão superficial minha. Inclui-se uma entrevista ao autor, mas mergulha tanto em pormenores íntimos, diria mesmo obscenos da sua vida, que a torna incómoda de ler, se não mesmo enfadonha e impertinente no que respeita à possível apreciação do seu trabalho. É pouca a matéria que revela um pensamento profundo sobre o trabalho de ilustração, como o que se descobre em Ben Shahn ou num director como Steven Heller. Enfim, uma escolha péssima. Das imagens incluídas, em uma mão-cheia delas surge uma intervenção de texto, em português e inglês, com palavras tais como “sentimento” e “naufrago” (sem acento) colocadas por sobre a imagem original (que se pode consultar, assim como o seu ano, origem, material e até o texto com que se relaciona, se for caso disso). Estamos em crer que esta opção foi tomada em consonância com o próprio artista, mas mesmo assim paira a pergunta de qual sua a mais-valia, uma vez que impede uma apreciação global e límpida da imagem em si, e o domínio que adivinhamos poético não é sobejamente vincado. Finalmente, uma vez que o catálogo não apresenta na totalidade as imagens que compõem a retrospectiva exibida, existe uma mão-cheia de trabalhos que constituiriam não apenas uma outra escolha (todas as opções têm a sua validade) como um desenho diferente, uma perspectiva diversa do trabalho de Cronin... Por exemplo, porquê a integração das ilustrações dos rostos humanos sem grandes características icónicas, informativas ou estruturais diferenciadoras, para deixar de fora a máquina de escrever/cemitério, a bandeira-caveira, a cruel mas real injunção ao voto...? Algumas destas imagens podem ser encontradas nas fotografias (de péssima qualidade) encontradas no fim deste artigo.
No seu texto de introdução, Manuel Castro Caldas indica como uma das características do trabalho de Cronin o uso, ou melhor, a instauração, de “poderosas metáforas visuais”. Este é um tema complexo, termo que já atravessou discussões variadas e mesmo direcções opostas nas decisões de como definir, pensar, aplicar essa figura da metáfora visual. Por via de várias razões, seguimos a lição de Noël Carroll (Beyond Aesthetics) para entender aquilo que uma dessas figuras possa ser. Carroll indica que a característica necessária para a existência de uma metáfora visual é a homoespacialidade, “a qual incorpora visualmente elementos díspares (relembrando categorias díspares) numa só entidade espacialmente homogénea”, representando “um estado das coisas fisicamente compossível”. Ou seja, os dedos dobrados de uma mão podem ser também os cubículos de um empregado, o braço do corruptor pode ser o mesmo braço do corrupto, o capacete do soldado de “paz” pode ser o traseiro de quem “baixou as calças”. Estas características, meramente formais, ocorrem no trabalho de Cronin, e são empregues de facto para os fins alegóricos (de cariz sobretudo político, económico, social) dos artigos que ilustravam. Para mais, as metáforas nunca são proposicionais, logo não são susceptíveis de falsidade ou de verdade, logo tudo pode ocorrer, sendo elas apenas apreciáveis por serem mais exactas ou mais profundas. Não obstante, se as metáforas têm como fito a explicitação de um elemento a partir do seu cruzamento com um outro, isso não significa que possa ser esse fito cumprido por uma infiltração do estranho na esfera do habitual. Mais: quanto mais surpreendente e inesperado for esse grau de estranhamento, mesmo que leve a um intervalo de tempo maior no seu desvendamento (mais do que de descodificação, pois se por um lado não há código, a chegada ao sentido global não é analítica e cumulativa, mas súbita – só retrospectivamente é que se reconstrói a sua assunção), maior é a sua eficácia e força. Ora o grau desta operação em Cronin é fraco, tal qual o da sua ordem de autonomia dos seus trabalhos. Se existem alguns rostos e retratos que têm uma valência própria, e alguns dos trabalhos que apresentam estas metáforas, como se costuma dizer, “falam por si”, a esmagadora maioria dos trabalhos não parece poder sobreviver em autonomia dos textos com os quais se relacionam. Basta ver a quantidade de imagens cuja leitura do título do artigo que acompanhavam ilumina e explicita o sentido da imagem, arrancando-a de uma pouco clara nébula de significado. Podem ser belas e até virtuosas, mas não possuem, muitas vezes, a sua própria língua (neste sentido, os rostos criados nas colagens de Hanoch Piven são bem mais eficazes e eloquentes).
Não obstante, há de facto a criação daquilo que se chama em inglês, “body of work”, no sentido de facto de “corpo”, algo que é organizado e reconhecível enquanto tal. Um grau de diversidade considerável mas que é elaborado no interior de um espaço autoral que lhe é próprio. Competência, sim. Mas não génio.
Nota: as duas imagens que se seguem, tal como a capa, são do catálogo. As restantes são fotografias da exposição. Perdão pela falta de qualidade das mesmas. Agradecimentos ao Ar.Co pela oferta do catálogo.
Publicada por
Pedro Moura
à(s)
12:49 da tarde
1 comentários
Etiquetas: Gravura, Ilustração
Cor. AAVV (Casa da Cerca/Ar.Co/Centro Português de Serigrafia)
Este projecto consiste num convite feito pelo Ar.Co a um grupo de 15 ilustradores portugueses – a maior parte afecta a essa escola, mormente ao Departamento de Banda Desenhada e Ilustração, enquanto professores e alunos – para criarem cada um uma ilustração associada a uma só cor, tendo como objectivo uma edição limitada de serigrafias pelo Centro Português de Serigrafia. O projecto contou ainda com João Paulo Cotrim como mentor e prefaciador, tendo contribuído ele mesmo com um belíssimo e poético texto sobre o modo de comportamento das cores, para além da sua dimensão perceptiva.
Aliás, no fim do catálogo – que por razões óbvias não pode dar conta da riqueza táctil das próprias serigrafias expostas na Casa da Cerca, onde também se apresentou a obra de B. Cronin, e as reproduções neste post ainda tornam mais problemática essa tradução – surge uma definição científica, a qual demonstra, para surpresa do inscinte, que a cor é aquela que não está lá, quer dizer, é aquela que é devolvida pelo objecto, que não é por ele aceite. Ora o problema nesta junção e produção particular está precisamente naquilo que é recusado, e não na força que poderia ser criada. Apesar de João Paulo Cotrim alertar que este é um grupo de “desenhadores radicais livres”, os quais “querem contar histórias, e começaram a criá-las”, esperaríamos que existisse uma gravidade mais ciente que estruturasse todas estas ilustrações em torno de um centro coeso, que as iluminaria como um todo coerente.O que acontece é vermos uma simples agregação de, de facto, desenhos livres, e em que cada uma das cores atribuídas e cumpridas por cada um dos artistas poderia praticamente ser permutada por uma outra qualquer, sem se perder qualquer da força dessa mesma ilustração. Ou seja, as forças que elas possuem não derivam da cor com que se reveste. Tiago Manuel, com o azul petróleo, apresenta uma esquemática e icónica apresentação de contornos ecológicos bastante claros, Daniel Lima monta uma breve cena de taberna em torno de álcoois que imaginamos plasmados ao roxo ameixa (infelizmente a reprodução no catálogo corta uma das personagens precisamente na zona do olho, levando a uma pobre percepção e devolução do mesmo), e Filipe Abranches mostra um homem que arrancou um olho do seu corpo enquanto é observado por um cacho de olhos sem corpos, talvez como quem deseja se desfazer de uma melancolia, a qual, como o mais alheado passado, é sépia [um efeito freak muda a cor do jpeg que aqui tenho]. De resto, nenhuma das outras ilustrações parece seguir os trilhos exactos das cores que têm.
Num tempo em que a esmagadora maioria destes autores, quer no que diz respeito às ilustrações e às bandas desenhadas, publica a preto e branco por razões que se prendem não tanto com sobretudo com circunstâncias económicas, mas antes traduzindo-se num gesto político, de oposição em relação às “expectativas do mercado”, como recusa de uma espectacularidade visual superficial, como independência, esperar-se-ia que esta oportunidade, vincadíssima, em explorar a cor, se tornasse mais explícita (é claro que há excepções, Miguel Rocha e Maria João Worm sempre exploraram a cor nas suas bandas desenhadas, e significativamente, André Letria desenha com elas antes de desenhar com o lápis...). Diniz Conefrey, num dos episódios do Verbd, afirmou “usar a cor não como um complemento da narrativa - um complemento que até poderá ser secundário mas que acompanhe harmoniosamente a narrativa - não, [mas em] que a cor tenha uma expressão narrativa em si”. Conefrey, tal como Sfar, e Breccia, e Mattotti (cada um com as suas diferentes valias e naturezas), são exploradores tão exímios do preto e branco como do trabalho a cor, mas tornando-a como que uma personagem por direito próprio. Uma atitude inversa, mas igualmente válida, é a utilização psicadélica da cor pelos autores afectos ao Fort Thunder, mas os quais trabalham antes um uso quase aleatório das cores disponíveis para um excesso crítico da linguagem que empregam. Claro que existe depois o banalíssimo emprego das cores dos mais normalizados trabalhos do “mercado”.
No que diz respeito a este projecto, estamos mais próximo de uma aleatoriedade não-significativa do que qualquer outra coisa. Todavia, dessa expressão, e mais, associada à expressividade específica permitida pela serigrafia, apenas parecem tê-la seguido Maria João Worm – que é quem mais abdica da criação de um gérmen narrativo para criar uma sugestiva imagem dialogante entre o violeta (a cor que lhe pertence) e um rosa – e André Letria – com uma cabeça composta por tubos/esparguete/tripas a bordeaux, como que prometendo mas ao mesmo tempo sustendo o sangue que deseja expelir-se.
Nada disto quer dizer que não existam desenhos que, em si mesmos, sejam pejados dos seus valores próprios. Susa Monteiro (lima) continua na sua exploração de momentos que têm tanto de oníricos como de melancólicos, Nuno Saraiva apresenta uma variação de um famoso personagem através do seu conhecido humor sexual, André Carrilho presenteia-nos com uma brevíssima mas intensa cena urbana em Lisboa. No entanto, o que parece estar ausente é esse elo férreo e indissolúvel entre a figura e a sua cor. Não, há antes uma relação ténue. Por outro lado, alguns autores – sobejamente conhecidos e com um trabalho magnífico e regular em várias plataformas – apresentam aqui alguns dos seus trabalhos individualmente menos fortes, o que não abona a favor do gesto colectivo.É como se um prisma tivesse separado o raio em todas as cores, mas estas se esquecessem de ter pertencido a uma mesma e unida origem...
As serigrafias tiveram uma edição, de 100 exemplares cada ilustração, e prevê-se que venham a ser comercializadas pelo Centro Português da Serigrafia. Colocamos aqui apenas as imagens que conseguimos colher, esperando que possamos acrescentar as restantes num futuro próximo.
Publicada por
Pedro Moura
à(s)
12:46 da tarde
0
comentários
Etiquetas: Gravura, Ilustração, Portugal, Territórios contíguos
29 de junho de 2008
Wordless Books, the original graphic novels. David Beronä (Abrams)
O objectivo geral de David Beronä com este volume é fazer um historial de um conjunto relativamente coeso de narrativas em imagem, sem texto, todos produzidos na primeira metade do século XX, e apontá-las como um elo indispensável no desenvolvimento do que ele chama, em inglês, de “modern graphic storytelling” (aproveitando as palavras de Will Eisner a propósito de Lynd Ward). Apesar de existir como que uma tradição, muito antiga, que faz pensar nos Volksbuch – “livros populares”, com ilustrações em xilogravura, que surgiram com o advento da imprensa móvel no fim da Idade Média, e no qual se conta o Bilder des Todes de Hans Holbein -, Beronä cinge-se a um intervalo menor entre 1918 e 1951, mas pelo contrário não se cinge somente aos ciclos em xilogravura como qualquer outro livro com qualquer outra técnica, desde que cumpra aproximadamente um mesmo programa narrativo.
O que vemos, porém, não é um trabalho de historiador, em que a argumentação nasça dos factos ou das pontes que associem indelevelmente as obras arroladas. Este é um livro que nasce de uma vontade arquivística e de bibliotecografia, de breve taxinomia e descrição, mas que acaba por não conseguir reviver o espírito contínuo das obras entre si, ou destas com o corpo maior que conhecemos por banda desenhada. Os capítulos que se vêem dedicados a cada um dos livros arrolados, dizíamos, acabam por apresentar textos que não são mais do que pequenas sinopses um tanto ou quanto fastidiosas, em que a valoração é mais pessoal do que argumentada (o único caso em que isso se altera, como veremos, é Lynd Ward).
Os trabalhos reunidos neste livro têm qualidades diferentes, muitas vezes incomparáveis. Entendo perfeitamente que existem elementos superficiais em comum entre alguma da obra de Frans Masereel, o He Done Her Wrong de Gross e Eve de Myron Waldman – precisamente o elemento que se encontra no título: “livros sem palavras”. Mas para além dessa característica, tudo o resto se desagrega e puxa em direcções diferentes, as quais não se podem reaproximar. Masereel é um autor de uma profunda e forte vontade política, com um tom moral igualmente superior a qualquer denominação ou dogma. Gross apresenta uma variação em papel do vaudeville e das aventuras a que o cinema havia habituado o seu público. Waldman simplesmente cria uma noveleta de amor singela. Beronä acaba por misturar a ideia de justiça, o encontro do que é equilibrado para cada um, o respeito pela individualidade, e o direito, medida idêntica aplicada a todos, como se todos tivessem a mesma superfície a medir (mas veremos que não é verdade, dada a atenção desmesurada, em todos os sentidos, que dá a Ward).
Não há dúvidas de que Beronä procurou uma especialização, e apesar da obra de Masereel, Otto Nückel, Lynd Ward e Giacomo Patri ser acessível nos nossos dias, e há livros aqui que são uma descoberta retrospectiva: o Childhood, da checa Helena Bochořáková-Dittrichová (publicado em Londres em 1931, e ainda que apenas um grau de variação dos livros em xilogravura de mestres como Masereel, uma perspectiva feminina contudente), My War, do húngaro István Szegedi Szüts (de que apresentamos aqui uma imagem: um relato da vida militar, num tom anti-militar, dado através destas pinceladas mínimas reminiscentes da caligrafia chinesa, e igualmente de Londres e de 1931), e ainda o Alay-Oop (1939), de William Gropper, no caminho do qual já Seth nos havia colocado, e que se presume seja alvo de uma reedição para breve. Mas isto não suprime os problemas de argumentação mais profundos.
Uma nota no início do livro explica que deixou alguns títulos de fora, por se tratarem de biografias ou de livros cujo propósito era o proselitismo religioso, por exemplo. Mesmo que aceitemos que a razão – que Beronä não dá – de que esses livros teriam um propósito mais limitado do que aqueles que são lidos – e só se o poderia afirmar depois de os lermos e a dúvida permanece (imagine-se numa discussão em torno da banda desenhada tout court, dispensar o Buddha de Tezuka ou o Che de Osterheld e os Breccia), o autor ainda diz dispensar “anomalias”. Esta palavra é assim apresentada, seguindo-se logo uma lista de cinco títulos, entre os quais o recentemente reeditado Scottsboro, Alabama: A Story in Linoleum Cuts, de Lin Shi Khan e Tony Perez, associado ao movimento comunista norte-americano dos anos 30, e Mitsou, do então jovem Balthus. Todavia, esta nota não me parece suficiente (já que não há qualquer argumento utilizado) para explicar a razão da sua ausência num livro que se propõem explicar a emergência deste modo de criar livros de narrativas desenhadas sem texto, e muito menos associá-las ao contínuo que existe – um contínuo cheio de flutuações e interveniências, sem dúvida, mas ainda assim um contínuo – entre os primeiros livros de Töpffer e o que hoje se edita. Penso que uma noção demasiado contemporânea da “graphic novel” preside o ponto de partida de Beronä e isso torna-o “aspectualmente cego” a uma leitura mais ampla, inclusive historicamente.
Em nenhum local se fala da obra de Palle Nielsen, Orpheu og Eurydike (de 1955), ou de um dos livros dos romances-colagem de Max Ernst, Une Semaine de Bonté (de 1934, o facto de ser colagem não deverá ser impedimento, pelo que indicámos da inclusão de outras técnicas, e o aparecimento esparso de palavras também não é critério em Beronä), da obra de Peter Newell, e de outros que eventualmente se pudessem constituir como exemplos de um mesmo campo que David Beronä parece indicar existir, mas sem jamais descrevê-lo, circunscrevê-lo e torná-lo pertinente. Mais, para depois integrar esse corpus no tal contínuo maior de que o autor diz fazerem parte estes livros. Em suma, pouca argumentação central que torne claro o espectro que o autor desejaria, pelo que se entende até do título completo do livro, cumprir.
Um outro ponto de contenção é a defesa que faz de Lynd Ward em detrimento de Frans Masereel. Num ou noutro momento do seu texto, diz que onde Masereel era mais “rude”, Ward alcançara uma maior desenvoltura do traço. E analisa a profundidade do seu trabalho de um modo muito mais marcado do que o fizera em relação a Masereel. Digo que este é um ponto de contenção pois vejo exactamente o contrário. Masereel integrava-se na tal tradição que bebia de fontes com séculos de duração, com grandes tradições de esquerda, e de uma profunda e culta raiz europeia, em que não obstante se transcreverem em imagens os movimentos das personagens como imbuídos numa ideologia, haveria sempre espaço para o livre arbítrio dessas mesmas personagens, face ao mundo que desafiavam. No caso de Ward, o proverbial peso do “destino” é por demais visível, e por vezes de uma maneira ditatorial. Ward, em algumas das suas obras raia mesmo o kitsch.
Kitsch aqui deve ser entendido como uma ultrapassagem da forma em relação à sua função, ou de uma excessiva presença do seu aspecto material em relação ao teor daquilo que deseja transmitir. Já aqui havia falado de um livro de Ward, God’s Man, sobre o qual havia alertado à excessiva visibilidade desse teor material. Uma das formas de assinalar o kitsch, ou o camp, como os americanos o rebaptizaram e Sontag o bem estudou, é o seu exagerado maneirismo, o exacerbamento de uma característica qualquer, que existiria num estado natural mais sereno no seu território original. Ward abusa da figuração daquelas personagens que representam funções-tipo fáceis de ler: o “capitalista”, o “artista sensível”, o “louco”... E as figuras as mais das vezes são entregues numa figuração cuja expressividade ora roça o histrionismo mais espalhafatoso e melodramático possível (e no qual incorrem quase todos os desenhadores contemporâneos norte-americanos que trabalham no mainstream; independentemente dos valores outros que conseguem alcançar) ora cai numa inexpressividade total que se quer fazer passar por “dignidade”, “superioridade” ou algo do género, tal qual a arte kitsch do panfletário Realismo Soviético. Além do mais, a entrega a um trabalho do detalhado não tem a ver com ultrapassar um certo grau de “rudeza” (palavras de Beronä) que existiria em Masereel, mas sim com esse fascínio pelo virtuosismo, a capacidade superna do domínio de um instrumento, o rodriguinho, o maneirismo já desprovido de sentido, o decorativo. Se Ward é um elemento de profunda influência na banda desenhada vindoura, sobretudo a de acção e aventura, não tenho dúvidas, mas isso não o iliba – nem aos que o seguiram – desses desvios e desequilíbrios de peso. Masereel, pelo contrário, é um clássico, em todas as acepções da palavra tal qual listadas por Italo Calvino.
Wordless Books é um livro muito belo (pelas imagens que inclui, e o seu arranjo) e merece ser uma referência numa biblioteca de história da banda desenhada e territórios contíguos. No entanto, todas as suas estratégias – papel de uma espessura considerável, inclusão de muitas imagens, apresentação dos textos em curtas entradas descritivas de cada livro – tornam-no de facto mais num “livro de referência” do que num volume de história, de considerações inovadoras e iluminadoras, etc. E até mesmo em termos de liberdade de pensamento, de associações livres para criar um saber próprio, fica muito aquém do que parecia prometer. Nesse sentido, o livrinho de Seth foi muito mais... ambicioso não é a palavra, porque isso revelaria de um propósito agendando a priori, e é mais de uma feliz descoberta. Seja como for, é de uma amplitude maior e de uma profundidade de pensamento mais vincada. Mesmo em relação a “livros sem palavras”, o mais importante não é dizer “muito” ou “pouco”, mas “dizer alguma coisa”.
Nota: agradecimentos a Domingos Isabelinho, por ter dado o mote a este post, e a uma palavra emprestada.
Publicada por
Pedro Moura
à(s)
7:03 da tarde
1 comentários
Etiquetas: Academia, Gravura, Outros países
26 de abril de 2006
The City. Frans Masereel (Dover)
Frans Masereel (1889-1972) é um desses artistas cuja obra traz problemas para a banda desenhada. Isto é, a sua inclusão na história e no corpus da banda desenhada pode ser entendida (tal como a de Max Ernst, Hokusai, Max Klinger, Philip Guston, entre outros) como uma espécie de tentativa de justificação e nobilitação da banda desenhada através da sua aproximação a “artistas mais sérios” (argumento dos detractores dessa inclusão, ou classicistas da banda desenhada) ou como um olhar flexível, questionador, em permanente reestruturação sobre a própria (impossível, como em todas as artes) definição de banda desenhada (argumento dos que o fazem, como eu). Os problemas levantados por Masereel são, porém, como veremos, superficiais. Foi ele pintor, ilustrador, gravador, com um grande e importante trabalho relacionado com movimentos de esquerda (sobretudo comunistas, anarquistas, e anti-belicistas; há uma edição do Manifesto Comunista de Marx e Engels com xilogravuras suas) durante a Primeira Guerra Mundial (e depois disso). Mas o que nos importa aqui, talvez mesmo o que mais importa “salvar do esquecimento” em relação ao trabalho de Masereel (se bem que as suas mais recentes edições alemãs e norte-americanas, como a presente, estejam em curso dessa recuperação) são os seus “romances em xilogravura”. [Talvez fosse interessante entrar pela história da xilogravura na Europa, que desde a sua emergência (ca. séculos XIV-XV) serviu propósitos populares e, rapidamente, de contestação político-social. Numa obra que reúna gravadores do século XX, por exemplo, é natural que a esmagadora maioria seja de artistas “de esquerda” (veja-se a Alemanha do regime nazi e compara-se a arte dos “pólos” políticos). Não haverá espaço para isso aqui, mas fica a noção e o contexto, no qual se inscreve o autor belga.]
Os romances em xilogravura de Masereel tratam-se de pequenos livros, com uma imagem por página, e com uma qualquer linha narrativa, bem simples por sinal, na qual é fácil detectar um ou uma protagonista, um ou vários espaços onde a acção decorrerá, outras personagens com a qual a central se relaciona, um tempo diegético organizado, etc. É por isso que disse antes ser um problema “superficial” a sua inclusão, já que tecnicamente é banda desenhada (se a reduzirmos a sequencialidade narrativa de imagens), e não levanta problemas de maior em termos estéticos como o poderá acontecer com, por exemplo, Terry Morgan, o The Cage de Martin Vaughn-James, o Poor Richard de P. Guston, ou o T.N.T. en Amérique de Jochen Gerner. Se bem que não se possa dizer que existam grandes herdeiros deste estilo ou modo de trabalho, talvez se possam ainda assim referenciar Lynd Ward, norte-americano, mas cujo trabalho é, a meu ver, um pouco mais maniqueísta e simplista que o de Masereel, e o polaco-inglês Andrzej Klimowski, mais artístico, e sobre o qual Domingos Isabelinho escreveu na Satélite Internacional no. 3. De Masereel, então, os exemplos mais famosos e acessíveis dessas suas obras são Uma História Sem Palavras (Geschichte ohne Worte /Story Without Words), O Meu Livro de Horas (Mein Stundenbuch), A Ideia (Die Idee/The Idea), O Sol (Die Sonne/The Sun) e, o presente livro, A Cidade (Die Stadt/The City). Todos rondando os anos 20, este sendo particularmente de 1925.
De entre estes títulos, na verdade, talvez A Cidade seja o menos linear, sem uma personagem única servindo quer de eixo narrativo quer de foco de atenção. É antes uma sucessão de planos sobre a cidade (abstractamente, se bem que alguns dos aspectos retratados apontem obviamente a uma metrópole ocidental, entre Berlim e Nova Iorque, Paris e Londres...). Se este meu texto vai aos solavancos, para trás e para diante na relação aproximativa ou distante da banda desenhada desta(s) obra(s) de Masereel, é porque se trata de uma imitatio do próprio movimento deste livro específico. Ele é, afinal, uma testemunha do vórtice em que as cidades modernas se começavam a tornar, aproximando-o assim das primeiríssimas páginas do romance de Robert Musil, O Homem sem Qualidades (publicado em 1930, mas escrito nos primeiros anos da década de 20), do famoso filme de Vertov, O Homem da Câmara de Filmar, de 1929, ou das primeiras cenas do de Fritz Lang, Metropolis, de 1927. Pois é esse o centro do olhar deste livro, a vida multímoda, diversa, cheia de várias velocidades, de níveis e matizes, desejos, trabalhos, entregas e desafios de uma metrópole, não “em mudança”, mas “de mudanças”. A presença da morte não é alheia a esta visão, tal como não é a crítica social, o sublinhar das disparidades, dos abismos que abre, e da esperança que resta.Tudo isto através de uma chã e directa apresentação, sem quaisquer comentários ou transformações, ou até mesmo uma estruturação “progressiva” das imagens que pudesse ser interpretável de um modo mais fechado. Quer dizer, não é esta uma sequência encadeada de episódios, mas uma sucessão de “aspectos”. Uma questão que já tinha sido aqui debatida, a propósito de uma das obras de José Carlos Fernandes. O que não impede, de modo algum, que não possa emergir um sentido, uma força de afecção, enfim, até mesmo uma história. E essa história é a de todas as cidades modernas e, assim, a de todos os homens que nelas habitam e a compõem.
Publicada por
Pedro Moura
à(s)
3:15 da tarde
1 comentários
Etiquetas: Gravura, Outros países
27 de junho de 2005
Gods' Man. Lynd Ward (Dover)
A utilização de um meio técnico, ou de um modo material, não implica a instituição de uma linguagem correlativa. Isto é, não é por dois ou mais artistas utilizarem os mesmos (análogos, próximos, semelhantes ou até idênticos) gestos que necessariamente se encontrarão outras conexões entre os mesmos. Porém, é curioso notar como a gravura em madeira parece ter sido sempre empregue dentro de uma família de intentos e programas facilmente estreitáveis.
A xilogravura tem uma História longa, a qual, não obstante a individualidade dos seus cultores (de Dürer a Marc, de Zanetti a Max Beckmann e Nolde), possui dois ou três traços que permitem irmanar toda e qualquer produção nesse meio, e que se associa a uma certa expressão política do humano. Autores houve que se dedicaram ao seu emprego em histórias contadas por imagens sequenciais, com a máxima notoriedade para o belga Frans Masereel, mas podendo-se citar ainda outros autores, mais contemporaneamente, o americanos Seth Tobocman (alguns trabalhos) e o francês Olivier Deprez, sobretudo com a reescrita de O Castelo de Kafka.
Como Deprez aponta na sua entrevista (e outros artigos) na Satélite Internacional 4, há um mesmo gesto em toda a xilogravura, o de apagar inscrevendo. Não é só uma questão material e de impressão técnica, mas até mesmo de sentido: são as ausências materiais que farão todo o sentido das imagens emergir no papel. Se bem que quase como uma colagem minha fraca, quase apetece demonstrar essa oposição como a que Walter Benjamin aponta da distância entre o “teor material” e o “teor de verdade” de qualquer obra. Isto é, quando ao nos depararmos com uma obra cronologicamente distante de nós mas que nos parece “nova”, “fresca”, “viva”, é porque a sua verdade está ainda pulsando acima do seu material – é o que acontece com os chamados clássicos, de Goethe a Tezuka, de Pessoa a Schulz. O contrário são obras que vemos logo datadas... Na literatura, Uma Família Inglesa, na banda desenhada, um Diabolik, por exemplo. Um autor sobejamente apontado nesta história é o de Lynd Ward. Foi com grande expectativa que finalmente se tornou acessível uma edição mais recente (e barata) de Gods’ Man [sic], primeiro “romance em xilogravura” de Ward, publicado, diz-se, na própria semana do crash de 1929. O sucesso foi enorme na altura. Esta história, em 139 pranchas de tamanho e enquadramento desigual, mas nem por isso dinâmico – em comparação com Masereel, bem superior, a mon avis -, é uma espécie de variação do mítico Fausto, em que um artista recebe um misterioso e estilizado pincel com que ganhará fama e... pouco mais. Talvez seja a dificuldade em esticar a história por mais pranchas, não desenvolve Ward as peripécias pelas quais a personagem poderia passar, resolvendo-se tudo antes em ápices sucessivos e desenredos mal-encadeados. A nítida moral e maniqueísta, pouco ou quase nada subtil, sempre presente na maioria dos americanos, está também aqui patente na leitura do capitalismo, no amor interessado, nos guardiães económicos da arte, na incompreensão do público, na natureza idílica, etc. Mais uma vez, é por oposição a Masereel que se notará que o “teor material” de Ward faz afundar o pouco “teor de verdade” que ainda poderia existir. O autor belga, por sua vez, tem a felicidade – e tê-la-á no futuro ainda? – de ter feito representar pequenas histórias tão gerais e de uma vaga inquietação que ainda hoje são passíveis de acoplar à nossa experiência contemporânea.
Publicada por
Pedro Moura
à(s)
10:56 da manhã
2
comentários