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13 de maio de 2017

Sticks Angelica, Folk Hero. Michael DeForge (Koyama)

Pensamos que este é o projecto narrativo mais longo do autor, se bem que ele não se apresente com uma estrutura tipificada de livro. Afinal de contas, trata-se de uma tira semanal (irregular, porém) publicada online ao longo de quase um ano (e ainda disponível aqui). E se existe uma história central unificada e quase-coerente, ao mesmo tempo existem consideráveis desvios, ”excreções” ou alterações do ponto de vista que permitem expandir a perspectiva sobre as situações graças a outras personagens que não a protagonista, Sticks Angelica, ou desarrumar a organização temporal. Seja como for, a forma como a “história” é fechada, com uma prolepse já depois da morte da personagem, torna todo o material numa unidade fechada e coesa. (Mais)

6 de janeiro de 2017

Repeteco. Bryan Lee O'Malley (Companhia das Letras)

Depois do sucesso estrondoso, a nível comercial mas também crítico, de Scott Pilgrim (para o qual terá contribuído sobremaneira a adaptação cinematográfica exemplar de Edgar Wright, tendo nós falado de ambos anteriormente), O'Malley parece ter querido trabalhar temas um pouco mais graves, sem abdicar porém do seu registo visual de “mangá-via-Ocidente”, numa espécie de linha clara, aqui ainda mais sublinhada pelo uso de cores planas para a maior parte das superfícies, gradientes nos momentos certos, linhas coloridas para cenas específicas, e um equilíbrio exímio entre a abordagem estilizada, os momentos chibi, e os pormenores realistas e pormenorizados. Seconds, ou na tradução aqui lida, Repeteco, reitera um tema recorrente do autor – a personagem ligeiramente deslocada de uma certa ideia de “normalidade”, mesmo que dentro de um contexto onde todos afirmam diferenças dessa suposta “norma”, a qual acaba muito diluída. No caso, trata-se de uma jovem chefe de cozinha, Katie, embrulhada numa complexa encruzilhada da abertura do seu novo restaurante, as suas relações profissionais e amorosas e, o que perfaz o cerne da intriga, o seu encontro com uma dimensão fantástica. Nesse “crescimento”, quase faria pensar em Jeff Smith, mas onde Bone é uma obra quase perfeita e RASL menos conseguida, por ser um salto que se move entre géneros mas não entre concentração dos instrumentos, a relação entre Scott Pilgrim e Seconds é a de um desabrochar de uma linguagem interna. (Mais) 

21 de novembro de 2016

Mary Wept Over the Feet of Jesus. Chester Brown (Drawn & Quarterly)

Este pequeno e estreito livro não chega a trezentas páginas, sendo menos de duzentas aquelas que contêm banda desenhada propriamente dita. Como Brown já vinha fazendo desde os seus primeiros livros “sérios”, The Playboy e I Never Liked You, grande parte do volume é composto por notas, fontes bibliográficas explanadas, ancoramento que serve para reforçar ou re-contextualizar a sua obra banda desenhística. Escusado será adiantar que “a obra vale por si”, ou argumentos quejandos, já que este território tem espaço para toda a espécie de práticas, inclusive, o que nos parece ter aqui lugar, a de nos apresentar um “romance de tese”. Que tese será essa, já é um pouco mais difuso ou diluído, mas arriscar-nos-íamos a afirmar que se trataria de uma defesa da prostituição (ou alguma, se preferirem) como não apenas uma expressão livre da sexualidade como de um caminho legítimo para a assunção de poder da parte das mulheres (em determinadas sociedades, para mais, a ocidental de matriz judaico-cristã). (Mais) 

10 de julho de 2016

Geneviève Castrée. 1981-2016.

Merci, Geneviève, je te souhaite un bon sommeil.

Fica-te o Susceptible e as tuas outras obras.



2 de setembro de 2015

Pyongyang. Guy Deslile (Biblioteca de Alice)

Tal como ocorre com muitas outras situações da condição humana, ter uma experiência qualquer não significa necessariamente que ela seja tida com intensidade para se tornar singular e muito menos que ela tenha suficiente poder para ser transformada numa forma de arte transmissível e que explore a disciplina de expressão de forma vivaz. A parentalidade, a maturidade, a doença, o trauma, e até o banal, não têm interesse artístico em si mesmos. Tampouco uma viagem. Acreditar nisso é não compreender a diferença entre a vida e a arte. É apenas na capacidade do artista em transformar essa mesma experiência (todas elas, qualquer delas, única, irredutível, magnífica) num “texto” que reside a possibilidade de tecer um discurso artístico. (Mais) 

20 de fevereiro de 2015

Distance Mover. Patrick Kyle (Koyama Press)

O que acontece quando cruzamos o que aparentemente é um género convencional como a ficção científica, com uma intriga que usa e abusa de explicações e momentos de exposição, um número relativamente pequeno de personagens de maneira a criar uma estrutura concentrada, e um estilo visual que parece todo devedor das mais livres criações gráficas não-naturalistas? Não temos resposta precisa, a não ser apresentar este livro. (Mais)

11 de fevereiro de 2015

Shoplifter. Michael Cho (Pantheon)

Como já tivemos oportunidade de o discutir noutras ocasiões, um qualquer bibliómano, bibliófilo ou pura e simplesmente anal retentive bookworm escolherá as suas leituras por vezes por sinais superficiais de beleza. Atrai-nos uma capa, um desenho solitário, um pormenor de acabamento, um material. As mais das vezes esse instinto coloca-nos na senda um livro que nos devolve um conteúdo digno dessa primeira impressão, mas há também casos em que essa promessa não é cumprida. (Mais) 

23 de setembro de 2014

Through the Woods. Emily Carroll (Faber & Faber)

Quando discutimos alguns webcomics, mencionámos muito rapidamente o trabalho de Carroll, como um desses casos que não tirava particularmente proveito de todas as possibilidades expressivas, estruturais ou tecnológicas de publicar online o seu trabalho, ainda que existissem algumas estratégias de apresentação singulares. O fenómeno da edição em papel de determinados trabalhos apresentados originalmente na rede também não é particularmente novo, e já tivemos oportunidade de apresentar alguns livros que atravessaram esse processo, e comentar o que isso pode significar na relação contínua entre os diferentes mundos de edição, as formas de produção, circulação, publicação e comercialização do trabalho de banda desenhada, e por aí fora. Em relação ao livro de Carroll, concentrar-nos-emos no seu conteúdo, dizendo apenas que o objecto em si, o livro, é lindíssimo, com uma dustcover onde o título e os ramos das árvores, em baixo, têm um ligeiro volume que convidam a uma certa apreciação e prazer tácteis. (Mais) 

19 de dezembro de 2013

Palookaville no. 21. Seth (Drawn & Quarterly)

Tal como ocorrera com o número anterior, na transformação do formato de comic book (irregularíssimo) para o de um volume (igualmente irregular, mas de forma menos premente), Seth faz convergir neste objecto não apenas o seu projecto narrativo corrente, como explora várias outras possíveis linhas temáticas, estilísticas, e até de pesquisa matérica. Não deixará de ser estranho, em termos materiais, ter um título de uma série sob a forma de livro, não o sendo, isto é, acima de comic book, digamos assim, ou mesmo de revista antológica, mas que não é de forma alguma como livros de uma série contida, como o Berlin de Lutes ou uma qualquer colecção de TPBs. A capa dura, o vinco, a capa com revelos e aplicações prateadas, as guardas irrepreensíveis, o papel de gramagem superior, a “mão” ou ergonomia perfeitas, tornam estes Palookaville em objectos, no fundo, de algum luxo.

Dividido em três “secções”, Seth apresenta-nos três modos narrativos distintos, distintos igualmente pela sua abordagem visual e estrutural. Em primeiro lugar, temos a continuação de “Clyde Fans”, uma espécie de saga familiar melancólica e derrotada, em torno dos dois irmãos Simon e Abraham, e da sua companhia de ventoinhas eléctricas. Se It’s a Good Life if you Don’t Weaken era uma obra maior da melancolia e da lentidão, no seu sentido mais poético, introspectivo mas também de atenção para com os pormenores que apenas aqueles que se dão à distracção da vida acedem, parece-nos que “Clyde Fans” atinge patamares ainda mais profundos dessa lentidão. Se aceitarmos aquele símile de que Kundera fala em A Lentidão, em que a velocidade é proporcional ao esquecimento e a memória à lentidão, o que faz com que uma pessoa, passeando, estugue o passo para impedir recordar-se de algo de que não se deseja recordar, e diminuí-lo para que a memória o apanhe, então esta novela de Seth mostra um homem que já quase não tem forças para fugir das memórias que o apanham, e de toda a herança da vida, mas também da pobre perspectiva de que aquilo que havia construído profissionalmente irá atingir uma inexorável dissipação, quem sabe coincidente com a sua própria morte. A relação de Abraham com a sua mulher, de quem se separou, a quase patética rivalidade com o irmão, e o assalto de uma memória longínqua do caso com Alice, são aparentemente os únicos resquícios que lhe ocupam os dias. Como de costume, neste texto, Seth opta pela construção de páginas em estruturas regulares, com poucas variações, dando particular atenção a momentos de flânerie, ou de observações de pormenores espaciais, quase desimportantes, ou interrompe a “acção” com vinhetas a negro e legendas, que apontam à consciência do protagonista. Isto é, em “Clyde Fans” tudo parece concorrer para que não haja espaço a acções.

Há uma atenção particular e gráfica para o modo sonoro: onomatopeias sublinham todos os gestos, por mais insignificantes que eles pareçam ser, desde a máquina de barbear ao zumbido de uma lâmpada solitária, dos tacões no soalho às baforadas no cigarro, tudo parece ganhar uma dimensão adicional que não necessitaria noutras circunstâncias. Todavia, o facto destes “eventos” serem sublinhados pelo som servem precisamente para acentuar a ausência de outras dimensões mais dramáticas ou espectaculares. São elas que “enchem” o espaço, o texto, a vida de Abe. Se outros textos em torno da velhice, há pouco discutidos neste espaço (Living Will, El arte de volar), demonstravam ainda a resistência possível da velhice ao tempo, as formas como se podem assumir os papéis activos que ainda restam na vida, esta narrativa de Seth parece antes prender-se aos fiapos da mesquinhez, aos egoísmos destilados, aos rancores guardados durante anos, e que desgastam as personagens. Veremos se o término está próximo, e como fechará o cômputo delas.

Antes de passar para a segunda secção, falemos da terceira, ocupada pela anunciada primeira parte de “Nothing Lasts”, uma história que faz Seth regressar ao campo da autobiografia pura e dura como já não fazia desde o início de Palookaville (aceitando-se que It’s a Good Life se inscreve antes na “auto-ficção”). O autor concentra-se aqui na sua infância, prestando atenção sobretudo às mudanças de casa, numa zona relativamente circunscrita daquela zona do Canadá, às correspondentes transformações das relações de  amizade com outras crianças, colegas da escola ou vizinhos, modos de explorar o espaço em torno da casa, hábitos de lazer, variadíssimos episódios passados na escola ou colónias de férias, etc. Mas ainda mais central, ainda que sempre de modo difuso e subtil, está a relação com o pai e com a mãe, sobretudo a mãe. Na verdade, este ponto faz-nos recordar a obra maior do colega e amigo de Seth, Chester Brown: I Never Liked You é um livro que também se concentra em memórias da infância para poder tecer ou regressar a uma relação perdida com a mãe, tentando talvez compreender o que mudou nessa relação e assinalar uma perda. Mais ainda pelo facto de tanto a mãe de Brown como a de Seth terem sofrido nos últimos anos das suas vidas doenças degenerativas, que a afectam a personalidade, e isso ser debatido, ainda que de modos diferentes, nos textos.

Talvez para assinalar essa representação, ou melhor dizendo, reconstrução das memórias da infância, Seth opta aqui por um estilo mais arredondado, cartoonesco, próximo de certos estilos de humor que ele próprio admira e segue, desde Peter Arno a John Stanley. Essa factura, por assim dizer, não quer portanto criar uma total ilusão de “verdade” ou de “regresso prístino” dessas memórias, e o autor vai deixando questões que colocam em causa algumas das memórias ou da arquitectura das reminiscências. Uma dessas questões é coloca de forma subtil mas visível, para que os leitores atentos a “cacem”: Seth vai indicando toda uma série de nomes de ruas e bairros e pontos que presumimos serem verdadeiros e existentes naquelas pequenas cidades de Ontário, mas há um momento em que ele nos mostra um pequeno edifício que indica o nome “Dominion”. Os leitores do número anterior de Palookaville reconhecerão o nome, e aperceber-se-ão de que essa palavra cria de imediato um factor destabilizador da suposta “verdade judicial” do que está a ser contado, até certo ponto uma expectativa típica na leitura da autobiografia (tal como discutido por vários teóricos, como Elisabeth El Refaie), mas ao mesmo tempo ela permite que se estabelece uma tensão entre a “auto-ficção” e outros modos de poder criar a “autenticidade” neste tipo ou género de banda desenhada.
Contudo, não são essa tensão e negociação próprias do funcionamento da memória humana? Tal como Kundera, também Seth é um criador de metáforas poderosas da memória. A “grelha” em “Nothing Lasts” é ainda mais apertada do quem “Clyde Fans”, partindo de um modelo de 4 x 5, mas aqui e ali fundindo vinhetas para dar a ver uma cena maior, usualmente de um edifício ou um retrato, ou uma cena mais significativa. Algumas dessas imagens levantam porém um problema aos protocolos de leitura. Se algumas delas terminam as páginas, não levantando problemas de maior, e apenas num caso abrindo a página, existem outros momentos em que elas se encontram a meio do percurso e lançam o leitor na dúvida: deverá ler-se a vinheta maior logo após a vinheta menor que a antecede, ou deve ler-se a vinheta menor em baixo e depois passar para grande à direita? Este breve desarranjo não é grave, nalguns casos é claro, e é, claro, propositado, servindo talvez para fazer “tropeçar” a leitura e portanto impor uma velocidade muito particular, um ritmo de retorno e avanço lento, conservando todo o projecto na filosofia do autor. Mas há outras metáforas. A dado momento, e tirando partido desta grelha apertada, Seth fala de umas gavetas onde guardava, ou jogava apenas, brinquedos velhos que já não o interessavam, velhos modelos de plástico de aviões, carrinhos ou bonecos. À medida que a gaveta de enche, as figuras começam a apertar-se até se quebrarem e não deixarem senão fragmentos de si mesmas a encher esse espaço. Pela economia da narrativa e a navegação das páginas, Seth faz passar dessa discussão sobre os brinquedos para a de um cinema local, na página seguinte. Mas repare-se como estando lado a lado essas imagens, e apesar da imagem do interior do cinema poder ser lida como uma imagem contínua sobre a qual está sobreposta a grelha das vinhetas, não só esses espaços acabam por isolar as figuras (estão juntas, partilham um ritual social, mas na sua acção de entrega imaginativa ao filme estão em espaços isoláveis na sua maioria) como elas parecem imitar as peças quebradas dos bonecos. Quererá o autor acentuar o isolamento das pessoas? Ou dele mesmo quando criança das restantes criaturas? Somente impor um ritmo de narratividade e tempo, como querem certas teorias semióticas da banda desenhada? Ou permitir uma navegação em dois sentidos, que tanto aparta como tece esses “fios de memórias”?

Essas interpretações metafóricas parecem ganhar um agente poderosíssimo no terceiro texto deste volume, a segunda secção, intitulada “Rubber Stamp Diary”. Seth começa por explicar este projecto: discutindo com Ivan Brunetti a dificuldade que havia em manter um verdadeiro diário em banda desenhada, teve a ideia de criar alguns carimbos que tivessem vinhetas pré-desenhadas com cenas recorrentes (a caminhar, de perfil ou de costas, a ao estirador, cenas urbanas, a sua casa, etc.) e que lhe permitiriam criar uma página rapidamente, bastando acrescentar o texto; além disso, um carimbo adicional com apenas a moldura de uma vinheta ajudá-lo-ia a precaver-se a situações inéditas. Seth acabou por “ficar” com essa mesma ideia e deu início a este projecto, que agora divulga pela primeira vez. Tal como em “Nothing Lasts”, que é indicado  pertencer ao “Sketchbook no. 10”, remetendo à ideia de uma obra contínua, arquivável, revisitável de vários modos (v. Vernacular Drawings, p. ex.), também estes Diários do Carimbo foram feitos em cadernos quase de burocracia obsoleta. A sua reprodução aqui é directa, sem qualquer tipo de intervenção ou limpeza posteriores, o que dificulta a leitura por vezes. Além disso, nota-se perfeitamente os locais onde a tinta está mais gasta, onde houve um desenho com marcador ou caneta por sobre o desenho do carimbo, pequenas alterações ou adições, nota-se igualmente de forma nítida as repetições e/ou diferenças entre a utilização de um mesmo carimbo em momentos diferentes. E finalmente, temos novamente uma grelha, 2 x 4, como se Seth quisesse demonstrar em todos os seus gestos criativos a preferência por uma quase absoluta regra de construção, sem desvios, para se concentrar no que é contado, num “conteúdo” transmissível: as experiências de um passeio, a visita a um novo restaurante, a rotina de um dia de trabalho fechado em casa, uma observação permitida pelo quotidiano…

Menos autobiografia do que observação momentânea, existem vários trechos que farão recordar os leitores de John Porcellino do tipo de “haikus” possíveis de surgir nessa entrega ao “sem-importância”. A repetibilidade das imagens e a ausência de um tratamento que melhor a qualidade das imagens enfatiza essa predisposição ao banal. A grelha irrepreensível insistirá numa certa disciplina do corriqueiro, tornado afinal “Rubber Stamp Diary” num texto menos interessante pelo que revela do que da forma como se revela e nos obriga a repensar as formas de atenção e de trabalho.

Num só volume, de um mesmo artista, e correspondendo a um período relativamente similar de tempo em termos de produção, eis como Seth nos dá a ver três modos totalmente diversos - ainda que com grandes traços comuns - de tratar a memória, de tecer narrativas e até mesmo de gerir as matérias visuais e gráficas de uma mesma mão. A obra de Seth é de uma sofisticação muito complexa, ainda que aparente tratar-se de algo quase indolor de criar. Aquela expressão do “falsamente simples” poderia ser aplicável de uma forma perfeita a este autor, se não estivesse gasta por um uso abusivo em relação a trabalhos que mimam o tipo de profundidade que Seth atinge (relembremo-nos, a título de exemplo, de Daytripper) para se ficarem por uma superfície demasiado burilada. Talvez baste dizer que cada vez mais o título de Palookaville faz menos sentido.

9 de dezembro de 2013

Sin Titulo. Cameron Stewart (Dark Horse)

Como em tantas outras histórias similares, Sin Titulo coloca uma personagem perfeitamente vulgar num ambiente extraordinário, o que é sempre uma fórmula efectiva para que os leitores “se ponham no seu lugar”. Neste caso, temos um funcionário editorial a penetrar no âmago do que parece ser uma conspiração oculta ou mesmo um universo paralelo, a partir de uma aparentemente simples visita ao avô num lar. Porém, ao descobrir que este morrera, Alex Mackay (possivelmente uma forma de homenagem ou de intertextualidade da parte do autor?) embarcará numa aventura absurda que, obviamente, “mudará a sua vida”. Sin Titulo nasceu como uma tira online, do colectivo canadiano TX Comics, integralmente disponível aqui, produzida ao longo de cinco anos, e conheceu algum sucesso crítico, angariando alguns prémios (enquanto se desenvolvia, logo não enquanto texto finalizado) e, antes de ter neste volume a sua edição integral em papel, havia sido parcialmente agregado numa antologia traduzida em língua portuguesa, do colectivo citado, pela Kingpin Books. Sendo o autor conhecido sobretudo como um artista do mainstream norte-americano, de uma abordagem leve, muito legível e competente, esta sua experiência enquanto autor completo poderia ser uma oportunidade de revelar outros caminhos, e mesmo potencialidades. Porém, elas não são confirmadas.

Sin Titulo é um livro de uma esclarecida mas assegurada beleza. Stewart opta aqui por uma linha ainda mais simples, mais limpa e directa do que no seu trabalho mais comercial. O uso de pontos negros para olhos é uma tradição bem longa, que se estende desde a dita “linha clara” hergeana até à obra artística de Julian Opie. Quase sempre essa estratégia reduz drasticamente a possibilidade de expressividade gráfica aos olhares, deslocando antes a transmissão de emoções, estados de alma ou reacções a outras partes possíveis, desde as linhas restantes que compõem os rostos, às posições dos corpos ou outras pistas subtis. De certa forma, essa estratégia até ajuda a evitar opções de maior melodrama básico, e Stewart domina de forma correcta a expressividade dos corpos das suas personagens. Se a galeria apresentada de personagens logo nas guardas do volume (reutilizando uma cena quase no final da narrativa) mostra algum grau de familiaridade e modulação de princípios homogéneos na construção física das personagens, o autor é capaz de variações suficientes para os diferenciar e tornar nítidos nas suas vidas internas. De resto, a abordagem de Stewart aproxima-o de autores tais como Philip Bond e Warren Pleece, com quem já cruzou páginas, autores que enveredem por uma combinação de naturalismo e estilização “abonecada”. Podíamos mesmo considerar, até pela existência de algumas afinidades, para além da figuração, ao nível da temática e gestão de planos e ângulos, etc., o David Mazzucchelli de Cidade de Vidro.

Tratando-se de uma tira, de facto não há (poderia haver, mas não há) desvios de uma regra absoluta: cada página é composta de duas fileiras de quatro vinhetas, todas do mesmo tamanho. Isso obriga o autor a procurar outros modos de dinamismo visual e de avanço diegético, com toda uma série de combinações de pontos de vista, ângulos dramáticos, preenchimentos e proximidades e focalizações no interior das vinhetas, etc. Stewart tem toda uma série de soluções que revelam uma compreensão de espaço e de equilíbrio entre nos afastarmos do acontecimento principal para sermos “raptados” por memórias, ou jogos de expectativas e visibilidades da acção. Tendo em consideração que a narrativa se vai prestar a uma navegação não-linear em termos de cronologia, percepção e memória e ainda “dimensões existenciais”, essas flutuações pela diversidade é muito bem construída, e sempre evitando pirotécnicas excessivas. Além disso, a escolha de um segundo tom incomum - um bege, possivelmente a cor mais apagada, menos expressiva de todas, aplicado digitalmente - traz um volume e densidade extras às figuras, de um modo tranquilo e ajustado ao resto da abordagem gráfica. Se na esmagadora das vinhetas essa aplicação é bastante descomplicada e quase acessória, existem outros momentos em que ela é extremamente significativa e é garante de um efeito expressivo. O exemplo desta prancha mostra procuras por respeitar o naturalismo da luz em objectos, outras que são antes ênfases dramáticas, ou ainda contrastes anti-naturais que servem para dar volume aos espaços.  

Ou seja, no que diz respeito à dimensão visual de Sin Titulo, Stewart tem aqui uma confirmação dos seus talentos. Porém, a banda desenhada é uma arte holística, e não de elementos isolados entre si. E a narrativa é um problema. Há uma promessa e uma ideia, mas o seu desenvolvimento é frágil, e no cômputo final, mesmo trivial. 

Abdicaremos de uma sinopse ou descrição completa. Mackay descobre uma relação do seu avô que se torna uma obsessão, mas não se compreende muito bem o que o move a essa primeira busca, já que descobriremos existir no fundo uma ausência de uma relação forte com o avô. Há a proverbial “mulher misteriosa”, mas como muitos dos outros elementos que vão surgindo, parecem mais itens de uma lista necessária às convenções genéricas do thriller e, depois, do absurdo, do que propriamente uma elaboração ponderada da diegese. O livro tenta explorar, no fundo, duas ou três ideias, a de uma sombra diáfana de estranheza escondida nos interstícios de um quotidiano cinzento, a fantasia perene de escaparmos das nossas vidas diárias, um breve exercício sobre o acto artístico, e um pobre e mal-desenvolvido conceito de fantasia. Mas todas essas pretensões não encontram um porto feliz, e acabam por ir se dispersando em meia-dúzia de platitudes.

A parte, digamos, “filosófica” do livro, quando a personagem Ladislav Vacek dá início à explicação de toda a trama (o que em si é um pobre remate a toda a trama que se desejava complexa), não deixa de ser algo rudimentar no que diz respeito ao entendimento do acto artístico. No fim de contas, a ideia de que os pintores ou restantes artistas apenas “imitam uma ideia” remete à velha lição platónica, da mimese de uma realidade sempre externa, em vez de crer – não se trata aqui de uma “verdade objectiva”, bem certo, mas de um posicionamento nosso que cremos reforçar a potência e devir da própria arte – que é no próprio acto de criação (seja ele de linhas num papel ou de notas num instrumento) que a obra emerge, os gestos de criação não procuram mimar um objecto preexistente mas no seu próprio movimento constituem um novo objecto. A criação do tal mundo em que Alex penetra, portanto, é apenas um constructo alcançado por um qualquer método, e não uma dimensão ontológica, e por mais potente que o autor deseja que esse mundo pareça, ele é no fim de contas fraco, por, em primeiro lugar, existir enquanto constructo, e em segundo lugar, por apenas se sustentar na explicação. Essa é uma das razões que afasta Sin Titulo da companhia de outras obras com as quais é muitas vezes comparada, como se verá adiante. 

Tendo trabalhado com excelentes escritores que têm expandido as vertentes temáticas, estruturais e narrativas do mainstream, como Grant Morrison, Ed Brubaker e Jason Aaron, Stewart tenta aqui não só seguir alguns dos passos que foi observando ao longo da sua carreira como também tocar nas raias de outros territórios, mais “alternativos”, e pensamos nos Bros Hernandez como em Daniel Clowes ou até mesmo o primeiro Ed Brubaker (aquele que desenhava ele mesmo Lowlife [e que, permitam-nos a nota anedótica, Stewart não conhecia até mesmo depois de ter trabalhado com Brubaker, sendo no FIBDA que o veio a descobrir]). O tipo de ambiente urbano, a atenção para com um certo grau de relações humanas e das memórias e sonhos, tem sido mais explorado de forma criativa e inteligente, sem que se subsuma ao fantasioso, nesse outro domínio da banda desenhada norte-americana do que no mainstream. Já não se poderia dizer o mesmo quando o facto da fantasia se envolve nessa pesquisa, e Morrison surgiria aí numa primeira linha. Mas Stewart não tem a mesma agilidade que esses seus colegas.

O autor tenta gerir várias linhas narrativas: analepses e memórias de Alex, cenas que pertencerão a sonhos, os “assaltos” e “visões” a que ele tem acesso depois de começar a penetrar no domínio estranho que é o centro de atenção do livro, mas também alguns dos relatos de outras personagens, a que ganhamos acesso visual. Se a maioria da história é contada de forma ancorada à perspectiva e experiência de Alex, existem sobejas fugas desse peso. E mesmo quando todas essas linhas começam a fundir-se de forma mais acelerada, como quando temos vinhetas sucessivamente a atravessar esses diferentes níveis, tudo acaba por ser nítido no seu concerto. Estruturalmente, Sin Titulo quer ser mais complexo do que é, mas acaba por ser mais incompleto do que parece prometer na sua “explicação” (as mortes de algumas personagens permanecem inexplicáveis e até desnecessárias, certos encontros entre personagens-chaves parecem algo ex machina, etc.). Além disso tudo, a personalidade do protagonista mantém-se pouco interessante, insuficientemente desenvolvida – apesar de todos os clichés das memórias, de um ou dois traumas de infância, de relações amorosas pouco vividas pelos leitores e, sobretudo, por um retorno à banalidade. Alex Mackay não é uma personagem particularmente estimulante e aliciante. As cenas “banais” são aquelas que melhor lhe servem.

Se alguns críticos e leitores encontram pontos de comparação com Lynch e Murakami (um dos blurbs do volume), e na banda desenhada o Iron Glove de Clowes seria a melhor pedra de toque, a verdade é que Sin Titulo não atinge as mesmas intensidades e liberdades que esses outros autores experimentam em algumas das suas obras. Não podemos jamais esquecer-nos de que esta narrativa nos apresenta uma “solução” – um mecanismo imaginativo que tanto parece remeter à ficção científica como à fantasia, nunca explicada totalmente, é certo, mas ainda assim tornada palpável -, uma razão pela qual todos os acontecimentos, que acháramos estranhos e pouco naturais, tenham sucedido, e portanto subsumindo essa mesma “estranheza” a uma “situação explicável”. Mais uma vez a palavra “surreal” seria aqui mal-empregue. Bem pelo contrário, a narrativa acaba por eliminar os traços de uma possível impossibilidade de explicação, o que tornaria mais acabada a abertura a um território surrealista.

Mesmo os contornos mais prosaicos da vida de Alex parece optar por toda uma série de clichés, até mesmo a sua resolução, que não deixa de ser uma fuga “mágica” que elimina os problemas que foram sendo acumulados e promete abrir-lhe um caminho positivo para regressa ao ponto banal de partida que constituía a sua vida. Não obstante estas grandes limitações a nível da narrativa, Sin Titulo confirma que Stewart sabe quais são os instrumentos gráficos, estruturais, visuais, cromáticos, a utilizar conforme os momentos que quer moldar.

15 de agosto de 2013

Susceptible. Geneviève Castrée (Drawn & Quarterly)

Tendo em conta o modo como esta jovem autora tinha apresentado uma fiada de feéricas histórias, de narrativas enigmáticas, com uma abordagem colorida forte e aberta ao não-naturalismo para melhor explorar temas surreais, não foi sem alguma surpresa depararmo-nos com um seu projecto alongado e plenamente integrado em géneros mais contidos.
É possível que Susceptible possa ser descrito como um livro autobiográfico, mas sem querer assumir esse pacto de modo imediato ou claro. Em vez de “Geneviève”, a personagem principal, a criança e depois adolescente, é tratada por “Goglu”, mas deixa-se em aberto se seria a alcunha ou diminutivo familiar, etc. Além do mais, se recorrermos a informações extratextuais, poderíamos dizer que existem parecenças físicas entre a autora e a personagem (mas também com todas as personagens femininas que a autora tem colocado nas suas histórias curtas, e se olhássemos para o trabalho de Hellen Jo, veríamos fortíssimas semelhanças entre as personagens de ambas as autoras, cujas características parecem ser de facto partilhadas com os rostos das autoras respectivas, mas não há nada de comum entre os rostos das autoras numa comparação directa, o que nos deve alertar para os perigos destas “transposições” estilísticas dos desenhos).
Não se tratará de auto-ficção, tampouco, género para o qual seria necessária uma clara inscrição da parte do autor. Se a autobiografia é já em si mesmo um género “híbrido”, “impuro”, complexo, talvez possamos aqui compreender uma integração do livro menos no género propriamente dito do que numa “dimensão” ou “modo autobiográfico”, como o é compreendido por teóricos como Lawrence Buell ou Leigh Gilmore. Aliás, de acordo com esta última, num seu estudo de casos-limite que coloca em causa uma ideia agora ultrapassada de autobiografia (a história dos “grandes homens”, representativos de todo o género humano), e a complicada questão da relação entre esses textos e a verdade jurídica, aprendemos as seguintes palavras, aplicáveis sem esforço neste projecto de Castrée: “No encontro imaginário com tais juízos [de verdade, de importância histórica, etc.], muitos escritores procuram outras bases que não as do testemunho explícito para a auto-representação. Ao desviarem-se do centro da autobiografia na direcção dos seus limites externos, transformam delimitações em oportunidades”.  
Um dos pontos a desfavor dessas inscrições é que, estruturalmente, no que diz respeito à narrativa, não estamos perante uma linha contínua e ininterrupta. Bem pelo contrário, a autora opta por apresentar sucessivos capítulos ou episódios, a maioria deles com títulos próprios (“fogo em casa 1”, “nós aguentamos”, “adeus”, etc.), alguns dos quais esgotando-se numa página, outros expandindo-se por uma mão-cheia delas, e sem que existam elos de ligação causal ou declarados entre as partes. Quer dizer, caberá ao leitor, por uma razão lógica de cronologia e de associação às personagens centrais a assunção de que se trata de “uma mesma história”, e não apenas de anedotas desconexas, contribuindo cada uma delas para a imagem em progressiva construção – como é próprio de uma narrativa de vida – de Goglu. Já no que diz respeito à linguagem ou estruturas mais tipificadas da banda desenhada, notamos como a autora tenta cumprir os arranjos mais clássicos de vinhetas regulares, ou oscila entre várias estratégias, mas o seu maior conforto está em desenhar as personagens em espaços “soltos”, sem delimitações, e deixando-as flutuar na mancha de composição (um pouco à Chester Brown, mas sem as molduras). Com excepção da capa, todos os desenhos são a preto-e-branco, com linhas suaves e aguadas, como se a rememoração (adivinhada, projectada) obrigasse a essa ilusão, abandonando a mais costumeira abordagem multicolor e vívida da autora. A sequência inicial, que vai desdobrando uma muito curiosa, exacta e belíssima metáfora visual – a da relação entre as qualidades inatas e as adquiridas do seu humano mostrando a relação física entre o corpo da menina e umas plantas crescendo e enleando-se no seu corpo – é talvez a parte mais próxima de trabalhos que conhecíamos anteriormente (espalhados em títulos tais como Drawn & Quarterly Showcase, Kramer’s Ergot, The Drama, etc.).
Filha de uma mãe québecoise (de quem herda o – um dos – sotaque “alveolar” do francês canadiano, como se pode comprovar ao escutar os seus projectos musicais em nome próprio ou sob outras designações, Woelv, Ô Paon – mais: poderíamos arriscar-nos a querer ler a sua caligrafia, de letras enroladas sobre si mesmas como fios de telefones antigos ou gavinhas, sem interrupções, como “traduzindo” essa musicalidade?) e de um pai anglófono da Columbia Britânica, e com uma família alargadíssima brevemente mencionada, o enquadramento familiar expande desde logo uma ideia do Canadá cosmopolita e urbano que poderá ser criado pelas leituras de outros autores de banda desenhada mais famosos (Chester Brown, Seth, Julie Doucet, ou mesmo o imigrante Joe Matt). Adiante, falaremos de uma das dimensões como isso impacta o tecido social do livro.
Sendo as relações imediatas e influentes sobre a jovem Goglu o mais importante, em alguns aspectos os episódios revisitados recordarão um tom geral idêntico ao de Phoebe Gloeckner, mas sem que haja a presença de episódios brutais, traumáticos ou de miséria dessa outra autora. Sem querer impor hierarquias nas experiências de vida, claro, e não negando os aspectos de pobreza que são mostrados em Susceptible, estamos ainda assim num contexto relativamente “seguro”. Se bem que o consumo de drogas “leves” e os vários parceiros amorosos da mãe, as festas a que leva a filha, e depois mais tarde alguns dos abusos verbais e emocionais quer da parte da mãe quer da parte do namorado, sejam tudo factores possivelmente escusados mas a que Goglu é exposta, e o próprio comportamento de Goglu na adolescência siga um caminho expectável de risco (bebedeiras, drogas, etc.), ponham em causa essa consideração de “segurança”… Enfim, são pequenos traumas, pressões que moem, mas não necessariamente catastróficas, e são eles os limites éticos que são colocados no centro da narrativa. E na verdade, são as relações pessoais, sobretudo com a mãe e o namorado desta (os nomes parecem ser retirados de uma obra alegórica: Amer e Amère). Mesmo a forma como se abordam os dois momentos maiores de crises emocionais, físicos e psicológicos – um aborto e uma tentativa de suicídio – eles acabam por não ganhar uma dimensão esmagadora, mas antes integram-se nesta narrativa de vida como mais uma experiência que serviria para a consolidação da personalidade independente da protagonista e mais uma peça para a sua partida do lar materno. Ou seja, na economia da narrativa elas não assumem um papel preponderante em relação a outros, não se procuram nenhum melodrama (o que não implica ter consequências a nível de representação política, sexual, etc.). Se lêssemos estas informações de uma forma exclusiva e redutoramente biografista, poderíamos reler algumas histórias anteriores de Castrée, que parecem rondar o tema da sexualidade e maternidade, à luz desta informações, mas há riscos nessa tomada de posição.
Apesar de toda relação ao enquadramento nacional, a paisagem do livro de Castrée é a uma escala intimamente humana. Quase todos os enquadramentos das imagens têm sempre a figura humana no seu centro, a corpo inteiro ou em variações de planos americanos (nesse aspecto Castrée revela uma forte influência de Julie Doucet, se bem que sem o atravancamento gráfico dessa outra artista), e é muito raro que existam momentos de contemplação das paisagens naturais ou urbanas, apesar da importância que os vários espaços, as suas travessias, as mudanças, implicam na narrativa. A própria nota de apresentação do livro fala de “uma exploração trans-canadiana da identidade”, mas essa dimensão não ocupa um lugar de destaque explícito. Uma mudança para um subúrbio, por exemplo, levanta de imediato questões sociais: a imigração, a gentrificação, o racismo, etc., mas apenas testemunhamos a pequena Goglu a desempacotar os seus livros e brinquedos. Tendo em conta a expansão do país, as políticas intricadas de espaço, solo, etnias, idiomas, separatismos, e cujas feridas da história ainda não estão totalmente saradas, não nos deve surpreender que essas questões de memória cultural colectiva estejam “ausentes” em Susceptible, pois não estão (sobretudo sob a forma de livros, revistas e filmes que agora pertencerão a um conjunto nostálgico de referências), mas devemos antes estar atentos em como elas se expressam através da escala familiar ou das experiências pessoais de Goglu (para uma experiência paisagisticamente oposta, veja-se o filme One Week, de Michael McGowan).
O livro é uma experiência tranquila – ou talvez de uma tensão contínua que não chega a explodir, pois não precisa de explodir para semear a sua intensidade. É também uma tradução exacta de alguns dos sentimentos ao se crescer em oposição às ideias que os pais nutrem em relação aos seus filhos, sobretudo quando essas ideias são cozidas na ignorância e no egoísmo, na surdez e indiferença para com as personalidades dos filhos. Não se tratando de um trabalho de testemunho jurídico, não precisamos “do outro lado”. Deve-nos satisfazer esta construção narrativa da pessoa (verdadeira ou ficcional, ou mesclada). Com efeito, independentemente da inscrição de género de Susceptible (na autobiografia, auto-ficção ou ficção total, etc.), não pode haver dúvida de que estamos perante um importante exercício de construção de identidade (que incorpora necessariamente o próprio acto, ou pelo menos a promessa, de criação textual que lemos), recordando-nos uma frase de Michel Foucault, que tanto alertou para a necessidade do desaparecimento do autor para que pudéssemos, enquanto leitores, enfrentarmos os textos de modo directo e sem grilhões preconcebidos. Diz o filósofo que “on écrit pour être autre que ce qu’on est”.

20 de julho de 2012

Baba Yaga and The Wolf/Wax Cross. Tin Can Forest (Koyama Press)

Adeptos de Promethea ou de Hellboy encontrarão aqui seguramente um fio que se mantém no rumo comum dessas outras obras: misticismo, folclore, lendas, magia, entrega às forças ocultas, nocturnas, oníricas, telúricas, ctónicas, lunares, estelares, sobrenaturais que navegam ainda nos interstícios do saber humano. Como usar a banda desenhada numa função mágica, ou como usar elementos encantatórios para conjurar um acto poético. (Mais)

18 de agosto de 2011

Paying for it. Chester Brown (Drawn & Quarterly)

Este não é um livro que possamos de um modo fácil dizer que “gostámos” ou “não gostámos”. Sendo um livro de argumentos, e complexos, tampouco será fácil dizer que com ele concordamos ou discordamos. Se há algum aspecto de imediatamente positivo a salientar pela própria existência de Paying for it é o facto de ser um livro que nos obriga a reflectir profundamente sobre o seu tema, a abanar as nossas convicções e conhecimentos do mundo e, senão a tomar partido, pelo menos a munirmo-nos dos instrumentos para ponderar que partidos poderá haver a tomar.
Este livro dá conta do recurso de Chester Brown a prostitutas para relações sexuais. Brown explica como num momento da sua vida abandonou a necessidade de tecer relações amorosas, que vê como “egoístas” e “necessariamente” conducentes à dor, ao ódio, a vitimizações e maus-tratos, próprias e alheias, mas, uma vez que sentia necessidade de sexo, encontrou nas prostitutas não apenas uma solução, mas a solução “lógica”. A partir daí, o livro não apenas mostra os episódios desses encontros, os preparativos, a situação em si e as consequências, mas também as discussões que tem com os amigos (Seth e Joe Matt, conhecidos autores de banda desenhada e conhecidos companheiros de Brown, aparecem várias vezes), e a argumentação em torno da sua defesa do trabalho sexual. Como lógico, como consequente, como até algo que deveria ser normalizado. Devemos desde já dizer que este brevíssimo resumo não dá conta da complexidade e riqueza que Brown incute neste seu livro, e será impossível poder responder a todos os seus elementos e linhas de fuga.
É uma daquelas obras que nos obriga a, quando olhamos para ela, olhar para o mundo onde se integra e que a rodeia, e apercebemo-nos que estamos nós mesmos no seu interior. O que Chester Brown apresenta é um vórtice para o qual somos sugados, e é difícil - tendo em conta até não apenas a identificação semiótica que ocorre em relatos na primeira pessoa mas a empatia psicologizante que pode surgir nesse diálogo (autor/narrador/protagonista e leitor/espectador) - não sentirmos no corpo uma resposta emocional - mais ou menos positiva ou negativa, conforme os casos. Se obras existem que merecem o nome de “controversas”, de fio a pavio, Paying for it é uma delas, como raras vezes ocorrerá, pelo menos, no mundo da banda desenhada. Eventualmente poderíamos agregá-la a outras obras panfletárias ou de posicionamentos ético-políticos claríssimos, como a obra de Squarzoni ou de Sue Coe, mas ao passo que esses outros autores elaboram o discurso respectivo de uma forma equilibrada entre a paixão argumentativa mas num grau suficientemente afastado em termos pessoais, para poder criar o espaço necessário à reflexão fria (condição sem a qual o pensamento não pode ocorrer), Brown afunda o discurso no mais profundo âmago pessoal. Dessa maneira, não somente emergem as contradições inerentes à experiência humana como elas tomam conta de todo o discurso, como veremos.
Para além do relato em si - o texto de banda desenhada -, Brown utiliza profusamente notas finais sobre esse texto central. Elas são parte integrante do texto total do livro. Não são um mero complemento. A falha da sua leitura faz com que a experiência de Paying for it seja truncada. Se em Watchmen a falta da leitura de todos os materiais não-banda desenhísticos, por assim dizer, levava a que a trama diegética se empobrecesse, neste caso o que sucede é a diminuição da máquina de pensamento e argumentação que Brown quer montar. Dizer que se ele quisesse que se lessem aquelas informações as deveria ter integrado na própria banda desenhada (tal como quem diz que o que está em notas de rodapé ou parêntesis deveria estar no corpo de texto se é mesmo importante) é querer negar as várias formas de moldar o discurso, diminuir a oferta cromática das formas de enunciação. E esta forma de criar o discurso já não é, de todo, nova para os leitores de Chester Brown.
O livro levou a grandes paixões na sua discussão. Extremas, por vezes. Todavia, repetimos, menos nos interessa tomar uma decisão final do que dar a ver a maneira como Chester Brown consegue suscitar uma flutuação da nossa própria leitura sobre o tema em si. Sendo portugueses, é natural que façamos uma leitura diferente daquela que os originais canadianos (e norte-americanos) possam fazer. O nosso contexto é diferente. Portugal é um caso curioso, uma vez que a prostituição em si - a “venda” de serviços sexuais - não é crime, mas apenas o lenocínio (a fomentação da prostituição), alterando desde logo as políticas e formas de negociação, efectiva e social em geral, que a prostituição tem no nosso país.
E chame-se “prostituição”, “trabalho sexual”, “trabalho erótico”, ou até “pouca vergonha”, a própria nomenclatura remete de imediato à variedade das abordagens existentes. Não há qualquer homogeneidade em quaisquer dos actores envolvidos deste verdadeiro “facto social”, para utilizar o termo fundador de Durkheim. Ele é coberto de multiplicidades: “multi-dimensionalidade, multi.contextualidade, multi-actuação, multi-relacionamento e, sobretudo, existência de multi-actores”, reza a conclusão de um estudo da Professora Alexandra Oliveira (“Actores do trabalho sexual: Características comuns e traços distintivos”, in Psicologia: Teoria, Investigação e Prática, no. 2, 2003, pp. 169-186). Economia, moralidade, desejo, expressão sexual, distribuição de papéis sociais no que diz respeito a género e sexualidade. Mas questões de idade, de nacionalidades, de classes sociais, de políticas de emigração, de construção do imaginário, de estereotipia da pessoa humana, dos outros e de nós mesmos, terão igualmente o seu papel. Paying for it não tenta de forma alguma responder ou abraçar todos estes aspectos, mas trazendo para o centro do seu texto uma experiência pessoal, e única, é sem dúvida um contributo vincado.
É impossível reduzir esta questão sob seja que perspectiva for, pois ela pertence à sociedade em geral e a nenhum grupo particular, apesar do feminismo por vezes querer fazer avançar uma espécie de exclusividade ideológica, ou até mesmo moral e ontológica, sobre ela. Esse é um dos pontos abordados por Chester Brown nas suas notas, em que “responde” a vários livros, de feministas, que lê sobre a situação em que ele mergulha enquanto professo “john” (a palavra que se utiliza informalmente para “cliente”). A interlocutora principal é Sheila Jeffreys, autora conhecida pela sua advocacia feminista contra a prostituição. Joana Sales, autora de uma dissertação de Mestrado sobre o(s) posicionamento(s) do(s) Feminismo(s) em Portugal em relação à prostituição, explica-nos que o que impera é a variedade. Isto não é surpreendente, não só pela própria diversidade interna àquilo que aparentemente se homogeneíza no nome Feminismo, como pela própria diversidade da experiência humana - de todos os intervenientes da equação - que é conducente a essa situação díspar. Paying for it alerta constante e precisamente para os perigos das generalizações, se bem que ele mesmo, enquanto acto, não seja também livre dessa acusação. No entanto, grande parte do(s) discurso(s) feminista(s) envereda pela vitimização da prostituta, isto é, constrói uma imagem da prostituta enquanto vítima, desprovida de amor-próprio, underdog, o que, podendo ser aplicável a alguns casos, não é de todo o perfil da esmagadora maioria delas, e é muito mais importante escutar em primeira mão as trabalhadoras sexuais - que é o que Brown aparenta fazer, pelo menos - do que criar discursos ad hoc e que encaixa na perfeição em estruturas discursivas preconcebidas (venham elas de onde vierem).
Outros dos argumentos centrais de Brown é a do seu posicionamento pela descriminalização da prostituição, transformando-a numa livre relação (económica) entre a prostituta e o cliente (ou prostituto e o cliente, etc.). “A descriminalização é uma posição não intervencionista. A legalização vincula uma descriminalização inicial e medidas intervencionistas adicionais de regularização estatal (licenças, check-ups médicos, designação de locais onde os «agentes» possam trabalhar legalmente). E a regularização pode funcionar, embora a sua eficácia dependa das expectativas e dos padrões criados, e varie com a zona do «projecto»” (José Martins Barra da Costa, in “Prostituição versus Legalização. A questão das drogodependências”). Esta é precisamente a polarização - , ou melhor, os dois pólos de um outro pólo que é um posicionamento positivo, digamos assim, em relação à prostituição, cujo outro extremo seria a manutenção da sua criminalização - debatida em Paying for it (sobretudo nas notas, e entende-se aqui portanto como a situação em Portugal difere). Brown é então a favor da descriminalização, uma vez que na sua óptica a legalização manteria a existência de casos ilegais, e, seja como for, muitos dos instrumentos que lhes estão associados atingem a plena liberdade humana das pessoas. Um exemplo claro: se nos parece (a nós, cidadãos “normais”) óbvio que as prostitutas devem ter check-ups médicos obrigatórios, não será essa mesma obrigatoriedade uma ingerência na esfera privada dessas mulheres (e homens)? Ou devem ser tratados como animais licenciados? Qualquer tipo de legislação agressiva - criminalização do cliente, obrigatoriedade de testes médicos, etc. - leva sempre, necessariamente, a uma só consequência: a deterioração das condições de trabalho das próprias prostitutas (através da sua dificultação, da quase urgência em tornar mais ocultos ainda o contacto, a negociação, e a transacção).
É preciso ter cuidado para não se generalizarem casos que existem de facto - como o da escravatura contemporânea, o tráfico humano para vários fins, com a opção pelo trabalho da prostituição, que pode tomar vários contornos: na rua, em apartamentos, e agências de escort, em casas de alterne, etc. Ao escreveremos “opção”, não queremos obviamente dizer que é uma opção social e economicamente livre em termos absolutos, mas qual delas é? Não somos todos nós seres cujas circunstâncias para as quais nascemos, e não optámos, têm o seu papel na forma como nos tornámos hoje? Se houver alguma dimensão ainda a agravar essa palavra, tratar-se-á do facto de que a prostituição envolve um contacto íntimo que não é usual em qualquer outra profissão, mas essa via de argumentação é também armadilhada, pois começa já a abrir-se para terrenos de moralidade judaico-cristã, na sua negação do corpo (e dos seus inerentes prazeres), que nos impede de conseguirmos atingir qualquer fundamentação objectiva (isto é, partilhável). Há também uma dimensão doutrinária que encontra sempre forma de se imiscuir na questão, e que tenta, através da imposição de um qualquer princípio ético, impor-se e mostrar-se como “correcta” - mas, por mais bem construído que ele seja em termos de argumentação e pareça irrecusável, como aceitarmos um edifício ético que não nos pertence apenas por uma questão de construção de argumentos?
Robert Crumb, na sua introdução - seguramente que todos os detractores de Crumb, não sem alguma razão, a propósito da misoginia de parte do seu trabalho encontrarão nesta participação mais lenha para a fogueira -, sublinha o modo de Chester Brown se representa a si mesmo sempre da mesma maneira, de rosto impassível, um traço inexpressivo a representar a boca cerrada. Lembrar-nos-íamos dos “olhos vazios” das lentes de óculos de Sacco, mas onde o repórter de iempregava essa estratégia de um modo diferenciador das restantes personagens para, dessa maneira, se re-inscrever de um modo significativo na narrativa que industriava em seu torno, Brown apenas substancia o afastamento emocional que o caracteriza e, assim, a todo o texto. Mesmo a maneira quase-mecânica como compõe as páginas - que já vinha de trás - não melhora a construção do texto. É como se estivéssemos perante uma mera cadeia de frases simples (sujeito, predicado, complemento, sujeito, predicado, complemento, etc.). Não diremos que as vinhetas são substituíveis entre si, ou que determinados trechos estão a mais ou cuja ordem se poderia alterar sem derrubar o texto em si, mas simplesmente que não há uma procura por um moldar de segundo nível - ao nível das páginas, da possibilidade tabular e especular do livro; Paying for it está demasiado absorvido no seu fito principal: argumentar. As opções por utilizar com parcimónia planos mais aproximados (e as mais das vezes arregimentados a representação de si mesmo, até de pormenores mais íntimos ou pornográficos, se preferirem, numa gritante centralidade do pénis), a repetição de enquadramentos e posicionamentos das suas personagens, a perspectiva ligeiramente de picado durante as representações das relações sexuais “apagando” todo o ambiente (tudo aspectos apontados por outros críticos - repare-se como a prancha aqui ao lado se mostra como uma "câmara" desligada da acção, num movimento lateral, e que apenas fica um momento, para logo depois partir), sublinham ainda mais essa natureza desapaixonada.
Brown várias vezes explica como quer proteger a identidade e integridade das prostitutas que acabam por se tornar personagens deste seu livro. Na sua discussão sobre o livro de Jeffreys, Brown chega mesmo a criticá-la pelo tipo de generalizações insustentáveis que essa discussão encaminha (como por exemplo a alegação de que todas as prostitutas o são por terem nas suas histórias pessoais um episódio - originário - de violência sexual, abuso infantil ou similar), e quer sustentar que o acto transaccionário da prostituição nada tem de violento, mas se reveste somente de uma qualidade comercial. Mas se Brown deseja respeitar a integridade das prostitutas e negar a violência do acto em si, como evitar olharmos a sua estratégia de representação enquanto um acto de violência gráfica? Brown diz que não quer dar a ver sinais óbvios de identificação dessas mulheres, mas poderia ter optado por muitas possibilidades: se o sinal era uma cicatriz ou uma mancha, podia “apagá-las”, se a mulher x era loura, que a pintasse morena, e assim sucessivamente. A opção por mostrar vinhetas com os seus rostos cerceados não veicula essa não-violência. Bem pelo contrário, recordando-nos das estratégias de Julião Sarmento, roçam um certo teor de misoginia, através dessa negação actancial e de representação das mulheres. Mais, nas notas, a forma de representação dos potenciais críticos da sua própria argumentação usa fórmulas gráficas convencionais de negatividade, enfraquecendo-a (diferente estratégia da utilizada em I Never Liked You). É neste sentido, porém - mesmo que isto soe um dislate ou uma verdade à la Palisse -, que Paying for it revela que é uma obra de banda desenhada, cuja análise não se pode cingir somente a questões ora de conteúdo ora formais, ou apenas relativas à histórias ou apenas relativas às imagens. Tudo se interpenetra, se redefine, se requalifica mutuamente e se coalesce num só bloco de sentido.
É extremamente difícil não ficar preso nos paradoxos levantados por Brown. Das muitas críticas que pululam na internet e que pudemos consultar, algumas elogiam o livro como um dos actos mais corajosos de Brown, chegando mesmo ao ponto de ver em Paying for it um gesto que faz muito pela “defesa” (não sei se é a palavra certa) da prostituição no Canadá, o que nos parece um extremismo mal-informado. Outras apelidam Brown de “violador” (rapist), o que cai noutro extremo. Mas Brown é culpado também de alguns extremismos e desequilíbrios dele próprio. Toda e qualquer experiência humana, passível de ser generalizada por um nome, é em si mesma heterogénea - como ele próprio admite - logo, a comparação entre cada um desses agrupamentos em nada ajuda ao seu fortalecimento social. A prostituição feminina não pode ser comparada de forma equivalente à prostituição masculina (alguns dos domínios poderão ser idênticos, mas noutros são radicalmente diferentes), e muito menos à homossexualidade, por exemplo. Brown faz um pequeno exercício de futurologia, que ele mesmo apresenta como finalmente fútil, no qual imagina um futuro em que a troca de dinheiro por relações sexuais, no seio dos relacionamentos humanos correntes da sociedade, não levantarão quaisquer tipo de resistência. Brown, como vimos, afirma que isso se deve ao facto de as relações amorosas serem elas mesmo conducentes a jogos de poder e de angústia e dor que não merecem ser respeitadas. O problema está em que Brown cria esse discurso por, em primeiro lugar, construir essa sua visão sobre a sua própria experiência pessoal, a qual, como ele mesmo e o seu amigo Seth explicam, é muito sui generis, e não pode ser generalizada. Brown é, em muitos aspectos, um autista sentimental (Seth chama-o de “robot”). Essa é mesmo uma das facetas que ele explora nos seus livros (I Never Liked You, por exemplo). Compreendemos o perigo que existe aqui em querer, a partir dos seus livros - autobiográficos - querer reconstruir uma dimensão psicanalítica que desvendaria as razões desses seus traços, mas abster-nos-emos dessa leitura, para nos cingirmos à consideração das informações enquanto “personagem” dos seus livros, ou melhor, à personagem-Brown que é apresentada nos seus livros. Mesmo tendo em conta que provavelmente isso é já um abuso, uma vez que os livros não têm chamadas entre si o suficientemente articuladas para tornar essa associação possível, mas como dissemos no início é extremamente difícil não o fazer.
Brown queixa-se da “injustiça” das relações humanas, mas infelizmente para Brown, ele parece falhar ao não entender que as relações humanas, para mais as amorosas, nada têm a ver com justiça ou equilíbrio. Não há qualquer tipo de democracia ou plenitude no amor. Não queremos entrar em discursos impressionistas demais, mas a verdade é que não há racionalização possível no que diz respeito ao amor. Ele “é fodido”, como quer Esteves Cardoso, e com… razão. São as pessoas que nos são mais próximas que se tornam as nossas mais imediatas vítimas da inconstância, irascibilidade, desconchavos, estupidez. É a resistência a esses episódios aquilo que muitas vezes fortalece - mesmo que “não haja direito”, mesmo que “seja impossível aceitá-lo” - as raízes desse mesmo amor. Brown quer abdicar disso. Mas no fim, Brown acaba por encontrar na prostituta Denise alguém com quem criar um elo monogâmico (ainda que apenas do seu lado, tanto quanto podemos saber, e ainda que pago). Ele encontra nessa relação tudo aquilo de que “fugira” das relações “normais” anteriores. A última frase do texto central (a banda desenhada) é estranhíssima: “Pagar por sexo não é uma experiência vazia se estiveres a pagar à pessoa certa”. Significará então que Brown havia pago por sexo antes e tinha sido uma “experiência vazia”? Mas não poderá haver também uma “pessoa certa” sem precisar de pagar? Esta é talvez a maior contradição de Brown neste livro (nesta argumentação complexa). E a maior fraqueza. A qual, talvez - um talvez cheio de dúvidas, pois não pode ser possível, para já, ter uma resposta certa -, seja também a matéria da força de Paying for it.
Nota final: agradecimentos a Joana Salles, da UMAR, pelas primeiras discussões e ajuda e à Professora Alexandra Oliveira, da Faculdade de Psicologia e das Ciências da Educação da Universidade do Porto pela sua disponibilidade, simpatia, divulgação de artigos e estudos. Sem as duas, não poderia ter escrito a parte sobre o contexto português, de forma a evitar erros mais crassos (os que ficaram são da minha responsabilidade), o que também alertou para alguns prismas de leitura do livro de C. Brown.

8 de agosto de 2011

Palookaville # 20. Seth (Drawn & Quarterly)

De acordo com muitos autores, inclusive Charles Hatfield, a importância da serialização da banda desenhada é algo que a determina não apenas em termos económicos, mas criativos e ainda no que diz respeito às estratégias narrativas a que se permite. No primeiro aspecto, é claro: estejamos a falar de projectos mainstream, nos Estados Unidos ou na Europa (França, sobretudo), em que os autores são pagos pelo trabalho de forma imediata (work for hire, preços por prancha, etc.), ou de projectos mais alternativos com contratos de percentagens sobre preços de venda, a serialização significa a entrada de algum valor monetário de forma regular nas contas dos autores. E, assim, as suas carreiras tornam-se mais sustentáveis e conducentes, por vezes, a projectos maiores. Mas há quem opte precisamente por outras formas de trabalho, como Craig Thompson, que optou por não publicar serialmente Blankets, e conduzindo ao enorme livro que se conhece.

Em termos narrativos, a serialização permite que se explorem ritmos diferenciados, desde unidades contidas em cada publicação regular (as duas a quatro páginas pré-publicadas na revista antológica, o comic-book, ou o álbum, o capítulo) a unidades maiores (a série, o “arc” ou “run”, o trade paperback, a série limitada, o conjunto final, etc.). Cada caso particular, nas suas circunstâncias precisas, revelarão sempre resultados diferentes. Falarmos de algo pertencente aos universos de marca registada das duas grandes editoras de super-heróis (um episódio do Homem-Aranha, por hipótese) não é o mesmo que uma obra criativamente circunscrita (Blankets) não é o mesmo que uma história completa numa série de capítulos diferenciados (Sandman: The Doll’s House) não é o mesmo que a hipótese de um conjunto sempre aberto (Palomar) não é o mesmo que o esgotar de uma produção (The Complete Little Nemo in Slumberland).

No que diz respeito à criatividade, também essas diferenças se farão sentir conforme o contexto, desde textos cujo packaging está preso a fórmulas de uma empresa à possibilidade do autor poder controlar todo o seu aspecto, e até fases de produção.

Tal qual o seu colega e amigo Chester Brown, que há muito abandonou - para preocupação dos seus leitores e seguidores esperançosos da vida da Kupifam - o comic book Underwater, para se dedicar a projectos mais precisos e planeados, primeiro com a saga de Louis Riel e, há pouco tempo (e dele daremos conta muito em breve), Paying for it, é agora o artista Seth que abandona a fórmula da revista para abarcar a do livro. Curiosamente, Seth não abandona o título, nem sequer a numeração, logo Palookaville conhece aqui uma nova vida. Também é verdade que o último número havia saído em 2008 e mesmo antes havia sido extremamente irregular, saindo com intervalos de anos. Foi nessa revista que Seth mostrou as suas primeiras histórias mais autobiográficas, inscrevendo-se com facilidade no género mais em voga então nos inícios dos anos 1990, que surgiu It’s a Good Life if you don’t Weaken e as duas primeiras partes de Clyde Fans, ainda em curso.

Com este vigésimo número, as regras alteram-se. Um pequeno texto introdutório explicita tudo, a sua relação com o editor, o seu ritmo de criação e as vontades de criação, etc. A partir de agora, Seth promete, Palookaville será publicado como um pequeno volume cartonado, incluindo não apenas os próximos episódios de Clyde Fans, mas outros materiais heteróclitos. No caso presente, encontramos uma pequena história (“Calgary Festival”) que marca, de certa forma, o retorno a um registo autobiográfico que havia abandonado há muito (e desenhado de uma forma mais caligráfica e resumida do que o que compõe este livro/número), algumas páginas retiradas dos seus diários gráficos numerados (informação que nos leva a crer que possa haver não somente um desejo de fazer novas recolhas como Vernacular Drawings mas, quem sabe, imaginar-se uma edição completa no futuro) e, mais importante ainda, um pequeno dossier sobre o seu projecto, artisticamente não-identificado, Dominion City.

Em relação a Clyde Fans, os leitores de Seth estarão habituados aos ritmos de flâneur e fragmentado a que nos habituou. Há um passeio dado pelo velho Abe, mas num momento em que ainda lhe restava uma fímbria de actividade à frente da fábrica de ventoinhas, que apresenta aquelas intricadas construções de Seth que misturam a naturalidade sequencial da banda desenhada, com a da enumeração mnemónica, a construção de padrões texturados de imagens, e ainda outras configurações de múltiplas imagens em estruturas complexas. Essas páginas alternam-se com outras mais activas, digamos, em que se exploram as relações laborais instituídas pela fábrica, e a sua dissolução face à crise económica dos anos 1970. Um “establishing shot” faz-nos penetrar nessa fábrica de uma forma que nos recorda as estruturas desapaixonadas de Chris Ware, mas o uso de uma cor azulada, difusa e melancólica, integrada no relato reminiscente do velho Abe, transforma-a numa possibilidade de retorno que se vai negando com outros pontos da história. O círculo familiar desta saga aumenta também, englobando os pais, mas apenas para o fechar de uma forma mais veemente logo a seguir. Como dissemos, a serialização permite que se procurem ritmos de respiração diferenciados, e se o tipo de prazer alcançado com a leitura de mais um episódio desta saga familiar se expressa de alguma forma, ela terá com toda a certeza uma vida mais acabada na sua integração final no cômputo final.

Dominion City é um projecto que se pode chamar, pensamos nós, de escultórico. Trata-se de modelos de edifícios feitos em cartão de caixas de embalagem, pintados com tintas baratas, mas criados com uma intensidade muito pessoal. Seth já havia discutido este projecto com Todd Hignite, num dos números da Comic Art, depois reunido em In the Studio. A história é explicada nos textos de Seth, aqui muito nítidos e directos: o que começara como uma breve anotação sobre um espaço para um eventual novo projecto transformar-se-ia no próprio cerne desse projecto; o que era apenas um apoio para a construção do espaço ficcional de personagens (uma passagem secundária com Clyde Fans, mais central com George Sprott) tornou-se a personagem principal; o que havia começado com uma distracção criando-se um ou dois modelos de edifícios que nunca foram, para viverem no ambiente nostálgico de Seth, expandir-se-ia para uma dezena de objectos similares e coordenáveis entre si. O convite à sua exposição não tardou, e assim ganhou uma vida própria.

Dominion City traz toda uma série de questões importantíssimas e vivas na contemporaneidade da banda desenhada. A literatura e o cinema, para não falar de todo o território da visualidade gráfica, já conheceram vários casos em que os espaços, sejam tão reduzidos como um quarto ou amplos como uma cidade, ganham uma prevalência em relação às personagens antropomórficas. A própria banda desenhada, através de projectos como “Here”, de Richard McGuire, The Cage, de Martin Vaughn-James, e algumas das dimensões na obra multifacetada de Chris Ware, de Antoine Marc-Mathieu, de Jochen Gerner, entre outros exemplos possíveis, oferecem abordagens comparáveis. É uma pena que Comics and the City não lhe tenha reservado um ensaio. Mais, a expansão tridimensional, até mesmo escultórica, da banda desenhada, teve também já outros gestos, bastando-nos talvez citar a Glömp X (que esteve patente, entre nós, na Bedeteca de Lisboa, em 2009). Dominion City faz convergir estas duas linhas. É ela a própria personagem principal do seu projecto (como o Fuji o era nos livros de Hokusai e outros), e é ela quem obriga o “leitor” a compreender as possibilidades expressivas, textuais e imaginárias da banda desenhada de uma forma bem para além do suporte livresco. Para além dos modelos (que não são feitos à escala entre si, mas ante a uma escala “mental” imaginada por Seth) dos edifícios, existe ainda um volume de exemplar único, um “workbook”, em que o autor projecta as virtuais paradas, personagens, episódios, mapas e eventos dessa cidade. Uma das exposições montou-a mesmo no interior de um escritório de atendimento ao cidadão. É uma cidade fantasma do norte do Canadá, mas que se torna passível de experienciar através da “leitura”, abarcando esta a visita ao espaço em que os modelos possam estar expostos.

Instaurar-se-á aqui uma pequena revolução? A máquina reguladora, conservadora e convencional da banda desenhada não é conducente a que se procurem instalar novas formas de fazer e de fruir muito rapidamente, a menos que haja uma superficialíssima ideia de inovação que esconda a manutenção das mesmas práticas editoriais e comerciais (falamos do uso de novas plataformas digitais para a leitura da mesma coisa de sempre). São em gestos como os de Seth, não apenas a nível do seu projecto artístico com Dominion City, mas na própria maneira de alterar o seu ciclo de produção/publicação com Pallokaville (o qual, acrescente-se, é por ele totalmente dominado enquanto objecto gráfico e físico), que encontraremos efectivos e saudáveis exercícios de expansão conceptual para esta área.