28 de novembro de 2008

A Metrópole Feérica. José Carlos Fernandes e Luís Henriques (Tinta da China)

A escrita, num projecto ilustrado (espectro no qual uma das secções é a banda desenhada), não pode ser considerada de modo isolado, mas sim na constituição de um texto final. Nos seis contos que compõem este livro não se nota qualquer divórcio entre uma dimensão e outra. No entanto, quando apreciamos uma dada obra de arte, não o fazemos num vazio, num vácuo existencial. Fazemo-lo num quadro de referências determinado, sendo um deles a associação à obra anterior de um (ou dos) autor(es).
A fórmula, se nos for permitida esta expressão, é idêntica àquela lançada com o primeiro volume das Black Box Stories, cujo primeiro e único volume existente até à data é Tratado de Umbrografia, cuja expressão gráfica foi também coordenada com Luís Henriques (mas outros se prometem, esperamos). Da produção imensa de ideias, situações, e micro-narrativas de Fernandes, abriu-se a possibilidade de as ver concretizadas e de ganharem corpo, através do trabalho de outros autores, mas ao mesmo tempo de tornar possíveis outras dimensões, novos corpos, portanto, com essas mesmas prestações. Os desenhos e estruturações de José Carlos Fernandes atingem uma característica muito própria, excelentemente adaptada ao domínio do absurdo, a uma ironia tétrica, mas os desenhos de Henriques permitem um outro tipo de respiração. De certa forma, poderemos considerar o primeiro volume de Terra Incógnita como a continuidade desse outro projecto, parte da obra contínua e a longo prazo de Fernandes (por ser um programa, diferentemente do que diz respeito a Luís Henriques).
O lugar em que A Metrópole Feérica se inscreve é muito claro. As mais das vezes se escreve sobre a cultura que emana da obra de José Carlos Fernandes, o que não deixando de ser verdade é nítido demais: os jogos são claros, o objectivo não é a construção de uma rede densa de referências, mas sim de um baralhar irónico delas mesmas, provocando um tipo de humor a que nos temos vindo a habituar: a criptogeografia é uma tradição literária explorada por toda a literatura utópica, de Swift a Swedenborg, de Calvino a Milorad Pavic, mas também pelo universo da ilustração, pela óbvia dupla de Peeters e Schuiten, mas cujo objecto mais acabado se encontrará possivelmente no Codex Seraphinus, de Lugi Serafini. A divisão dos relatos em cidades e terras imaginárias, e a inclusão de um pseudo-mapa na folha de rosto, e ainda a indicação de “vol. 1 promete desde logo novas explorações deste globo, mas as histórias revelam ser – exercícios típicos de José Carlos Fernandes – a exploração até às últimas consequências de desejos já expressos no nosso mundo: programas políticos (o comunismo ou o funcionalismo público pidesco-burocrático, com Trabântia), desejos psicológicos (o desejo de se ser ouvido e compreendido, com Babel), a violenta divisão do mundo dos que são apenas “ter”, cegos às suas implicações (Manata), a obrigatoriedade social de nos pautarmos por jogos de máscaras, papéis sociais e modos discursivos previstos (Fílon).
Não se terei o direito de falar de fragilidades, ou sequer de me arrogar do poder de ter expectativas quanto a terceiros – um crítico não trabalha sobre o eventual, nem sobre desejos, mas sobre o concreto, a obra existente que tem em mãos -, mas sinto em A Metrópole Feérica um abandono maior a toda uma série de jogos banais e clichés que não torna o livro particularmente desenvolvido. Também não há nenhuma possibilidade de falar de um livro desta natureza como de duas metades independentes: a escrita apenas existe no seio de uma narrativa transportadas pelas imagens, e estas apenas se coordenam de acordo com o fio narrativo imposto. No entanto, a panóplia de referências, as citações tornadas matéria estruturante e risível, a estranheza das transformações, umas mais óbvias que outras, são totalmente da lavra de Fernandes, e a sua tradução visual pertencerá a Luís Henriques, se bem que existirá um relacionamento interventivo mútuo.
Se há uma capacidade poética em despertar reescritas totais de vida na cidade de Khamsin, onde a mudança de chapéus leva a alterações de personalidade, de desejos, de direcções dos seus habitantes, e em provocar uma neblina melancólica na de Tangaroa, onde a inércia de um homem o faz formar fantasmas que nunca entenderemos decidir se reais ou não, Babel cai numa mera anedota sem grande profundeza, Trabântia e Manata arrastam-se numa banal crítica datada, Fílon é tão linear que com surpresa e desequilíbrio chegamos ao seu fim.
No entanto, o abandono aos clichés será mesmo o propósito de A Metrópole Feérica, querendo com eles construir um comentário a essas mesmas ideias. O rol de personagens queixosas na torre de Babel acumula-se até ao ponto de se tornar de facto irritante, e fazemos nossos os ouvidos de Deus, a rápida derrocada de Fílon é abrupta pois o choque e a obrigatoriedade que representa o estarmos perante nós mesmos não poderia ter outra forma, o quase distraído tom com que saímos de Khamsin está em consonância com o que ocorre a cada um dos habitantes da cidade ventosa, e as respectivas hecatombes de Manata e Trabântia impedem qualquer tipo de continuidade... A dimensão gráfica espelha ponto por ponto estas vontades narrativas, ou melhor, veicula-as, torna-as mais transparentes. Sobre a capacidade inventiva de Henriques já se disse muito, a sua competência, adaptação, multiplicidade, mas isso deverá constituir menos surpresa do que um entendimento maior pelo respeito por aquilo a que um texto obriga: títeres sem preenchimento para Fílon, rápidas tramas para Khamsin, intervenções de grafismo barato e colorido para Manata, opressivas manchas descoradas para Trabântia (com a única excepção da intervenção da cor que pode ser entendida tanto como símbolo ubíquo do regime, ponto nevrálgico do policiamento de Estado ou promessa de derrocada), uma pastosa neblina para Tangaroa, e uma perra estruturação, com figuras distribuídas à laia de antiga linguagem hieroglífica e monumental para Babel.
Nesta esfera do elemento que transporta a história, que lhe dá contornos, e como disse Sara Figueiredo Costa, no seu artigo do Expresso, não se trata nem de “virtuosismo gratuito” nem de “espalhafato visual”, mas sim de uma procura, e efectivo encontro, do melhor equilíbrio e modo de expressar o sentido profundo e matérico destas histórias. O que as torna então um veículo exacto para as mesmas, fazendo sublinhar o seu valor de breve apontamento do ridículo de todas e quaisquer utopias. Na última das histórias cita-se Cioran, autor conhecido pela sua apresentação da noção de utopia enquanto modelo de sociedade necessariamente paradoxal; em História e Utopia o filósofo fala algures de “infernos abstractos”. Devemos perseguir e criar estas ideias, estabelecermos os nossos futuros nelas, mas ter cuidado para não as concretizar finalmente. Ou nascerão estes infernos, explorados sem cerimónia e compaixão pelo livro presente.
Pequena nota externa à obra: estes livros provocam sempre celeumas, mais devedoras de defesas e ataques que se prendem com outros aspectos externos à obra do que da sua intrínseca vida. Comparar este livro com os restantes não faz grande sentido, uma vez que habitamos num país que nunca repôs uma ideia verdadeiramente desenvolvida de um mercado de banda desenhada. E há espaço suficiente para muitas experiências, tal como a carreira do próprio Luís Henriques tem demonstrado, mais interessado nas potencialidades que a criação de imagens tem (em ilustração infantil, poética, de banda desenhada, mais comercial ou mais independente, ou assim ou assado) do que na inscrição num qualquer nicho. Por outro lado, não há que atirar fora o bebé com a água do banho... José Carlos Fernandes tem tido a sorte, que se deve ao seu talento (mais desenvolto no lado da escrita), de ter sido editado e de ter encontrado espaços suficientemente amplos e visíveis para expor a sua obra. Essa circunstância não o torna “o melhor”, nem “o mais produtivo”, mas sim aquele que é mais visível. No entanto, esse papel ocupado torna-o alvo de críticas de circunstância que mais revelam do quadro social dos nossos editores do que do valor intrínseco de terceiros. Num mundo editorial onde a segurança e o lucro rápido reinam, as apostas devem e são feitas usualmente em programas ganhos à partida, no interior de uma rede de conhecimentos e influências mútuas. Acusar Fernandes de se encontrar numa dessas redes é não só irrelevante como é ofensivo implicá-lo numa crítica que se deseja séria. Fernandes não está sozinho, de modo algum, no panorama da banda desenhada portuguesa, e dizê-lo desse modo não revela apenas ignorância, mas interesses secundários. Que é um autor incontornável, não há dúvida, nem de que estabeleceu uma voz autoral forte, reconhecível e apreciada por um grande grupo de pessoas, muito diversas e com diferentes graus de entrega ao universo da banda desenhada. não há que torná-lo representativo senão dele mesmo enquanto autor, nem para o bem nem para o mal, nem para encómios bacocos e repetitivos nem para diatribes ao mundo.
Como disse atrás, não tenho qualquer direito a exercer uma preferência ou um desejo sobre o trabalho dos outros. Confesso que gostaria de encontrar em Fernandes um passo diferente, de maior fôlego, de uma estruturação diferente de imaginários diferentes, um outro tom. Há um lado que aprecia as micro-narrativas do absurdo ou do paradoxal, que procura autores como Slawomir Mrozek, Alan Lightman, Italo Calvino, António Pocinho, Mário Henrique-Leiria; mas há outro que gostaria de descobrir outros filões na sua escrita. Para que não ocorra o fenómeno, real e nocivo, da autofagia e da auto-epigonia.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, e à Sara Figueiredo Costa, pelas notas.

24 de novembro de 2008

City Stories 3: Reconstruction. AAVV (Łódzki Dom Kultury)

Por ocasião do (traduzindo) Festival Internacional de Banda Desenhada de Łodz (leia-se, “u-ódz”), na Polónia, e no seguimento de um projecto que vai na sua terceira edição, o City Stories resolve irmanar a cidade anfitriã com Lyon. Trata-se de um projecto que, a cada nova reunião de cidades, convida uma mão-cheia de autores polacos e outra mão-cheia de autores da cidade convidada (antes Moscovo e Londres) para que, juntos, construam histórias em banda desenhada que depois se reunirão num volume publicado pelo Festival. Com tudo o que de circunstancial e de encomenda que esta acção tem criaremos uma expectativa relativamente limitada, mas a mera possibilidade de nos dar a conhecer autores que nos passariam desapercebidos, forçando-nos a um melhor olhar o qual poder-se-á desenvolver de algum modo, já é meio-caminho andado para a atenção merecida.
O grupo de autores franceses parece ser mais unido, em termos pessoais, do que autorais. Por um lado temos Florian Bovagnet, Jérôme Dupré la Tour e Pierre-Marie Grille-Liou, que podem ser agregados no sentido de todos partilharem de um estilo de desenho solto, caligráfico, muito em voga em França e que pode dar frutos interessantes conforme o humor e desembaraço das histórias em que se empregam. la Tour, por exemplo, já contribui para uma das aventuras apócrifas de Donjon, mostrando-se ser um seguidor de Joann Sfar. O terceiro artista desdobra-se em várias frentes, não só na ilustração e banda desenhada, como ainda em algumas experiências ainda associadas à aprendizagem académica das artes visuais... Por outro, Grégory Demange mostra ser um autor mais virtuoso, o que deriva da sua formação de arquitecto, mas também da sua maior entrega enquanto escritor e quase qualidade de mentor dos restantes artistas em termos de buscas. O seu blog revela intermitentemente um diário gráfico que, não sendo rasgado, aproxima muitas experiências análogas.
Do lado polaco temos uma jovem escritora, Kamila Pawluś, um autor dito “completo”, Ireneusz Konior, que participa com uma história totalmente desenvolvida por si que explora um passado industrial já ultrapassado e que deixou mágoas, sobretudo nas máquinas, que se aproveitam para promover a vingança possível, Krzysztof Gawronkiewicz, de quem já faláramos aquando da publicação do seu álbum premiado (com Janusz), Essence, e uma desenhista, Berenika Kołomycka.
Encontrar-se-ão todas as combinações: histórias escritas pelos membros da “equipa francesa” e ilustradas pelos da “polaca”, o contrário, autores trabalhando sozinhos... A edição é bilingue e o livro reversível: cada capa mostra retratados os autores de cada uma das cidades, e é na língua respectiva, um lado em francês, o outro em polaco... (a capa, acima, é uma imagem compósita das duas). O que importa é a assunção de uma breve relação de cumplicidade e troca de olhares, que pode confirmar ou dissipar pontos de partida comuns ou distâncias intransponíveis. Como disse, são peças pequenas, e, se “reconstrução” se trata não somente de um sub-título dado posteriormente mas sim um programa dado a priori, entende-se a razão pela qual as histórias incidem em temas relativamente próximos, ou pelo menos constituindo uma malha apertada de conceitos: as visitas a cidades alheias e a instituição de preconceitos, a percepção informada por esses mesmos preconceitos, a dificuldade em os ultrapassar, os vários modos como cada um crê saber qual a melhor solução para o urbanismo selvagem (muito patente em Łodz), e os fantasmas que um rápido desenvolvimento mas também rápida queda das indústrias pode deixar para trás... Se a história de Konior é aquela que mais preenche esse papel, aquela ilustrada por Gawronkiewicz, de que deixamos aqui uma imagem, escrita por Demange, aponta para um outro modo de se poder abordar essa inquietude: através do absurdo, do fantástico, do aterrador, e do humor, todos elementos indissociáveis nesta estranha história com peixes-homens, e um hotel que se torna palco do encontro dessas ideias todas.
Nota: agradecimentos à “equipa francesa”, pelos vodkas perfumados, as conversas, e o livro, que pertence a Marcos Farrajota.

23 de novembro de 2008

O Livro Inclinado. Peter Newell (Orfeu Negro)

É curioso que se tenha tido de esperar cerca de 100 anos para ver este livro – objecto de culto entre coleccionadores e referência incontornável na história dos livros infantis (e não só) - traduzido em Portugal. Tal facto prender-se-á com circunstâncias históricas, com o valor que os livros infantis assumem na percepção social e na muito recente inclusão dos mesmos no círculo da traduzibilidade (família para a qual a Kalandraka, a Errata, cada um a seu modo, vai corrigindo a História e, agora, a Orfeu Negro com a sua colecção Orfeu Mini). Bom, ele existe agora, mesmo ao alcance da mão. E deverá fazer parte, de imediato, de uma espécie de cânone, por um lado, com toda a sua rigidez e valor de pauta, mas também provocador de uma aceleração e expansão de um corpo, de uma biblioteca cujas fronteiras são escritas pelas relações do texto e da imagem, e para a qual tentamos contribuir.
A história que o livro veicula não é particularmente desenvolta e acaba por reforçar tanto a sua natureza linear que dizê-lo não é nem crítico nem pejorativo: uma ama deixa que um carrinho de bebé se escape e role abaixo uma inclinada ladeira, acabando por apenas terminar (bem) ao fundo, num sítio seguro. A passagem literalmente vertiginosa desse carrinho e do divertido bebé pela avenida abaixo provoca estragos sobre os transeuntes e são eles que ocupam o espaço das descrições e imagens entre o início e o fim desse trajecto: polícias, vendedores, músicos, carregadores, cães, tenistas... Existe a curiosidade de a história não se iniciar nas imagens coloridas e que ocupam todas as páginas ímpares, mas sim um desenho na folha de rosto da história (inclusive o texto, ritmicamente traduzido por Rui Lopes). Há o aspecto também curioso de a queda ser feita da direita para a esquerda, direcção contrária à leitura ocidental, mas que nos obriga a entender a queda na direcção do centro do livro enquanto objecto. Mas é precisamente essa a atenção maior que o livro desperta: a consciência de que se trata de um objecto. O inclinado (slant, no original inglês) do título não diz respeito tanto à trama contada como à estrutura física do objecto. O livro não é rectangular, mas um paralelograma, que nos faz imaginar de facto que todo o objecto está inclinado... a queda do pequeno Bobby no seu carrinho não segue a inclinação da ladeira apenas, mas a do próprio livro (e a sua direcção para o centro do livro torna-se mais clara).
Peter Newell não foi o primeiro a pensar na alteração do formato e fisicalidade dos livros, acção que já existia muito antes dele, e inclusive aplicada à produção de livros para crianças. No entanto, se bem que fosse necessária uma investigação mais cabal desta afirmação, poderemos vê-lo como o primeiro autor cujas construções das histórias estão intimamente relacionadas com esses formatos inusitados escolhidos. Isto é, a forma estranha do livro (o mesmo ocorrerá com outros projectos de Newell, como The Hole Book ou The Rocket Book, que se prevêem publicados em Portugal também) não é apenas um fogo-de-artifício externo à diegese mas é sua parte integrante, senão mesmo seu fundamento. É neste aspecto que Newell não é apenas um pioneiro como um acabado e absoluto inventor de livros mecânicos.
Esta expressão, “livros mecânicos”, é por mim formada, ainda que esteja sob o signo, mais uma vez, de Walter Benjamin. Este escreveu vários breves textos em torno dos vários livros que compunham a sua colecção de livros, a sua biblioteca, que tanto prazer lhe dava de desembalar. Penso aqui sobretudo em “Aussicht ins Kinderbuch” (“Visão perspectiva dos livros infantis”), publicado em 1926, em que fala de uma mão-cheia de livros infantis, da sua colecção privada, presume-se, que era larga, referindo-se aos livros que tinham toda uma série de dispositivos que incutiam movimento, surpresas escondidas, revelando novas imagens sob outras tantas, como se surgissem de detrás de uma porta ou de uma cortina. A palavra “mecânico” vai encontrar as suas raízes mais remotas no hipotético pronto-indo-europeu, projectando-se em *maghana e *magh, significando, respectivamente, “o que torna possível” e “ser possível”. É nos gregos que ganha o seu sentido de “instrumento”, “engenho”, “expediente”, associando-se à tarefa do engenheiro e a um dispositivo feito de partes funcionais entre si. Na Idade Média é possível encontrar alguns usos que confundem e associam o vocábulo à mão, ao trabalhador, apontando assim antes ao fruto de uma tarefa manual, um acto do corpo. Talvez fosse melhor falar de “mãocânico”, tal fosse possível. Em inglês existe a noção de “movable books”, “livros móveis”, mas o que pretendo prever nesse vocábulo, mecânico, é toda a sua história etimológica: algo que é desencadeado pela mão (mais do que o acto de virar a página, na leitura), algo que revela do uso de um dispositivo de partes móveis, mas acima de tudo, algo que torna algo possível que não o seria sem esse mesmo dispositivo.
Benjamin, no texto citado, referindo-se sobretudo aos livros publicados entre os séculos XIX (o verdadeiro advento do livro infantil, associado às novas preocupações pedagógicas relativas a essa nova criatura do Iluminismo a que se daria o nome de “criança”, depois de Rousseau e Locke) e princípios do XX, estuda sobretudo o carácter pequeno-burguês dessas publicações, com todos os seus aspectos materialistas na superfície da análise – as cores garridas da cromolitografia, a mera posse de um livro enquanto objecto de estatuto social -, mas abre espaço à sua interpretação filosófica. Falando do escritor Jean Paul, e sobretudo das cores dos livros (e ligando-as à teoria cromática de Goethe) Benjamin mostra como estes livros provocam o contacto com a fantasia, que menos têm a ver com a introdução de uma “energia criativa” do que de uma absorção: “o corpo humano não pode gerar essa cor. Ele responde-lhe, então, não de um modo criativo, mas receptivo”.
No entanto, os livros mecânicos obrigam a uma acção do corpo, a uma participação activa no acto do revelar da matéria a ler. Se faço este circunlóquio é porque não desejo reduzir o acto de leitura mais normalizado a uma qualidade de passiva, e muito menos empregar a palavra “interactivo” como qualificador, depreendendo-se desse uso não existir interactividade na leitura, mesmo que normalizada. Seria um tremendo disparate. A diferenciação não reside no momento da percepção ou da inteligibilidade, e muito menos no da fruição, mas apenas numa diferença de grau do esforço de construção da leitura.
Os livros mecânicos existem desde a Idade Média, mas a esmagadora maioria dos livros que caíam nessa categoria foram, até ao século XVIII, dirigidos a adultos e serviam propósitos pedagógicos, científicos, ou explicativos. Não serviam de propósito de entretenimento, de efeito óptico divertido, de complemento ao desejo do brincar. O seu uso circunscrevia o sentido desejado, e não o multiplicava. Com o advento do livro infantil, essa dimensão torna-se possível. No entanto, sentimos que a esmagadora maioria das produções empregavam esses dispositivos como meros truques, passes de mágica, prazer óptico. Mas não numa relação fundadora do acto de contar uma história, na de percorrer toda a coerência do texto na sua dimensão de estratagema e de estratégia (etimologicamente partilhando a mesma origem).
É aqui que entra Peter Newell. Existiram muitos outros casos anteriores e posteriores (os livrinhos-teatro do século XIX, Eric Carle, Mercer Meyer, Edward Gorey com The Dwindling Party...) que efectuaram uma colação perfeita entre a inventabilidade formal e material do livro e a história contada, mas Newell fê-lo através de expedientes de uma simplicidade tremenda, mas não menos significativa. Haverá momentos estranhos na construção gráfica, como nesta imagem, na qual não faz sentido os degraus da casa serem paralelos à inclinação da rua (um outro livro onde a questão da inclinação se torna central, ainda que aplicada apenas à personagem central, mas onde todos e quaisquer pontos geométricos são exactos, é L'enfant penchée, da dupla Peeters-Schuiten d’As Cidades Obscuras), mas poderemos vê-los como pecadilhos da construção abafados pelo entusiasmo de todo o texto e imagens.
Voltando a Benjamin, e à frase que encerra o texto citado, criam-se nestes livros, de que o de Newell faz parte, “uma paisagem, um fogo multicolorido no qual irradiam o olhar e as maçãs do rosto das crianças”.
Agradecimentos a Marta Lança e à editora pela oferta do livro.

A family visit to Berlin. Merav Salomon (Third Ear Publishing)

Este livro tem uma pequena cinta à sua volta. Não tem nada escrito, apenas um padrão desenhado, e cada uma das pontas está colado às guardas do livro. Se a quiséssemos arrancar, teríamos de rasgar pedaços das guardas, as quais não têm quaisquer imagens. Apesar de uma nota dos editores ter esclarecido de que a razão destas bandas estarem coladas se prendia somente com o facto de ser uma forma de a proteger, de as não deixar cair, e que não se reveste de qualquer opção estética ou significativa, ainda assim, impulsionados por uma ligeiramente fantasiosa interpretação, queremos crer que ela, a banda, se torna efectivamente uma parte integrante do livro. Na cópia que temos, cobre parte do título, a saber, a palavra “Berlin”, e as duas primeiras letras do nome da autora, “Merav” (isto na lombada do livro, onde se escreve em inglês, e não em hebraico, como na capa Porque e como será isto importante? Adiante se verá.
O primeiro desenho (no interior do livro, parte do texto), sem moldura, é o de uma locomotiva ao longe, no meio da brancura da folha, lançando baforadas de fumo espesso e movendo-se da direita para a esquerda (no sentido da leitura do hebraico). Seguem-se 33 imagens desenhadas no interior de uma moldura simples, quadrada, como se se tratasse de um livro normal de banda desenhada. Mas este não é um livro normal de banda desenhada (ainda que estejamos aqui a policiar o termo por uma visão estreita). A cada página ímpar, surge-nos uma imagem solitária: o oceano e as suas ondas, uma fiada de galhardetes contra um céu escuro, uma cerca de madeira branca, um plano muito aproximado de uma boca escancarada e mostrando-nos um dente quebrado, uma mulher dormindo, uma cerca de arame farpado, as entranhas de uma pessoa, pãezinhos e bolinhos à venda, uma mão pairando sobre a chama de uma vela, uma refeição da Lufthansa, um dedo mergulhando em água, e muitas outras... Conseguir estabelecer uma relação linear e sem titubeações entre todas elas não é tarefa fácil.
A escrita por fragmentos é predicado da modernidade. Merav Salomon parece executá-lo conscientemente, uma vez que as estratégias da autora trazem experiências passadas em livros ilustrados. Encontramos em A family visit to Berlin não propriamente uma narrativa (com as suas partes constituintes) mas antes uma série aparentemente disjunta de desenhos: objectos, pessoas, e sítios, nenhum dos quais representados mais do que uma única vez (sendo a iteração um princípio central da constituição narrativa). Scott McCloud, em Understanding Comics, propôs uma tipologia de transição de vinhetas nas quais a última é chamada de “non-sequitur”, “a qual não oferece nenhuma relação lógica de qualquer tipo entre as vinhetas”. Diga-se, em abono de McCloud, que o próprio admite ser muito difícil conseguir constituir não-relações entre as imagens de um “texto” determinado, precisamente porque é apresentado enquanto texto, num sentido amplo, isto é, enquanto uma unidade organizada no interior de um determinado veículo, neste caso, um livro. Na pintura clássica de paisagens na China (e na Coreia e no Japão), era habitual apresentar os vários trabalhos em fólios organizados, uma espécie de proto-livros, os quais estavam organizados de acordo com certos princípios – fossem estes as estações, uma certa zona do país, um tema interno comum. as famosas séries das Vistas de Hokusai e Hiroshige, por exemplo, constroem um retrato cabal de uma mesma entidade espacial ao longo de tempos, ângulos e distâncias, mostrando o mesmo troço do universo como um todo através de uma atenção fragmentária a cada uma das suas partes constitutivas (quer espaciais quer cronológicas). A family visit to Berlin parece cumprir a mesma noção. Não se trata de uma série de desenhos, mas uma sequência: há de facto um princípio organizador que emerge na sua completude. No livro de Salomon, a primeira instância dessa completude é o próprio livro, com o seu título, o seu formato, e a cinta, que o cinge. Para mais, a palavra visit no título remete a uma vetusta tradição do livro ilustrado que nos falam de viagens, quer estas sejam ficções cómicas (como as das personagens de Töpffer) quer sejam experiências mais reais (como o livro de Richard Doyle, Brown, Jones and Robinson).
Mas o factor de agregação maior é o sentido de recolecção. Se olharmos numa segunda leitura, mais distanciada, do livro, aperceber-nos-emos de algumas recorrências. Encontramos vários modos de transporte, mesmo que apenas de viés: o comboio (no princípio, mas talvez ainda na imagem das persianas), o avião (na refeição da Lufthansa), o barco (o mar): movimento, viagem, visita. A estada em Berlim está presente explicitamente nas palavras em alemão em vários momentos e locais (a bilheteira, a montra de pães e bolinhos, a estação de comboios em Eberswalderstrass, e talvez o facto do voo ter sido da Lufthansa?). O lugar visitado, o lugar de retorno. Mas isto não é tudo. Vemos também uma mulher a dormir, um homem aparentemente deitado, de olhos bem abertos, e o interior de um corpo humano. Muitas das imagens mostram-nos um céu totalmente negro, denso, ou então completamente a branco, relembrando, à vez, dos efeitos de luz do crepúsculo ou das madrugadas. Por sua vez, a mão sobre a vela poderá ser um indício dos rituais do Sabat, quando as mulheres acendem as velas, mesmo antes do pôr-do-sol de Sexta-feira. É verdade que as velas deveriam ser duas, o que então nos poderia levar a pensar numa afoiteza infantil, para ver quão perto e durante quanto tempo se conseguiria ter a mão sobre uma chama... Mas esta segunda leitura escapa à força de gravidade que as restantes imagens cria, e a primeira, considerando aqui um jogo de metonímia visual, ajuda-nos a sublinhar um elusivo, ainda que contínuo efeito.
É como se nos fossem dados a ver os elementos com os quais poderemos compreender a insónia, a angústia, as noites sem dormir, que se desencadeiam no momento em que somos assaltados por fantasmas, memórias e recordações (o quarto mandamento é, na verdade, lembrar o Sabat). A rememoração, assim, parece ser o fio vermelho deste livro, construído de recordações desfiadas. E não parecem ser memórias confortáveis. Bem pelo contrário, é a melancolia, e o evidenciar mínimos pormenores que parece impedir qualquer outro tipo de atenção ao focalizador do livro e, desta forma, da memória que representa.
Os desenhos são quase todos muitos simples, numa espécie entre o esboço rápido tirado no local e uma estenografia simbólica: as ondas são encaracoladas, os rostos e partes do corpo humanos são rudes, alguns dos edifícios são apenas desenhados nos seus contornos, ao passo que as sombras e as texturas surgem na forma de tramas simples. Mas esta simplicidade não pode ser entendida, nunca, como uma limitação do talento. É antes o traço exacto do espírito de rememoração dolorida. É como se tivéssemos, no lugar de um viajante obsessiva e possessivamente tirando fotografias de tudo aquilo que pudesse para vir a provar mais tarde que esteve “ali”, alguém que preferiu levar o seu tempo a desfrutar dos momentos dessa viagem, gastando o seu tempo com os espaços e as pessoas que a rodeavam, e depois regressasse com estes resquícios de sentimentos, recordações, signos de cada uma das suas experiências. E depois as desenhasse, de um modo simples, final mas eficiente, como se se tratassem de pequenos traços mnemónicos. O que não deixa ser a melhor maneira de fazer com que essas suas experiências também se possam tornar nossas, uma alternativa aos álbuns de fotografias que trazem antes distância (afirmando “tu não estiveste aqui”).
De entre um dente partido, o sorriso selvagem de um cão, um espesso fumo de chaminés industriais, cercas de toda a sorte, símbolos de distância e separação, outros há que fazem florescer um ambiente de serenidade e proximidade. Numa das imagens vemos uma xícara de café numa mesa. O padrão da toalha da mesa é similar àquele da cinta do livro. A última imagem do livro, mostrada aqui ao lado, parece imitar parcialmente esse mesmo padrão. Poderia ser visto como um conjunto de regras contra um tecido padronizado ou uma folha de papel quadriculado. Ou poderá ser um desenho abstracto e geométrico (e é-o). Ou uma grelha que não só serve de fecho à sequência como obrigado o leitor/espectador a retornar à cinta. Mesmo sabendo que esta cinta não deve ser considerada, de modo acabado, como parte do texto, o facto de estar colada ao livro faz-nos considerar que existirá uma fímbria de possibilidade de que pode ser considerado, seguindo as lições de G. Genette, como paratexto, uma moldura ou contexto informacional de qualquer texto (seja este estritamente literário ou não). Uma espécie de umbral. E a cinta preenche na perfeição esse papel. É essa a razão pela qual, apesar de sabermos estar a tomar liberdades a mais na sua interpretação, excedendo as intenções do autor (e dos editores) – mas também cremos que no momento em que um livro passa a existir no mundo ele ganha um grau de autonomia que lhe é próprio -, encontramos nesse aspecto objectual um modo de integrar este livro naquela categoria, por mínima que seja essa integração, dos “livros mecânicos”. Este termo deve ser visto como o mais abrangente possível, e que compreende livros que incorporam na sua materialidade dispositivos variados que os tornam algo mais do veículos de linguagens bidimensionais (ou inscritas dessa forma, como o texto e a imagem): transparências por sobre folhas, livros de Kalkitos, painéis deslizantes, bandas móveis, volvelles, estruturas arborescentes, ou em inglês, pop-ups, pop-outs, pull-downs, e o que mais houver... Inclusive livros cujas formas o fazem se inscrever nesta categoria, como O Livro Inclinado, de Peter Newell. No entanto, no caso deste livro em particular, essa inscrição só se torna aparente a posteriori, quer depois da leitura quer depois de uma consideração abstracta da cinta como parte integrante do livro. Torna-se assim tridimensional, acentuando as rememorações retratadas como experiências pessoais.
Se existe sempre algum tipo de limitação a toda e qualquer linguagem, seja ela “artística” ou não, na sua capacidade de representar a realidade da nossa própria experiência empírica, uma forma de aceder a uma mais ampla e profunda possibilidade é através da aceitação dessas mesmas limitações e, então, na consciência dessa limitação, e através da experimentação dessas restrições e auto-limitações, quer dizer, através do acolhimento desse menos que, conseguir-se-á encontrar uma prestação que está toda do lado da representação, acercando-se de uma natureza que é mais poderosa do que um outro caminho mais ilusório (aquele que se atasca na ilusão de que poderíamos de alguma forma transmitir a realidade e a verdade tal qual). É nesse sentido que entendemos as limitações (ou restrições) de A family visit to Berlin. Veja-se o título novamente. Não é claro: falará de uma “visita de família”, em que uma família viaja em conjunto, como uma unidade coesa, a Berlim, ou uma “visita à família”, que se visitam – a autora - nessa cidade? Ou será ainda um outro significado? Jamais vemos mais do que uma pessoa (ou parte de uma pessoa). Não há sinais do colectivo. Sentimo-nos atraídos para essa solidão também. E é nessa mesma solidão, a que é partilhada por cada uma das poucas figuras que não surgindo aqui e ali no livro que emerge a marca colectiva da família, do sangue que é guardado num nome, num imaginário, nos rituais, tal qual as pequenas rememorações são guardadas num livro, somando-se desta maneira numa experiência estranha e familiar a um só tempo.
Nota: agradecimentos a Shelly Duvilanski, da Third Ear, pela cópia do livro enviada e pelos esclarecimentos.

21 de novembro de 2008

La Bande Dessinée. Mode D’emploi. Thierry Groensteen (Les Impressions Nouvelles)

No seguimento das muitas obras de Groensteen em torno da banda desenhada, como se fosse identificando os possíveis satélites em torno de um planeta elusivo, entendemos os vários gestos e graus a que o autor se entrega: se Le Système… é a sua contribuição teórica ao território, Töpffer, l'invention de la bande dessinée, Les années Caran d'Ache, e Astérix, Barbarella et Cie., por exemplo, os seus estudos históricos e de arrumação cronológica, La Construction de La Cage, Lignes de vie e En chemin avec Baudoin, as suas críticas específicas, e Un objet culturel non identifié uma abordagem sociológica (já para não falar da sua presença incontornável em inúmeros artigos e, de resto, tal como o próprio autor explicita e sistematiza no seu texto em European Comic Art), La Bande Dessinée. Mode d’emploi é um momento menos denso, mais leve, dirigido a um público que começa a desenvolver-se: pessoas que se interessem pela banda desenhada não de um modo anódino, de distracção, de prazer de leitura (todos válidos), mas já com uma entrega intelectual, de tentar perceber como ela funciona enquanto modo de expressão, disciplina artística, forma de ver o mundo e de o dar a ver. Mas sem ser com o empenho ou abandono absolutamente crítico mais próximo de abordagens académicas ou vincados no seu discurso e posição de entendimento da banda desenhada (como os textos deste espaço?). Uma introdução, digamos assim, mas sem condescendências, paternalismos ou marcha-atrás à falta de pensamento.
O que Groensteen faz aqui é ajudar a ler. É-o sempre, nos seus livros, sem dúvida. É uma questão de grau, como se dizia, de título para título. Neste mode d’emploi, o título diz tudo, instruções para uma primeira abordagem daquele público que começa a dar os segundos passos na apreciação da banda desenhada. Nada é indigno da atenção do filósofo, como reza Baudelaire, e é dessa exacta consciência que nasce este gesto que dá as boas-vindas a essa dignidade e atitude, àqueles que a desejem pela primeira vez… Organizado mais por princípios de força do que por géneros ou momentos históricos, encontram-se aqui muitas pistas em como pensar “tradições”, “famílias”, “conjuntos” ou “diálogos” entre obras que, quiçá, nos pareceriam irremediavelmente disjuntas.
Como é de esperar, este livro apesar de ser utilíssimo, e agradabilíssimo, aos primeiros leitores, sê-lo-á igualmente aos regulares seguidores de Groensteen, como todo o que ele propõe de revisitação, de tomada de posição e diálogo, de novas ponderações para com os muitos textos existentes (primários e não só), sem se excluir a possibilidade de descobrir autores desconhecidos – no meu caso, Alexis, Goosens – ou relembrar alguns esquecidos do grande público – Jean Teulé, Pierre La Police, Claire Bretécher… E basta mostrar uma prancha como esta, e apontar judiciosamente para onde a atenção se deve prender, para quais as regras específicas a empregar face a este trabalho, para abrirmos todas as potencialidades de leituras adaptadas a cada obra, a cada autor, a cada texto, a cada circunstância concreta da banda desenhada. Não tomando a banda desenhada como um todo, como um corpo único sem diferenciações no seu interior, mas enquanto espectro amplíssimo em que cabem todas as suas crises particulares. Para sabê-la empregar.

Epifanias do Inimigo Invisível. Daniel Lima (Ao Norte)

Segundo volume do projecto O Filme da Minha Vida, Daniel Lima oferta-nos a sua versão de O Deserto dos Tártaros, filme realizado por Valerio Zurlini, de 1976, baseado no romance de Dino Buzatti, o qual foi recentemente publicado em português pela Cavalo de Ferro, do autor que, tempos idos, mas não esquecidos, nos trouxe Poema a fumetti. Pelo que se depreende do texto incluso de João Paulo Cotrim a esta edição, Lima não terá feito a sua aproximação sob a leitura deste último livro experimental, mas com ele estabelece algumas linhas de afinidade.
É ainda no texto de Cotrim que encontramos duas palavras que condensam o modo possível de nos aproximarmos de Epifanias do Inimigo Invisível, “vidro” e “comentário”. Comecemos pela segunda. De facto, Daniel Lima não optou por uma mera transcrição gráfica dos eventos do filme em imagens estáticas, ilustrações circunstanciais, apontamentos, mas por uma mais desviante tradução, através de uma tomada de distância para com o filme, para com os seus alcances e limites, para nos devolver uma sua, muito pessoal, leitura. Um comentário, precisamente dito. Existem momentos condensados em signos visuais, aspectos do filme tornados alegoria, presentes no modo como o artista as transpõe através das suas imagens. E características há que nos fazem aproximar da segunda palavra. O vidro é uma substância fluida que, apesar da sua transparência, serve sempre de filtro em relação àquilo que nos permite ver, ou àquilo mesmo que nos dá a ver, uma vez que um enquadramento de qualquer coisa através de um vidro o torna mais visível essa mesma coisa.
É como se Daniel Lima tivesse eleito momentos menos centrais do filme, condensações, como dizíamos, de cenas vistas, permitisse ao mesmo tempo a ascensão de falhas de projecção e soluços das imagens em uma especial atenção gráfica. Duplamente uma atenção à materialidade fílmica possível de retransmitir no papel. Os jogos de reflexos no interior de um mesmo desenho, como se pode ver na primeira prancha dupla aqui exemplificada, não servem qualquer propósito de claridade explicativa (de ultra-claridade) ou narrativa em relação aos eventos (tal como ocorre, comparativamente, e a título de exemplo, nalgumas das vinhetas da obra-prima Master Race de B. Krigstein), mas para formar um sentido último, perene, carregado, da palavra “reflexão”. A um só tempo, ilumina com esse jogo uma operação de divisão (distância, diferenciação da moral das personagens, abismos intransponíveis entre cada ser humano) e outra de multiplicação (a possibilidade de reproduzirmos uma atitude, aprendizagem, aproximação, mais-valia, garantia de força).
Essa reflexão, raiz da natureza de um comentário, é reforçada pela presença dos pequenos textos quer sob a forma de legenda (sob a imagem, em espaço próprio), mas também, de quando em vez, em forma de título (flutuando no interior da mancha gráfica do desenho). Nesse ponto, mais do que na qualidade (no seu sentido de “característica”) do desenho, recordará a experiência de Lima nos seus trabalhos compostos enquanto metade do colectivo Gigi i Gigi, no qual se verificava sempre a presença de uma voz narradora extra- e heterodiegética, isto é, externa e estranha à diegese, superior mesmo, capaz de sublinhar essa distância pensante sob os acontecimentos da narrativa.
A tradução de certos momentos da história em um grupúsculo de palavras (“Augustina – montanha elmo espada”) parecem transformar-se subitamente em pequenos enigmas, alegorias, divisas, a serem interpretadas no interior desta nova narrativa, e não enquanto transposição do filme. A sua interpretação será precisamente aquilo que levará à Epifania, do lado do leitor, e não do espectador do filme.
É certo que Lima sublinha toda uma série de aspectos previstos e discutidos no próprio filme, sobretudo os mitos lentamente desagregados da honra e glórias militares, colocando-se de uma forma óbvia do lado dos discursos anti-militaristas que estão subjacentes a todo o texto original (romance e filme). Os inimigos que tardam em aparecer, que não são mais do que uma promessa cujo ónus se encontra mais rapidamente do lado do defensor (do patriota, do honrado soldado) do que do atacante (tão virtual quanto falso quanto inócuo, talvez, e por isso mais assustador em termos morais e míticos) são tão invisíveis quanto o título – de Lima – afirma, mas a epifania que promete, lá está, fará com que tanto os leitores como as personagens se apercebam que o perigo está dentro, e não fora. Timothy Leary, na sua conhecida ironia, disse uma vez que não havia maior oximoro na linguagem humana do que “inteligência militar”. O Desertos dos Tártaros, e Epifanias do Inimigo Invisível acentua-o, é uma sua confirmação. As imagens que Lima acrescenta onde as figuras humanas não estão presentes não estão a mais, nem a menos, precisando a natureza alegórica dos comentários – textuais e visuais – criados por ele. Se outra dimensão há ainda, que eu seja capaz de identificar, por agora, em Epifanias, é a de nos obrigar a re-ver o filme através deste filtro, deste vidro.

18 de novembro de 2008

Uma nota a propósito do livro de Ann Miller.

Tendo recebido uma nota da autora Ann Miller a propósito de um parágrafo nada claro que eu fizera a propósito da aproximação possível entre o seu livro e o estudo de Lavanchy sobre o Cahier Bleu, corrigi o último parágrafo que escrevera, e que encontrarão neste post, no qual encontrarão ainda o comentário de Miller e a minha resposta.
Não tinha qualquer intenção de fazer acusações, e muito menos de desconfiar da exactidão e acuidade de uma especialista cujo livro é um contributo inestimável. No entanto, a minha escrita elíptica levou a essa ideia... Sinto-me envergonhado e peço desculpas não só a Ann Miller, como aos leitores.
Obrigado pela vossa compreensão e acompanhamento.
Vosso,
Pedro Moura

17 de novembro de 2008

SuperHomem no Século XXI. AAVV (Geraldes Lino/Efeméride)

Terceiro volume de uma série editada e publicada por Geraldes Lino para comemorar datas redondas em torno de personagens clássicas da banda desenhada (até à data norte-americanas), desta feita foi a vez de Super-Homem, personagem inventada no início dos anos 30 por Jerry Siegel e Joe Shuster mas a qual, após setenta anos de existência no interior da máquina (semi-)pensante do Universo DC, acabou por desenvolver uma personalidade fictícia que ultrapassa a soma das partes (as suas histórias).
Convenhamos que é uma personagem difícil, cuja obrigatoriedade em viver nos estreitos limites das regras editoriais da companhia que o detém, o torna muito pouco maleável a versões alternativas verdadeiramente interessantes - penso nos títulos Elseworlds, a esmagadora maioria dos quais absolutos sensaborões -, ao contrário da sua cara-metade, ou o outro lado da moeda, Batman. A luz que pretende sair desta personagem é tanta que ou se acabam por produzir pastelões enfadonhos (Alex Ross incluído), ou tem mesmo de se mergulhar novamente nas aventuras mirabolantes das décadas de 50 e 60, do trabalho de Julius Schwartz, Curt Swann e companhia, tom o qual Grant Morrison e Frank Quitely recuperaram com a série All Star Superman, recentemenre terminada. Quer dizer, é uma personagem cujas dimensões permitem histórias fantásticas e divertidas, desde que curtas, mas cuja tentative em fazê-lo desdobrar numa personagem de personalidade multifacetada falham redondamente, mais uma vez a contrário de Batman que, não obstante a obsessão meio-pobre de quase todos os escritores revisitarem o mesmo trauma de sempre, se consegue arrancar alguma outra dimensão mais surpreendente (se bem que não tão surpreendente como uma personagem verdadeiramente moldada por um autor, como por exemplo, às cegas, a Valentina de Crepax?).
Talvez seja por essa razão que algumas das peças feitas de propósito para esta edição tenham sido mais interessantes de experienciar do que muitas das histórias "oficiais" lidas nos últimos tempos... Nem tudo o que está aqui reunido é acabado, mas há de facto momentos altos, de um modo mais feliz do que nas publicações dedicadas ao Nemo e ao Príncipe Valente...
Por razões que serão óbvias aos leitores, são as histórias que mais escapam à gravidade kriptoniana aquelas que mais me atraem enquanto leitor. Marco Mendes, por razões que também deveriam ser óbvias aos seus leitores, desvia-se totalmente quer do tom mais geral desta publicação, que é o da homenagem e o da paródia (e, as mais das vezes, a homenagem-paródia), para criar mais um episódio das suas auto-ficções, para demonstrar onde páram os resquícios reais da heroicidade possível. Ricardo Cabral, aproveitando de um modo curioso uma imagem já existente antes para outros fins, cria um cruzamento entre uma ficção, uma autoreferência e a potencialidade de uma narrativa que resolve não desenvolver, mostrando, nessa inércia, a própria força da sua pequena história. Zé Francisco, de que já havíamos falado a propósito do seu trabalho, apresenta uma singela história melancólica, senão mesmo suicida, em que se cruzam uma série de referências da banda desenhada europeia, mas que servem para destilar um certo cansaço nas potencialidades fictícias da personagem...
Depois seguem-se objectos estranhos, de autores de quem se costuma dizer terem dado cartas, mas que aqui mostram afinal um cansaço deles mesmos... Pedro Massano e Victor Mesquita apresentam trabalhos que nos colocam a pensar que tipo de desvios é que as suas esperadas forças têm tido.
Mário Freitas apresenta um argumento com pernas para andar, mas uma vez que se esgota nas meras 10 vinhetas, e numa prestação gráfica que deixa algo a desejar face à sua promessa, acaba por nos fazer exigir uma versão mais desenvolvida, e menos esquemática. Envolver Kandor na última batalha do Super-Homem é um golpe de rins forte, mas é preciso preparar o terreno.
Uma surpresa é a história de Augosto Trigo, que apesar de nos ofertar com uma história de laivos algo antiquados (o tom pedagógico em torno da cultura nalú, a violência desnecessária de Kal-El, e a auto-representação em preparos colonialistas), cria uma espécie de mancha ou névoa de promessa narrativa - o cruzamento entre o trabalho sobejamente conhecido de Trigo e o tratamento desta personagem - com esta pequena página. Acima têm uma vinheta desta história, onde se inscreve o momento-chave desse cruzamento narrativo e gráfico.

Outros autores apresentam versões ora espatafúridas e divertidas - recordando algumas das prestações nos colectivos Bizarro Comics e Bizarro World - como Álvaro, Pepedelrey, Lam e até Eliseu (Zeu) Gouveia, que parece ironizar um tipo de aproximação aos super-heróis que ele próprio cultiva no seu trabalho profissional. Zé Manel, ilustrador conhecido, aqui no seu estilo mais ziraldiano, oferta-nos com uma versão muito à portuguesa de humor social, implicando o Super-homem na mais comezinha das crises, que é aquela em que mais rapidamente participamos... E Ricardo Santo, cujo trabalho se desdobra por uma série de fanzines e cuja promessa de uma edição própria se vem fazendo há muito, apresenta-nos uma versão verdadeiramente cool (ainda que também nos limites do paródico) desta personagem quase-esgotada.

Finalmente, uma última menção tem de ser feita a Zé Paulo que apresenta a mais hilariante versão da personagem. Um chorrilho de situações anedóticas simples mais num ritmo certeiro, este velho rezingão e doente é a cereja no topo do bolo da gozação possível sobre o último dos kriptonianos...
Alguns dos autores aproveitam para colocar o faneditor (palavras do próprio) Geraldes Lino como personagem das histórias, aumentando assim o tom paródico destas histórias, e de homenagem ao próprio cultor deste gesto, fechando assim o círculo do tipo de piadas privadas que constituem estes actos editoriais. E porque não?
Estamos perante um gesto de amor sincero e sem grandes preocupações de marcar uma diferença. Uma colecção de "parvoíces", digamos assim, feitas ao sabor da vontade e de um convite. Mas muitas destas parvoíces, sendo feitas em torno de uma das mais parvas das personagens, acaba por se transformar numa exploração bem mais interessante e inteligente do que aquelas que, oficialmente, se tentam levar a sério.
Nota: agradecimentos a Geraldes Lino, pela oferta do mega-zine.

14 de novembro de 2008

Desenhar para o boneco: Projecto Informal (conversa)

Por ocasião de um convite do PROJECTO INFORMAL, organizado pelo Laboratório das Artes, em Guimarães, terei o prazer de participar de uma mesa redonda na qual farei a seguinte apresentação: Desenhar para o boneco experimentação artística na banda desenhada. Tendo preparado algumas notas simples e muito gerais a serem distribuídas pelo público, disponibilizo-as aqui também. Servem como ponto de partida (ou de organização do trânsito) de outras discussões, tidas por outros nomes, com os quais aprendi muito, ou a ter no futuro. Quando a versão completa de um texto relativa a esta conversa estiver disponível na publicação planeada pela organização, avisarei. Por agora, fiquemos pelas notas...
1. A banda desenhada é, quase sempre, tomada como um todo, e não na sua variedade autoral, de estilos e de escolas artísticas, de fitos e de propósitos, de formas e modos. E, para mais, é quase sempre pautada pelos seus exemplos mais visíveis, i.e., mais comerciais e pertencentes ao âmbito das nostalgias ou das mais estreitas memórias de cada um, ao invés de inserida numa história de continuidades e experimentações internas a ela mesma. Evite-se, portanto, uma apreciação “emotiva”, que tanto se pode revelar numa atitude negativista – “nada na banda desenhada é digno de atenção estética” – ou numa atitude heróica e cega – “a banda desenhada é superior a x”.
2. Uma arte, ou uma forma de arte, nasce, de acordo com uma nota de Walter Benjamin, da correlação entre três factores: as técnicas artísticas, os seus efeitos e o modo social do seu alcance. Não significa isto que qualquer destes factores exista separadamente, mas enquanto instâncias abstractas ajudar-nos-ão a identificar uma potencial “origem”, por mais discutida, controversa ou aberta que ela seja. Olhamos para o passado sempre através do presente.
3. A banda desenhada vive também como uma espécie de arte desmemoriada, ou seja, uma arte cujo culto – seja ele de leitura, fruição, seja de criação – parece poder viver numa ausência da sua permanente inscrição na sua história interna. Cada nova geração parece surgir ab ovo, ou pelo menos numa limitação temporal estreita, e não aberta a todas as potencialidades de associação a um círculo mais amplo de criatividade e artes.
4. Há, em relação à banda desenhada, uma espécie de sprezzatura ao contrário. Onde, no círculo das artes visuais, ou outras, o conceito renascentista encontrava uma virtude naquele artista que demonstrava ter atingido um determinado patamar na sua arte como se “sem esforço”, a banda desenhada é considerada como num todo fruído “sem esforço”, logo, essa ausência de tempo de reflexão recai na sua leitura metalinguística, referencial, de análise e percepção e apreciação estética. Existe ainda, em relação à apreciação global ou concreta da banda desenhada, uma hesitação mental, que não ocorre nas discussões (mais livres, acintes, e pessoais em relação a outras artes): mesmo que o Espírito Solitário, Próprio, o mais escondido e pessoal e intransmissível, se atreva, contra o Eu Policial, a começar a gostar, e a desejar afirmar esse gosto, por uma “bd”, logo esse Eu, constrangido pelo Social, lhe diz “nem penses, que vergonha! O que é que os outros vão dizer?”.
5. Não é possível ver, estudar, analisar, apreciar um determinado modo de expressão ou artístico através dos instrumentos ou percepções ou parâmetros suscitados por um outro. As crises de uma arte não coincidem com as de uma outra. As especificidades de uma determinada linguagem artística não invalidam cruzamentos e aberturas, claro está, mas ambos devem ser ponderados, negociados e verificados nas suas pertinências analíticas. As disjunções entre todas as linguagens artísticas, seja como forem apreciadas, definidas ou discutidas, são mínimas, um salto quântico, um piscar de olhos… É tão fácil apercebermo-nos de diferenças substanciais como de parecenças óbvias. Os “ares de família” apenas existam no discurso de quem o faz. Se se permite o arrogar de uma balização, é para que não se caia no “domínio aleatório da interpretação” (Thierry Groensteen).
6. Não há imagens gerais, mas determinadas. Logo, não se pode falar de técnicas, imagens ou estruturas “bd”, mas de exemplos concretos da sua história. E, nessa diversidade óptica, todos os patamares de qualidade intrínseca às obras. É necessário, como num outro círculo artístico qualquer, uma educação própria para se poder atingir um certo grau mínimo de especialização, de discursividade crítica, conhecendo-se bem e cabalmente os seus códigos internos, dos mais elementares aos mais complexos.
7. O meu papel é (nesta apresentação), em primeiro lugar, alertar para a existência de um convoluto e largo caos (a banda desenhada não é um Todo Coeso e Único), expandindo-se em múltiplas e multímodas direcções e, em segundo lugar, providenciar um qualquer modo (o meu, limitado) de procurar e encontrar linhas de apoio e construção de uma lógica interna que ajudem, por sua vez, a construir um cosmos junto aos leitores (há uma História e Estética da banda desenhada).
Nota: agradecimentos ao Laboratório das Artes, pelo convite.

5 de novembro de 2008

Explainers. Jules Feiffer (Fantagraphics)

Jules Feiffer, como se sabe, foi assistente de Will Eisner durante o final dos anos 40. Muitas vezes isso é apontado como um factor de aprendizagem, mas sempre se sublinhando o quanto Feiffer aprendeu sob o domínio do mestre, sem no entanto o ultrapassar. O problema desta visão, porém, está em querer instaurar o modelo de Eisner – narrativas causais fechadas e organizadas classicamente, a assunção de uma moral clara e resolvida, mesmo que sob pressões negativas, a centralidade de uma personagem sobre os acontecimentos que se moldam em seu torno – como superior. É mais aceite, sem dúvida, e mais legível por um número maior de leitores, que procuram um certo grau de entretenimento, de prazer em testemunhar uma história que se passe fora das suas vidas, de serem confrontados com uma crise, mais ou menos profunda (menos em The Spirit, mais nas obras tardias de Eisner), mas que tem uma previsível resolução. Contudo, Feiffer rapidamente empregou a capacidade de narrativizar imagens para outros propósitos, bem mais acutilantes no que diz respeito à agudez política e psicológica susceptíveis de serem tratadas numa comic strip ou book.
Quer nos projectos infantis de Feiffer, como Bark, George, quer os adultos, como Tantrum, quer até no film animado Munro, o autor procura explorar os recantos mais pessoais dos desejos e pulsões das suas personagens, através de situações absurdas, e o resultado do embate entre esses mesmos desejos com as expectativas sociais, os papéis que se desejam ver cumpridos na sociedade. Esse resultado é, as mais das vezes, um cómico e breve desastre, para gáudio dos leitores mas desespero dos interlocutores dos protagonistas. O status quo pode até vir a ser reposto, mas ficará sempre um resquício de distanciamento cínico no fim do relato... Não um cinismo de superioridade e displicência, mas a de uma tomada de distância que permite um olhar mais completo e sem rasuras do comportamento humano.
E é precisamente esse distanciamento cínico com que Explainers se pauta. Apesar de retomar o título de uma antologia previamente publicada, na continuidade da publicação da obra integral de Feiffer, a Fantagraphics promete quatro volumes nos quais reunirá a totalidade da tira de banda desenhada que o autor produziu para o único jornal verdadeiramente independente da sua época (na América bipartidária mas unilateral, esta voz da intelligentsia beatnik era única, de facto) The Village Voice. Este primeiro volume reúne os dez primeiros anos (1956-66, mais um tijolo!). Seguramente que outras colecções se seguirão, já que Feiffer continua a trabalhar em várias publicações, quase todas “intelectuais” (The New Yorker, American Prospect, ah... Playboy).
Esta tira marca historicamente o verdadeiro início de tiras continuadas de conteúdo político e adulto. É verdade que a continuidade (isto é, da narrativa) não está presente aqui, como esteve antes em tiras clássicas como Steve Canyon, ou em séries futuras mais políticas como Doonesbury. É verdade que a realidade política havia encontrado espaço nas tiras cómicas com, o caso mais comentado, Pogo, de Walt Kelly, mas onde em Pogo a política se servia da fábula, da rábula e da analogia, em Explainers ela assume o papel preponderante e sem disfarces. É certo que a psicologia adulta havia já encontrado uma forma de ser explorada em Peanuts, de Shulz, mas onde aí ela serve de matéria de humor disfarçado e rapidamente redimido pela candura das personagens, na tira de Feiffer as armadilhas da psique humana surgem em todo o seu esplendor, seja este brilhante ou tenebroso.
Feiffer não estava só, e isso é bem explícito no texto de introdução de Gary Groth, no qual se encontram várias intervenções do próprio Feiffer. Por exemplo, em relação ao seu estilo artístico, o de um desenho solto e quase de esboço, caligráfico, Feiffer sabia que não era um nome conhecido e que quaisquer comparações o colocariam na sombra dos mais famosos Thurber, Steig ou o incontornável e inefável Steinberg. Desta tríade, Feiffer aproximar-se-ia dos dois primeiros em termos da introdução do absurdo no quotidiano como forma de sublinhar o quão absurdo o quotidiano já o é, mas ao terceiro parece dever a maior exploração das liberdades inerentes ao próprio traço. Voltando a Eisner, repare-se como a expressividade das personagens deste último atinge por vezes um histriónico paroxismo raiando o ridículo (a famosa adaptação do monólogo de Hamlet), ao passo que Feiffer segue precisamente as lições mais tardias do mestre na depuração do mínimo traço da expressão corporal ou facial para transmitir alterações radicais das suas personagens. Groth nota como as primeiras tiras se assemelham ao estilo muito particular das animações dos anos 40 e 50 da UPA, mas rapidamente assistimos a um delinear cada vez mais ténue e fino das linhas que compõem as personagens, para se atingir aquele patamar a que chamei “caligráfico” (e repare-se a forma como ecoam na perfeição o trabalho maravilhoso das letras desenhadas pelo autor, como se houvesse continuidade efectiva da mão que desenha e da que escreve). Em muitos casos, a personagem ou personagens da tira move-se um mínimo, enchendo o peito, inclinando-se ligeiramente para a frente, torcendo o sorriso, baixando os ombros: mas esse mínimo movimento aparente reflecte uma transformação radical de humor na mesma personagem.
Feiffer cria uma espécie de tipologia de seres humanos, existindo personagens recorrentes: a menina que lê histórias de fada/histórias políticas ao pequeno irmão, a bailarina contemporânea das estações, a mulher sensível mas calculista, a mulher das flores, o jovem homem de humores diversos, ora pacato ora atacado por todo o tipo de neuroses e perseguições, sobretudo da companhia de telefones, Bernard Mergendeiler (ei-lo aqui ao lado), o sósia de Marlon Brando, Huey, entre outros (aliás, com David Kamp, na sua crítica na Book Review do The New York Times, aprendo que seria o material dessas duas personagens que seria empregue no guião do filme Carnal Knowledge, de 1971, realizado por Mike Nichols e protagonizado por Jack Nicholson e Art Garfunkel; aliás, há mesmo uma tira em que ambos estão presentes, ainda que do outro lado da linha de telefone de uma personagem feminina; porém, Kamp admite que as personagens da comic strip são mais relevantes hoje do que as do filme). Elas não criam quaisquer tipo de telenovelas ou arcos narrativos sustentados, mas aspectos, retratos, fragmentos, das personalidades existentes no mundo. E não há realidade que não seja abordada por Feiffer, das relações mais pessoais e íntimas entre os sexos à mais internacional das políticas externas dos Estados Unidos, passando pelas oposições ideológicas entre Democratas e Republicanos e estes dois e outras posições mais radicais (socialistas, não-conformistas, rebeldes), os papéis dos militares, dos jornalistas e dos economistas, explorando as ansiedades dos pais e os desejos dos filhos, invertendo a rebeldia do outrora na conformidade do presente, ou descobrindo a inércia nos seus contemporâneos onde se esperaria uma reacção nova, não esquecendo todos os conflitos mais prementes da época, da oposição às intervenções militaristas (Cuba, a escalada nuclear), ao fim da segregação racial (da qual hoje somos testemunhas de uma nova conquista), ao advento do feminismo às mudanças culturais profundas que avançariam sobre a América da década de 1960.
Devo confessar que algumas das tiras são demasiado obscuras para mim, não estando familiarizado com as convulsões políticas mais pormenorizadas dos E.U.A. da época, e algumas referências culturais não serem de fácil entendimento. Porém, o humor da esmagadora maioria dos trabalhos são ainda hoje claros e pertinentes, e bastará aos leitores as mínimas adaptações à nossa própria experiência e mundo para nos apercebermos que Feiffer consegue fazer aquilo que os grandes artistas conseguem fazer, que é identificar a perenidade da estupidez, da ingenuidade e do egoísmo humanos por toda a História. O método com que muitas vezes constrói diálogos, em que cada um dos interlocutores fala para seu lado, sem parecer dar conta do que o parceiro ou parceira diz, é particularmente efectivo nesse papel, e mais ainda quando diz respeito às relações amorosas ou familiares, que permitem pela proximidade as mais absurdas das distâncias. A comunicação não parece ser, para Feiffer, o caminho do entendimento mútuo, mas apenas uma desculpa para cada um acentuar ainda mais a casmurrice própria. Sabendo que Feiffer chegou mesmo a escrever guiões para teatro e cinema (em 1961 estrearia uma peça precisamente intulada The Explainers), não será difícil encontrar em muitas destas frases material para um retrato da stand-up tragedy que compõem as nossas vidas.

Egoístas, Egocéntricos y Exhibicionistas. Pepe Gálvez e Norman Fernández (Semana Negra/Hermosos Ilustrados)

Fosse este pequeno opúsculo em português e o título remeteria para a primeira letra daquilo que está no centro das obras de banda desenhada aqui abordadas: o “eu”. Mas, uma vez que é espanhol, esse trocadilho perde-se. No entanto, o título não deixa de ser um jogo humorístico sobre o mergulho na própria personalidade a que a ideia de autobiografia parece convidar. No entanto, o título não deixa de ser falso, já que arregimenta muitas outras e autores que, não obstante se colocarem no centro das suas narrativas, ou pelo menos próximos do centro narrativo, não participam em nenhuma dessas características apontadas. Não é o único momento em que o livro parece falhar o seu propósito.
Como está explicitado no subtítulo deste livrinho, trata-se de uma “aproximação” e não de uma análise mais acabada. Não se trata de uma estratégia de humildade, mas de uma constatação das limitações desta obra. Tenta ser mais do que um mero arrolar de trabalhos de banda desenhada que se relacionem com o género da autobiografia, mas acaba por não apresentar quaisquer conclusões ou súmulas que sejam úteis sobre novos textos, nem sobre análises mais cuidadas de títulos individuais nem sobre panoramas que procurem linhas de força comuns entre os trabalhos.
Organizado em dez capítulos, os autores tentam garantir uma abordagem holística deste tema, ora falando de princípios gerais, ora explorando as relações do “eu” com várias instâncias colectivas (a família, a nação), ora ainda explorando as razões que compõem um Diário... Porém, não é apenas na “Cronologia apressada” que apresentam uma descrição mais rápida e superficial do que uma abordagem cuidade e crítica das especificidades e continuidades das obras referidas (e não analisadas). É natural que, face a uma lista, seja sempre possível apresentar outra, com inclusões e exclusões da responsabilidade dos autores; mas o que importa a uma lista é encontrar qual o corpus pertinente qe com ela se forma. As obras indicadas pelos autores é bastante ampla em termos geográficos, e, sendo espanhóis, incluem excelentes referências para títulos do nosso país vizinho, mas é menos conseguida no que diz respeito à cronologia (mais moderna e contemporânea) e à construção de uma coesão interna (a tal assunção de princípios). Por vezes, por exemplo, fazem confluir obras por partilharem temas comuns, temas os quais porém não são apanágio exclusivo da autobiografia (seja esta de banda desenhada ou não).
Num trabalho feito por nós, procurámos construir uma perspectiva, que não se desejava como modelar, mas pertinente no contexto desse trabalho, em que se organizavam as narrativas da memória segundo o objecto dessa mesma memória: de um eu a um eu ficcionalizado, a um eu colectivo a uma memória transfigurada. Noutros contextos, essa tipologia não funcionaria decerto. Porém, o que se sente estar em falta nesta pequena obra é uma tipologia que lhe seja própria e que permitisse aos autores uma articulação dos apontamentos a que se entregam.
É apenas no epílogo, que deveria estar na verdade no início, que os autores discorrem mais em termos gerais sobre o espaço que a banda desenhada autobiográfica criou e pode ainda criar no panorama social e criativo de toda a área. E é nele que se revela o gesto pouco equilibrado da obra: sendo os autores capazes de algum grau de reflexão (apesar de não darem conta de quaisquer leituras secundárias, quando existe já uma bibliografia significativa e indispensável num estudo desta natureza), não o provaram ser utilizável nos capítulos anteriores. Isso começa com a presença de uma citação de Fabrice Neaud, o qual discute o como um diário em banda desenhada obriga desde logo a um desdobramento (gráfico) do seu enunciador, narrador, autor e personagem (amalgamados numa só instância), que o(s) coloca(m) não num “eu” textual, mas num “ele” actancial. Os autores, quando se representam, representam-se no mesmo plano que as demais personagens, tornando-se assim idênticas a elas. Apesar desta citação, os autores não parecem utilizar esse saber em Egoístas... Falam das estratégias de maior caricaturização da parte de Sacco, J.-C. Menu, das flutuações dos estilos de desenho de Hideo Azuma e de Al Davison, da derrocada da “quarta parede” (apesar de falarem de “câmara subjectiva”) em Julie Doucet, Baudoin e Crumb, mas não identificam jamais as crises de representação de muitos destes autores, que se exploram em apagamentos, distorções, anamorfoses (sobretudo em Neaud e Baudoin, assumindo-se carácteres diferentes). Há um maior apego (e limitação) às questões de representação do que às de graphiation, que são tão, senão mais, significativas. Mais, ainda em relação a Neaud, apesar de falarem várias vezes do Journal, jamais os autores se referem ao facto de que muitas das reflexões a que os próprios se entregam serem exploradas pelo desenhista francês, no seio da própria obra (sobre o pudor, a sexualidade, o alcance do gesto autobiográfico e diarístico, a distância entre o “momento do apontamento” e o da “escrita/desenho”, o efeito de feedback que a publicação do primeiro volume teve nos seguintes, etc.). Quer dizer, o facto de não se inscreverem no debate contínuo que este tema já suscitou, ou a não utilização de uma bibliografia especializada mesmo de outras áreas para ancorar as reflexões deste livro, levam a que muitas delas sejam derivativas, incompletas e inconclusivas.
Por exemplo, referem-se a Le Photographe, mas não indicam em qualquer lugar o papel que a fotografia tem nessa obra na (re)construção e metamorfose da memória do protagonista. Plasma-se a obra de Keiji Nakazawa, Carlos Giménez e Eddie Campbell por utilizarem personagens fictícias em vez de em nome próprio, sem assinalar as diferenças profundas entre todos, nem citarem o conceito da auto-ficção (o que os faz perder de vista autores como Kevin Huizenga, Marko Turunen ou Yoshiharu Tsuge). Falam de Robert Crumb como “não parecendo ter o menor problema em se representar a si mesmo e forma directa e reiterada desde o início” sem alertarem para as máscaras várias que Crumb foi criando ao longo dos anos. Referem-se a Piero, de Baudoin, como de “um tratamento ligeiro e terno”: terno, sim; mas “ligeiro”? Jamais! E desligá-lo da obra contínua de Baudoin é um mau serviço ao autor de Nice. Maus, que é debatido em vários momentos, não é uma obra forte somente por se tratar de uma autobiografia. Aliás, é precisamente por a sua inscrição na autobiografia ser problemática que Maus se torna digna de uma atenção particular. E chegam mesmo a excluir – apesar de a citarem – a obra de P. Squarzoni, “porque esta obra, na verdade, tem pouco a ver com o modelo autobiográfico”. Ora isto leva a perguntar então qual a razão da inclusão de Seth com It’s a good life... (e não as histórias propriamente autobiográficas de Palookaville) ou das reportagens de Davodeau e Sacco? O problema não estará nesse “modelo” (que, como vimos, não é jamais construído sequer)? Quando introduzem a questão do diário, referem-se que, “por definição”, o seu destinatário é quase somente o seu autor, mas se isso já apresenta alguma falsidade em relação aos Diários literários, num diário em banda desenhada é ridículo, pois o próprio acto criativo implica um desejo, por mais abscôndito que seja, por um leitor/espectador, que implica escolhas e estratégias de enunciação próprias (até mesmo em obras outsider, como a de Henry Darger).
Algumas das sínteses que fazem das obras é bem conseguido, mesmo quando espalhadas pelos vários capítulos. Como nos casos de Debbie Dreschler, ou Angel de la Calle, Karlien de Villiers, Guy Deslile. Mas isso leva a mais desequilíbrios ainda: é como se algumas obras tivessem sido lidas com mais atenção e servido a mais apontamentos que outras, o que mina um trabalho generalista desta natureza. Identificam também muitos dos aspectos-chave da construção das memórias pessoais (ou alheias que atravessem as pessoais) nestas obras, como a fragmentação narrativa, a inclusão das reflexões sobre a linguagem da própria banda desenhada, a dissolução do “eu” na responsabilidade para com o “outro”, mas jamais estes elementos se consubstanciam em elementos de leitura metódica das obras. Numa das páginas (60), lê-se o seguinte: “Seguramente el lenguaje de las imágenes dibujadas tiene algo, una síntesis especial de distancia e implicación que permite tratar sobre los abusos sexuales y exponer este tipo de heridas abiertas a la luz de los recuerdos y la mirada ajena para ayudar a cicatrizalas”. Os autores referem-se neste passo a Gloeckner, a Dreschler, Bechdel, Olivier Ka e Alfred, mas não explicitam qual é esse “algo”, como funciona essa “síntese especial de distância e implicação”, que apenas a análise, em falta, cobriria, seguramente.
Os autores, apesar de tudo, identificam algumas das dimensões mais significativas destes trabalhos, como o facto de incutirem a “búsqueda de nuevas maneras de contar las cosas; modos que no estén mediatizados por las duras normas de la ficción” (80), mas desejava-se que explorassem a fundo essas mesmas questões afloradas apenas. Quando afirmam que “la obra autobiográfica debe mantener suficientes indicios de veracidade para permanecer fiel a su concepción”, será essa uma necessidade taxativa? Os autores referem-se a Seth (falando de “falsa autobiografia”, termo pouco feliz e aquém do já consagrado “auto-ficção”), mas não a colocam lado a lado a Blankets, de Craig Thompson (que debatem várias vezes), e o qualparticipa dessa mesma natureza. Em suma, há uma maior preocupação da parte de Gálvez e Fernández em colocarem o ónus na informação do que na poiesis própria da autobiografia em banda desenhada.
Assim, sendo um bom guia sobre o que existe, é um mapa para nos colocar frente aos marcos, mas aos quais devemos procurar outro tipo de interrogações, mais prementes.
Nota: agradecimentos a Filipe Abranches, pela oferta do livrinho.

3 de novembro de 2008

Drawing words and writing pictures. Jessica Abel e Matt Madden (First Second)

Menos do que uma leitura, que compreende o acompanhamento sério de todo um texto, procurando através da reflexão quais os pontos de diálogo mais pertinentes, deixo aqui apenas uma nota de impressões rápidas suscitadas pela consulta breve e ametódica deste verdadeiramente exaustivo manual de banda desenhada, do casal de autores e professores Jessica Abel e Matt Madden.
Como o próprio jogo do título indica, Drawing words and writing pictures aponta para a naturez biface e implicada da banda desenhada, abordando várias técnicas ora da “escrita” ora do “desenho” da banda desenhada, ainda que não se ensinem aqui técnicas de escrita nem de desenho estrita e propriamente ditas: trata-se de abordar os passos e aspectos intrinsicamente empregues na linguagem da banda desenhada: as associações e transições entre vinhetas (Groensteen falaria de articulações), a estruturação de uma página e gestão dos espaços, inclusive os intervinhetais, técnicas de uso dos lápis, canetas e pincéis, e as suas várias tipologias e resultados, tipos de papel, de reprodução, métodos de correcção das imagens, de design, o recurso a figuras, a fotografia ou outro material de referência, emprego das letras, exploração dos arcos narrativos, do desenvolvimento de personagens, experimentação dos cenários, das focalizações, dos maneirismos vários, da distribuição das personagens dinamicamente numa vinheta, das expressões faciais e corpóreas, e muitos outros conselhos paralelos, desde a identificação de autores de referência fundamental aos fanzines de 24 horas, e até mesmo exercícios que previnam dores musculares de horas de trabalho...
Olhando para o subtítulo, “um curso definitivo do conceito a uma banda desenhada em 15 lições”, pode parecer ambicioso e megalómano, mas a verdade é que nas quase 300 páginas oblongas deste livro, Abel e Madden conseguem de facto montar um curso completo de como fazer uma banda desenhada, sem consessões a princípios formulaicos (como em livros tais como Desenhar superheróinas à maneira Marvel, por exemplo...), sem descurar aspectos teóricos, históricos e terminológicos fundamentais e práticos, e sendo mesmo exaustivos, metodologica e brevemente, nas matérias a abordar nesta senda. Seguramente que existirão muitos outros aspectos por explorar, mas serão aspectos que caem fora do âmbito excluivo da banda desenhada, para serem partilháveis noutras áreas (por exemplo, a capacidade de representação e expressão dos desenhos, ou a causalidade dos eventos descritos na história). Existem muitos outros livros importantes da pedagogia da banda desenhada, nomeadamente os de Will Eisner, de David Chelsea ou até mesmo, em mais do uma instância, os de Scott McCloud (sobretudo Making Comics, igualmente excelente), os quais vão muito além de conselhos práticos e relativamente banais encontrados no exército de manuais de banda desenhada existentes no mercado, criados ora por autores medíocres ora por burocratas da pedagogia.
Sendo um livro-curso, há muitos TPCs, exercícios, e ideias... A página que reproduzimos aqui mostra algumas alternativas em encenar um breve diálogo entre duas personagens, ora de modos mais clássicos, ora mais dinâmicos, explicando-se os efeitos particulares a cada uma das opções. Todos os exemplos destes exercícios são criados pelos próprios autores, sendo eventualmente possível identificar os desenhos de Matt Madden (quase todos os pastiches serão dele, relembrando o seu 99 ways to tell a story...) e os de Jessica Abel. Todavia, não descuram, ao longo de toda a obra, exemplos concretos e bem seleccionados provindo de uma ampla escolha de autores e obras, desde Mutt & Jeff a Big Questions, de Wash Tubbs a American Born Chinese, Mignola a Baudoin, de Tezuka a Paul Pope. Naturalmente, muitos dos exemplos são retirados das obras dos próprios autores, já que não há melhor partilha de saberes do que beber da experiência própria. Esta mistura entre modelos experimentados pelos próprios autores e o confronto com excelentes exemplos quer de autores consagrados quer com talentos novos torna o volume, ao mesmo tempo, num exercício de equilíbrio e atenção muito amplo e inteligente: cria-se a ideia de uma verdadeira comunidade de artistas que, na diversidade máxima, contribuem para a emergência de um território com uma história e um valor particulares.
Como disse, existem muitas notas, conselhos e factos espalhados ao longo do livro, como por exemplo uma breve nota histórica sobre a história da impressão e o uso do azul não-fotográfico, ou uma explanação desse maravilhoso instrumento que é o Ames Lettering Guide. Importante é também o modo pedagógico com que alertam para erros comuns, exemplificando-o, de modo a criar uma forma clara de se entender a razão de que existem métodos mais acertados que outros. É neste sentido que de facto Abel e Madden conseguem tornar este livro numa obra exaustiva, até no sentido físico desta palavra: criar uma banda desenhada, pelo menos algo que desejo um mínimo valor estético ou parâmetro de qualidade (independentemente do género, estilo ou contexto criativo) requer algum esforço.
Uma das características fortes deste livro é não recorrer somente à própria banda desenhada para veicular os seus ensinamentos (como ocorre em Eisner, McCloud, Chelsea, etc.). não é que esse recurso seja necessariamente mau ou redutor, mas leva a uma estratégia afunilada. O emprego de textos explicativos, “bullet points”, notas e TPCs apenas garante uma maior amplitude na matéria dada. Não obstante, e paralela ou entrosadamente, existem duas personagens que vão ilustrando os exercícios ou exemplificando as acções: Clay, uma espécie de Tintin negro, autor de mini-comics, e Junko, jovem japonesa fã de mangá kawaii. Existem outras personagens também que são utilizadas noutros momentos. Não existindo uma história contínua que as possa transformar em personagens tout court, são no entanto suficientemente presentes para se tornarem um curiosa forma de guiar os leitores-alunos deste livro de uma forma dinâmica e interactiva (recordando quer Clique e Flash, de José Ruy, quer os Ahlalaaas no cursinho de Derib, ambos na revista Tintin dos anos 80).
Apesar de dirigido sobretudo a estudantes de banda desenhada (sem limitações etárias, culturais ou outras), cobrindo tantas bases, este é um livro a ler e reler quer por aspirantes a autores, quer por professores da área, quer ainda por teóricos e críticos que desejem, como nós, apercebermo-nos de todos os pormenores de bastidor que concorrem para o aparecimento de uma obra de banda desenhada. E há que fazer os trabalhos de casa.
Nota: o livro consultado pertence à Biblioteca da Escola Superior Artística do Porto, pólo de Guimarães.