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junho 07, 2010

O último colhedor de azuis

Márcio Bernardo levou consigo a mágica de colher azuis e de distribuí-los. 
Foi um grande amigo meu; hoje só viaja. 
Desejo-lhe todo azul de que precisa para o que segue depois do muro. 
A ele ofereço este pequeno conto.


Ele era aquele que decidiu colher os azuis do mundo. Com essa diferença de ser e de arriscar, ele foi por toda a vida, e foi o último. E como não houve companhia para esse sentir, teve de cumprir sozinho a estranha sina da cor que não sai. O primeiro azul que apanhou estava no sorriso de sua mãe. Era um azul muito por baixo da cor da boca, mas já era o início de sua coleção. E gostou tanto dessa tonalidade que quis para si sorrir sempre, imaginando que tudo que sorri é feito de azul. E foi essa alegria sem medida que o levou aos azuis de outros recantos. A partir do segundo azul, que era o da bola de gude, ele enxergou as estrelas guardadas dentro do vidro redondo, e concluiu que os azuis mais fascinantes dormem nos lugares aos quais um pé não chega. Guardou então esse cálculo para no futuro somá-lo a tudo, quando saísse a buscar infinitos, sem desconfiar de que essa fundura de azul já estava consigo. No primeiro passeio depois do dia, engarrafou um pouco do céu, que é o azul dos quatro lados; em seguida, o mar, com suas variantes de azul-verde e de azul-cinza; foi até lá, e colheu-o à praia, cautelosamente, com um conta-gotas, pois há muita água e não cabe levar de tão pesado. E sendo ainda menino sabia imaginar todo o oceanocdentro de alguns pingos. Antes haviam dito que o mar não era azul verdadeiro, mas ele constatou que de tanta distância indo, no mais depois, haveria de ser azul só. Recolhidos então aqueles mais abrangentes e de serviço a todos, os outros azuis eram os dos olhos, de como eles extraem o mundo para si, de como podem ser generosos ou mesquinhos. E nesse avançar, encontrou tipos muito estranhos de azuis; alguns que eram mais disfarce do que cor; outros adentravam vaziamente vaidades e soberbas, tanto assim que desazulavam-se em imensos escuros e medos. Enquanto  isso, os amigos, aqueles que com ele dividiam os azuis do mundo, sabiam que viver de procurar somente azul poderia ser perigoso, pois astúcia e esperteza são tonalidades que simulam azuis para atrair colhedores ingênuos. E disseram do perigo de ir muito lá e da descoloração do tempo, já que o azul tem um tempo de vida determinado pela profundidade de quem vê. Contudo, nosso colhedor, sempre tão resoluto, azulou, azulou, que não cansou da cor e dos planos disso mais. E rumou até o mais viver. Os amores da estrada ele vestiu de azul, o sofrimento, com a mesma intensidade, e aí fez disso as intenções e as memórias. E foi assim. No último dia, esse incansável apanhador de cor, em desejo de azul do infinito, quis provocar a alegria mais acesa de um sentir-se, e inebriado com a quantidade de luzes que disso vinha, não apenas da região azulada, mas do cruzamento de todas as suas variantes com lilases, com laranjas e olivas, não calculou a profundidade do passo: e isso foi só despedida. Mergulhou dentro de sua alma, espalhando-se imaterialmente por entre os azuis do ar. Na mão, o conta-gotas vazio; na estrada interditada alguns tantos sonhos, um corpo no chão, sem ir. Caiu pois do outro lado do muro, do último, sob um silêncio inteiro, de cortar os fios, de alegria ali parada, sem cor que lhe pudesse socorrer. A única possibilidade feliz dessa tristeza foi o encaixe completo dos azuis que faltavam à sua coleção, que agora tinha azuis daqui e azuis de lá. O resto da história é toda de desencaixe: os de cá, vivos, de olhos caídos de falta, sem as lições do sorriso e da generosidade, e o abandono dos azuis do mundo, que ainda estão à espera de outro colhedor, e ele foi o último.

Ricardo Fabião (Junho 2010)

(a imagem acima é de Marcelo Bresciani)

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