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julho 08, 2011

Olhares e silêncios



             O segredo daquele mundo limitado era mantido pelo nosso pai, que punha chaves em tudo o que éramos, para que não enxergássemos livremente o que havia. Sob essa presença austera e distante nada crescia, só calava; vivíamos em eterna suspensão de ser, sensação amplificada pelo som mudo das coisas de fora ― o cercado largado embaixo do sol, o mato seco e o cheiro dos quatro lados da nossa casa. Dentro, no pensamento, éramos apenas crianças do tipo que nada podem saber. E como não nos era dada a faculdade dos desejos e dos argumentos, recolhíamo-nos em silêncios e acasos, a esperar o para sempre dos dias. Nesse impasse, não havia olhares nossos que pudessem com os dele, nem mesmo palavras. No caminho, tudo se partia em lados incomunicáveis.
            Alguém dissera, quando o segredo ainda era por dois ou três partilhado, com palavras sussurradas, para que assim fosse demonstrada a gravidade do dito, e soasse apenas uma vez, que nosso genitor era pai também de outros que não conhecíamos; e que moravam noutras terras para lá do dia mais longe. Para nós, então, eles passaram a ser os outros, a quem possivelmente o silêncio oferecera, desde o nascimento, a mesma impossibilidade de ser plenamente. Esses desconhecidos tinham direito a abraços de chegada de um pai? Recebiam olhares de afeto, algo que lhes pudesse indicar algum sentimento paternal? Ou eram apenas crianças, assustadas, acostumadas a olhar e silenciar?
            Então o segredo ali conosco era só a interdição das palavras, pois longe delas havia quem gozasse, em falso cálculo, de anonimato – um pai no seu silêncio. O medo, sim, era fato instituído, insustentável, alargava e tolhia os sentimentos, dava voltas em nossas percepções de família, de amor, de mundo. Sabíamos e não podíamos saber. Nossa mãe, pelos cantos, algo esquecida na sala e na cozinha, com intenções de conduzir e aliviar o crescimento de seis filhos, calava mais naquilo que não se via. Se ela vivia sem revelar sofrimento era no jeito que se entregava à vida, acostumada com a partilha desigual dos caminhos que estão no desenho do mundo. Por isso, de olhos levados para além das janelas, ela só sabia aceitar.
           Nosso pai, por outro lado, tinha as permissões do caminho; saía com a madrugada, horário que julgava ser viável para o sustento dos seus segredos. Quando acordávamos, éramos mais olhos por sobre as coisas e mais medo por dentro na alma. Era medo mesmo, de gente sem dono, não amenizemos aqui a dimensão disso; medo de que aquele homem calado não retornasse. Ele não traria sorrisos, dias depois, quando chegasse imenso à nossa porta, pesado, a pedir por água e comida; não afagaria nossas faltas, tampouco demonstraria alegria por estar entre nós. Contudo, ele era o mensageiro do mundo de todo canto; era quem dispunha dos olhos para o nosso depois; fundara naquele silêncio o chão por onde, bem ou mal, deslizaríamos nossa existência. E foi assim que crescemos todos, ou, pretensamente isso, fingindo que aquela tristeza era somente um segredo.
            Quando nosso pai morreu, havia aquela esposa ao seu lado, dizendo-se realizada em quase tudo, pois aprendera a calcular a vida sob o jugo de uma matemática absurdamente cruel. Conseguia dizer-se plena, e ainda do pouco ofertado sentir falta. Estava ali, no recolhimento de sua condição, desde sempre, a colher silêncios, sem poder comentar sobre as noites de lamento e solidão; suspirava só. Nós, os filhos, com exemplos a serem seguidos, outros tantos a serem deixados lá no tempo em que tudo era medo, ensimesmamo-nos. Conhecedores, já, da lacuna, tomamos o pé da vida e fomos.
            Essa história, que pouco se conta de tanta palavra calada que é, desenhou as curvas da estrada, as quais percorremos hoje com desconsertado silêncio; e esse trajeto só foi possível porque em algum momento recebemos a permissão daqueles olhos de brilho faiscante, acendendo e apagando na memória. Desses olhares herdamos imensos abismos, os quais, devido à profundidade, impuseram limites, mas que, de tanto vazio, inspiraram ânsias de amplidão em nossos pés.
 
Ricardo Fabião (Julho, 2011)

Texto para o desafio de Julho - Fábrica de Letras
Tema: Segredo

A imagem acima é de Constança Lucas; disponível na página: http://constancalucas.blog.uol.com.br/arch2007-10-01_2007-10-31.html

outubro 02, 2010

O segredo da tarde sem luz



Tudo começa com a chuva de algum dezembro, assim inesperada para o tamanho do dia. Para os que dividem o instante isso desce além das necessidades, pois não excede alguns baldes a sede das plantas, nem comportam mais que dez minutos de água caída as ruas e as praças. O que molha depois disso impõe ilhas ao dia, desmonta projetos humanos. E como há desvios nisso, imaginemos uma casa no meio de tudo, e dentro uma cara de menino impossibilitado na janela da sala; depois, lá fora, com um amarelo de vestido sob a tarde, a menina da história, que corre com a mãe até alcançarem o primeiro portão aberto, e logo uma varanda, que serve de abrigo até que não haja água demais no céu para seus trajes de sair. Calculemos agora a intenção do destino: o menino corre até a cozinha, mãe, há intrusos em nossa casa. Da janela, porém, eles logo compreendem menina e mãe, pessoas que vêm com a chuva, que logo retomam seu caminho, não há problema em acontecer numa varanda de empréstimo. Lamentavelmente, é natureza da chuva não corresponder às horas e aos desejos, e o tempo avança ali. Então fica bem oferecer uma fatia de bolo à menina com quase oito e à senhora com algo depois de quarenta, que não representam perigo. Elas entram, boa tarde, então as mulheres se reconhecem de algo antes, e nisso elas se inserem como se fossem velhas amigas. Os dois menores, silenciosos, de olhos na diferença, buscam outra linguagem, a da desconfiança, da confirmação de posse do território, o ajuste de forças que sempre determina o instante seguinte. Sentam-se e comem de olhos no impasse. Quando o assunto das mães torna-se muito adulto é melhor dizer às crianças que sejam crianças em outro lugar. Sejam. Elas procuram lugar, procuram, procuram, e, de tanto que são crianças, identificam quintal e chuva como a melhor das possibilidades, sejamos então felizes. Assim, com meias roupas, as de baixo, sem cálculos disso, eles entram no mundo molhado da tarde sem luz; deixam-se aos saltos, aos impulsos, imaginam piscinas nas poças lamacentas, arriscam abraços, ensaiam olhares, percebem-se, correm, sorriem, caem, misturam-se aos cheiros do chão. Ele a beija na face, sem entendimento, sem medidas de fazer, entretanto, considera mais estranho todo o resto, o impedimento, pois logo ecoam os gritos das mulheres, um, dois, três, muitos; ele toma palmadas e ela é arrastada pelas ruas com o vestido amarelo na mão. A família da garota, gente que responde bem aos ditames da década de 50, deixa o bairro no dia seguinte, certa de que esquecer completamente é caminho possível. Depois disso, como sabemos, o tempo transforma crianças em adultos, desvios em segredos. Hoje, eles não se conhecem, não lembram mais o fato; afinal é apenas uma tarde no meio de todo esquecimento necessário ao vivente. Todavia, não sabem dizer ao certo por que gostam tanto do cheiro sem luz da chuva - algo que futuro nenhum pode transformar em pretérito; conjuga-se sem verbo, alheio à consciência, em eterno presente. Não passa.

Ricardo Fabião (outubro, 2010)

Texto para o desafio de Outubro - Fábrica de Letras
Tema: O cheiro da chuva

setembro 19, 2010

Depois do escuro das coisas


Aquela criança era da parte mais oeste que se imaginava quando alguém dizia medo; e era moradora desse lugar que não constava no mapa, que nem mapa havia, nem mesmo desenhista, um quase existir, que não crescia e não diminuía, só havia com seu tamanho entre os quatro limites, e era o começo de tudo. E ninguém ali tinha coragem de aventurar um só pé mais oeste depois disso, porque haviam dito que indo para lá dormia o sol, e deveria ser mais quente que qualquer coisa mais reluzente de se conseguir ver. E por ser o lugar do seu descanso, um ninho aceso no meio das encostas, assim com tanto amarelo, o sol fatalmente sugaria as outras cores para dentro de si. Não cabia nem pensar nesse destino de uma cor só; melhor era ter medo, para ser mais do sossego que reside em não saber. Os habitantes desse receio, por isso, com o oeste do mais assustador de imaginar, gostavam de pintar o sol nas paredes, do modo mais intenso do seu arco diário, temendo que o astro pudesse morrer para sempre de tanto oeste que repetia no passo do céu e ser por isso esquecido. Ali, o sol era a presença maior, e sem esse entendimento não havia seguir. E todos cultivavam esse cuidado só de calcular que o medo pudesse ser maior que a noite, que já levava muito horário com o azul apagado. A menina, no entanto, mais curiosa que a razão de ser do mais oeste do mundo, resolveu seguir o sol para saber onde ele fingia que morria antes do escuro. E correu sem saber e muito, acompanhando o fio da luz caída, que de tanta natureza só sabia o destino inatingível de oeste. E porque era imensa a bola brilhante, assim deveria ser o ninho em que ela deitava a gerar o dia de outras vilas sem luz. Logo a grandeza seria notada. Mas a menina cansou de tanto que não achou sol naquela largura de noite, e dormiu por cima de uns escuros que encontrou no caminho. Até que veio do leste a primeira luz de sempre. E desse lugar alheio, a menina entendeu que todo leste, por mais imaginado que seja, tem um sol de nascença, e todo oeste, por mais lá indo longe de tudo, leva consigo o sol para o seu depois. E ela ficou feliz de perceber assim o sempre das coisas. Enfim, a distância do escuro do céu foi vencida. E foi por saber mais do oeste que a vila soube das horas que chegavam do leste, um ciclo, e que não havia cansaço em repetir-se. Depois, os habitantes marcaram o dia como tempo de viver, e passaram a ser assim, como se fossem livres. E porque ainda era início todos aprenderam. Então o sol passou a ser somente a bola curiosa que dizia os horários, com direito a uma morte de estrela no dia do seu último escuro. O que não se sabe, o caminho mais alheio, onde as luzes oscilam sem horas e datas, permanece dentro do homem, sem solução.

Ricardo Fabião (Setembro - 2010)

Texto para o desafio de Setembro - Fábrica de Letras
Tema: Livre

agosto 02, 2010

A estrela que não está lá


Antes não havia desejo, só o brilho. O desejo ela inventou quando quis ser luz de outros lugares, que brilhar de fogo por dentro era coisa muito só e sem razão. E como não havia escada para descer do alto do céu, nem avião que passasse naquele lugar depois de tudo, ela, a estrela distante, decidiu descer por meio de sua própria luz, que era muito rápida e acendia mais longe do que todas as coisas que iam. E foi com esse desejo que se deu sua viagem no nada, a primeira ida e a última. E com sede de mundo ela desceu pelos raios luminosos. Então começou a contagem acelerada dos anos-luz, estrada de vida e de morte, onde, quanto mais luz se deixa aos do caminho, menos se guarda para si; um deslizar para o próprio aniquilamento, um esvair-se que ela realizou com calor e intensidade. Seu destino era então encontrar um olho que desse com sua luz, alguém que lhe atestasse a existência, que a entendesse por estrela, e que depois uma estrada que não fosse solidão se estendesse aos dois, uma longa viagem. Entretanto, curiosamente, de tanta distância que alcança uma luz, alheia ao tempo que leva disso, torna-se impossível manter-se inteira na fonte, porque no cálculo espaço vezes tempo isso lá atrás já foi, passou, apagou-se, esfriou eternamente. E foi assim tão longe quando chocou-se com o primeiro olhar humano, e tanta queima levou de si, que a estrela já não era de fato um corpo na base, mas apenas uma trajetória iluminada, uma memória acesa, uma decoração de noite sem lua. E não houve mais contato com o lugar do alto do céu de onde saiu, nenhuma mensagem do mundo de antes, que era só brilho; não voltou, pois, para envelhecer consigo. Morreu a caminho de outro olho mais distante; não chegou. Mantinha-se agora no alto do nada mais azul distante como pontinho luminoso; contudo, já não estava lá. Havia utilizado ingenuamente todas as lâmpadas do seu estoque para clarear a escuridão dos olhares do caminho. E isso não foi suficiente.

Ricardo Fabião (Julho - 2010)

Texto para o desafio de Julho - Fábrica de Letras
Tema: "Uma longa viagem..."

Imagem: "Lost Star"
Página: http://paolodomeniconi.blogspot.com/

julho 01, 2010

O repasse


Disparou a palavra 'amor' contra o carcereiro. Com urgência. Foi quase sussurrada, ao ouvido; aproximou-se, e disse assim, no último instante. Depois da palavra e do fio deixado pelo cheiro do uniforme na lentidão do corredor, o prisioneiro recebeu sua injeção de adeus, e nada mais se ouviu daquele corpo. Ficou só a palidez encerada sobre a maca e o vazio impune da seringa. Contudo, aquele carcereiro, de armas e poderes, convicto, defensor dos seus brasões de homem, até morrer e matar por isso faria, recebeu aquela última palavra e olhar, um repasse de chave, e ficou intrigado, e sentiu apertos de uma estranha saudade a poucos metros do corpo inerte do criminoso. O detento havia acertado as esquinas daquele que não se conhecia, e levou dele mais sangue ao silenciar do que seria com um tiro; doeu o instante todo, invadiu mais lá. E se é ajustado afirmar que palavras podem ferir, que se confirme ali um homem mortalmente ferido. Depois ficou a reverberar nas horas de sempre o sentido da palavra que jamais se abriu por completo; se era uma chave, não poderia ser usada, não foi. Nunca. Por que o preso não esbravejou? Por que não maldisse aquele instante? Fúria de homem para homem é mais fácil de tamanho, está no entendimento da força. Mas não foi assim. Que mundo havia naquela palavra? Que portas ela abriu? Mas, sendo porta, teria o carcereiro coragem para cruzá-la? Sobreveio o tempo. Permaneceu aquele olhar gritando para trás, na fundura do corredor que avançava, imagem que o carcereiro eternizou com angústia e engasgos. À noite, sozinho, diante de seus vazios, pensava e não pensava, sentia e não sentia, e que não desse significados àqueles silêncios! O que valia aquela última palavra multiplicada pela profundidade daqueles olhos? O que pretendia aquele ‘amor’ mencionado ali, onde, estando já à morte, seria só uma palavra? Era mais do que isso. Aquela coisa deixada ao ouvido abriu lacunas, tornou o chão um terreno movediço. Se o preso quis posteridade conseguiu; se, sussurrando, mencionou amor, deixou ao carcereiro um corte na respiração, impossibilitado agora de conseguir sossego com o que exigia de si, conhecer-se: uma porção mais pesada que o inteiro. Recebeu sibiladamente aquela verdade que gritava na sua alma, um dizer de poucas sílabas, tão breve, tão eterno. Não havia amigo para uma confissão, nem aceitação para aquele impasse. Homem guardador de tristezas e pouca luz, não permitiria que se desmontassem as moléculas mais resistentes do seu ser. Cavou, pois, fundo, o amor disparado em vez de balas, às vésperas do silêncio todo, do corredor para um nada enorme, nem céu por testemunha, apenas um sangrar. Foi com essa dor a esperança deixada na palavra, a última, com urgência de permanecer, algo que suplica por um eterno ficar. E os anos se arrastaram, e as insônias o mantiveram em constante suspensão. Por esse repasse, o morto nunca deixou de estar e de seguir junto; a palavra sussurrada ao ouvido só silenciou anos depois, juntamente com o homem firme, de armas vencidas, que nunca entendeu o sentido todo daquele disparo, mas que o abrigou em seu ser com memória e zelo, eternizado em sua versão original: ‘amor’.

Ricardo Fabião (Julho - 2010)

Texto para o desafio de Julho - Fábrica de Letras
Tema: "Disparou..."

maio 31, 2010

Ponte sobre vazios


Para Wilson, meu pai.         

          Ele pensou que havia escolhido o melhor lugar da sala, mas sentou-se justamente onde o olho do seu oponente buscava foco. Desse modo, não houve como evitar o choque entre aqueles caminhos interditados, entre os olhares que não se sabiam ver. Os dois traziam consigo a marca da solidão, o impedimento de ser, por isso não havia palavra ou instante que os ligasse. Ficariam a remoer seus silêncios até que alguém os resgatasse dali.
       O mais velho havia testemunhado um mundo de homens silenciosos, de pouco trato com os sentimentos, e, tinha certeza, não morreria de outra causa; essa voz desenhada para dentro daria, dentro de pouco tempo, o último nó em sua respiração. Com as mulheres da família ele ainda soubera resmungar umas ordens e reclamações. Com os homens, no entanto, ocorrera só o olhar partido ao meio: um olho que via, o outro que desviava para não dar no sentimento.
       O rapaz, como já lhe sabemos a solidão, teve de espelho um mundo semelhante. Tanto silêncio aprendeu que passou a ter receio das palavras. Era como se elas fossem  artigos muito preciosos, e ele não tivesse permissão para manuseá-las. Tinha medo de quebrá-las em pedaços, de repassá-las de modo equivocado àqueles que delas precisassem. E não haveria como reparar os estragos. Preferiu, então, a companhia dos animais do cercado, já que ali seus grunhidos e sussurros eram facilmente decifrados, e poderia exercitar livremente o seu silêncio, sem aquela sensação de queda e de vazio.
      Depois, quando sentados à mesa para o almoço, os meios olhares daqueles desconhecidos repetiram-se, e os silêncios mais incomodaram. Desceram com a comida; mas não totalmente. Uma parte ficou à boca; à espera de uma frase ousada, escapada dos ímpetos, mas nem isso teve força naquela tarde.
      Essa impossibilidade da palavra levava-os a tentar os pensamentos. Certamente lá dentro haveria abrigo e sossego. Puro engano: ali eles continuavam como crianças. E crianças costumam indagar o porquê das coisas; por isso a pergunta sobre o ofício do silêncio não calava. Coçavam os olhos, ajeitavam a gola da camisa, como se assim o incômodo pudesse descer e ser esquecido, mas não passava, e levava consigo a tarde inteira.
      Como se não bastasse o engasgo desse caminho que não ia, o mais velho estava especialmente irritado por ficar tantas horas longe de casa. Necessitava do seu lugar; de ruminar seus silêncios; ficava de transformá-los em velhos conhecidos. Era como rumava com suas manhãs adiante. Assim não demorou a implorar que levassem-no de volta. Na saída, sua esposa pediu a ele que fosse falar com o filho.
      Ele aproximou-se do rapaz, estendendo-lhe a mão. Naquele simples gesto iam todas as palavras não mencionadas; todos os sentimentos evitados, o medo de ser homem e de ser por isso sozinho, a estupidez, a ignorância, todos os pedidos de perdão, e aquele quase olhar, superficial lá fora, mas profundo por dentro, de quem não possui as medidas adequadas, mas sabe amar alheiamente. O rapaz devolveu o gesto de mesmo silêncio, de mesma dor e quase olhar, e não soube ser mais que isso. Selaram com esse instante o respeito aos próprios limites, cientes de que entendiam-se sem palavras e justificativas. Uma ponte sobre vazios.
      Depois ficou o sol a deitar seu último horário sobre o relevo da tarde. Maior que isso, porém, era aquele insustentável nó que eles traziam consigo desde a infância. E essa era a única estrada que eles sabiam.

Ricardo Fabião (maio 2010)

Texto para o desafio de Junho - Fábrica de Letras
Tema: "Estava vazio..."

abril 22, 2010

A fechadura



Havia o estranho homem que morava lá embaixo, onde dá embrulhos no estômago imaginar como é alcançar o fundo. Quando este chegava mais longe olhando para cima era hora de parar, pois olhar muito alto doía de imaginar quão longe ia aquela altura, e também porque não cabia em seu oco de desfiladeiro conceber um sol mais perto da cabeça, um céu ao alcance da mão. A gente do alto, para aquele morador da profundeza, tinha que andar agachada para não dar com o chapéu nas nuvens. Melhor pois era caminhar resistente sobre um chão de terra deitada mesmo, que tem segurança para o passo. Viver em chão lá de cima deveria afundar de vez em quando, estando tudo por cair e derramar-se pelos cantos, e disso morrer gente por cima de gente. Ficar ali, na barriga do abismo era como o homem de baixo enxergava a altura certa de viver.

Muito lá em cima, porém, onde um dos lados do desfiladeiro sobe apressadamente para completar o seu gigantesco “U”, morava o estranho homem do alto. Este calculava que de tão fundo era olhar descendo aquele tamanho, que imaginava no pé da encosta o inferno, o fim das coisas concebidas de viver. Calculava que naquele fundo tudo estaria morto; haveria uma placa indicando ‘não há mais depois disso’. Para ele, solo seguro é o do meio, que fica entre o céu – que ninguém alcança, e o mundo lá de baixo – onde quem cai morre. Esse buraco assustador teria que permanecer inatingível, com léguas e léguas de olhar para dentro, isento de luz cheia. Viver embaixo seria igualar-se aos vegetais, aos seres que rastejam para conseguir comida, àquilo que cai sobre o chão por ramos sem medir consequência e conforto. Não há como ter entendimento de gente.

Esses dois estranhos não se encontravam, não dividiam olhares. Habitavam lados antagônicos do mesmo medo. Então não havia abismo. Havia um desenho feito por vento, água e tempo, e tudo muito de verde e azul sobre. E havia aqueles que viviam segundo suas necessidades, os de baixo, os de cima. Gente essa que não precisa de desfiladeiros, já que possui por maior distância e vazio o medo de avançar e aceitar lógica que foge ao seu passo. Eis o verdadeiro abismo da humanidade.

Ricardo Fabião (Abril - 2010)

Texto para o desafio de Abril - Fábrica de Letras
Tema: Abismo

Fogo obsessor

                 A velha placa de metal com os dizeres “A mulher que tudo vê e ouve, e que de todas as coisas sabe” estava na parte super...