O segredo daquele mundo limitado era mantido pelo nosso pai, que punha chaves em tudo o que éramos, para que não enxergássemos livremente o que havia. Sob essa presença austera e distante nada crescia, só calava; vivíamos em eterna suspensão de ser, sensação amplificada pelo som mudo das coisas de fora ― o cercado largado embaixo do sol, o mato seco e o cheiro dos quatro lados da nossa casa. Dentro, no pensamento, éramos apenas crianças do tipo que nada podem saber. E como não nos era dada a faculdade dos desejos e dos argumentos, recolhíamo-nos em silêncios e acasos, a esperar o para sempre dos dias. Nesse impasse, não havia olhares nossos que pudessem com os dele, nem mesmo palavras. No caminho, tudo se partia em lados incomunicáveis.
Alguém dissera, quando o segredo ainda era por dois ou três partilhado, com palavras sussurradas, para que assim fosse demonstrada a gravidade do dito, e soasse apenas uma vez, que nosso genitor era pai também de outros que não conhecíamos; e que moravam noutras terras para lá do dia mais longe. Para nós, então, eles passaram a ser os outros, a quem possivelmente o silêncio oferecera, desde o nascimento, a mesma impossibilidade de ser plenamente. Esses desconhecidos tinham direito a abraços de chegada de um pai? Recebiam olhares de afeto, algo que lhes pudesse indicar algum sentimento paternal? Ou eram apenas crianças, assustadas, acostumadas a olhar e silenciar?
Então o segredo ali conosco era só a interdição das palavras, pois longe delas havia quem gozasse, em falso cálculo, de anonimato – um pai no seu silêncio. O medo, sim, era fato instituído, insustentável, alargava e tolhia os sentimentos, dava voltas em nossas percepções de família, de amor, de mundo. Sabíamos e não podíamos saber. Nossa mãe, pelos cantos, algo esquecida na sala e na cozinha, com intenções de conduzir e aliviar o crescimento de seis filhos, calava mais naquilo que não se via. Se ela vivia sem revelar sofrimento era no jeito que se entregava à vida, acostumada com a partilha desigual dos caminhos que estão no desenho do mundo. Por isso, de olhos levados para além das janelas, ela só sabia aceitar.
Nosso pai, por outro lado, tinha as permissões do caminho; saía com a madrugada, horário que julgava ser viável para o sustento dos seus segredos. Quando acordávamos, éramos mais olhos por sobre as coisas e mais medo por dentro na alma. Era medo mesmo, de gente sem dono, não amenizemos aqui a dimensão disso; medo de que aquele homem calado não retornasse. Ele não traria sorrisos, dias depois, quando chegasse imenso à nossa porta, pesado, a pedir por água e comida; não afagaria nossas faltas, tampouco demonstraria alegria por estar entre nós. Contudo, ele era o mensageiro do mundo de todo canto; era quem dispunha dos olhos para o nosso depois; fundara naquele silêncio o chão por onde, bem ou mal, deslizaríamos nossa existência. E foi assim que crescemos todos, ou, pretensamente isso, fingindo que aquela tristeza era somente um segredo.
Quando nosso pai morreu, havia aquela esposa ao seu lado, dizendo-se realizada em quase tudo, pois aprendera a calcular a vida sob o jugo de uma matemática absurdamente cruel. Conseguia dizer-se plena, e ainda do pouco ofertado sentir falta. Estava ali, no recolhimento de sua condição, desde sempre, a colher silêncios, sem poder comentar sobre as noites de lamento e solidão; suspirava só. Nós, os filhos, com exemplos a serem seguidos, outros tantos a serem deixados lá no tempo em que tudo era medo, ensimesmamo-nos. Conhecedores, já, da lacuna, tomamos o pé da vida e fomos.
Essa história, que pouco se conta de tanta palavra calada que é, desenhou as curvas da estrada, as quais percorremos hoje com desconsertado silêncio; e esse trajeto só foi possível porque em algum momento recebemos a permissão daqueles olhos de brilho faiscante, acendendo e apagando na memória. Desses olhares herdamos imensos abismos, os quais, devido à profundidade, impuseram limites, mas que, de tanto vazio, inspiraram ânsias de amplidão em nossos pés.
Alguém dissera, quando o segredo ainda era por dois ou três partilhado, com palavras sussurradas, para que assim fosse demonstrada a gravidade do dito, e soasse apenas uma vez, que nosso genitor era pai também de outros que não conhecíamos; e que moravam noutras terras para lá do dia mais longe. Para nós, então, eles passaram a ser os outros, a quem possivelmente o silêncio oferecera, desde o nascimento, a mesma impossibilidade de ser plenamente. Esses desconhecidos tinham direito a abraços de chegada de um pai? Recebiam olhares de afeto, algo que lhes pudesse indicar algum sentimento paternal? Ou eram apenas crianças, assustadas, acostumadas a olhar e silenciar?
Então o segredo ali conosco era só a interdição das palavras, pois longe delas havia quem gozasse, em falso cálculo, de anonimato – um pai no seu silêncio. O medo, sim, era fato instituído, insustentável, alargava e tolhia os sentimentos, dava voltas em nossas percepções de família, de amor, de mundo. Sabíamos e não podíamos saber. Nossa mãe, pelos cantos, algo esquecida na sala e na cozinha, com intenções de conduzir e aliviar o crescimento de seis filhos, calava mais naquilo que não se via. Se ela vivia sem revelar sofrimento era no jeito que se entregava à vida, acostumada com a partilha desigual dos caminhos que estão no desenho do mundo. Por isso, de olhos levados para além das janelas, ela só sabia aceitar.
Nosso pai, por outro lado, tinha as permissões do caminho; saía com a madrugada, horário que julgava ser viável para o sustento dos seus segredos. Quando acordávamos, éramos mais olhos por sobre as coisas e mais medo por dentro na alma. Era medo mesmo, de gente sem dono, não amenizemos aqui a dimensão disso; medo de que aquele homem calado não retornasse. Ele não traria sorrisos, dias depois, quando chegasse imenso à nossa porta, pesado, a pedir por água e comida; não afagaria nossas faltas, tampouco demonstraria alegria por estar entre nós. Contudo, ele era o mensageiro do mundo de todo canto; era quem dispunha dos olhos para o nosso depois; fundara naquele silêncio o chão por onde, bem ou mal, deslizaríamos nossa existência. E foi assim que crescemos todos, ou, pretensamente isso, fingindo que aquela tristeza era somente um segredo.
Quando nosso pai morreu, havia aquela esposa ao seu lado, dizendo-se realizada em quase tudo, pois aprendera a calcular a vida sob o jugo de uma matemática absurdamente cruel. Conseguia dizer-se plena, e ainda do pouco ofertado sentir falta. Estava ali, no recolhimento de sua condição, desde sempre, a colher silêncios, sem poder comentar sobre as noites de lamento e solidão; suspirava só. Nós, os filhos, com exemplos a serem seguidos, outros tantos a serem deixados lá no tempo em que tudo era medo, ensimesmamo-nos. Conhecedores, já, da lacuna, tomamos o pé da vida e fomos.
Essa história, que pouco se conta de tanta palavra calada que é, desenhou as curvas da estrada, as quais percorremos hoje com desconsertado silêncio; e esse trajeto só foi possível porque em algum momento recebemos a permissão daqueles olhos de brilho faiscante, acendendo e apagando na memória. Desses olhares herdamos imensos abismos, os quais, devido à profundidade, impuseram limites, mas que, de tanto vazio, inspiraram ânsias de amplidão em nossos pés.
Ricardo Fabião (Julho, 2011)
Texto para o desafio de Julho - Fábrica de Letras
Tema: Segredo
A imagem acima é de Constança Lucas; disponível na página: http://constancalucas.blog.uol.com.br/arch2007-10-01_2007-10-31.html
A imagem acima é de Constança Lucas; disponível na página: http://constancalucas.blog.uol.com.br/arch2007-10-01_2007-10-31.html