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maio 16, 2010

O zelador de morangos

          
          Não adiantou educá-la como se a vida fosse apenas um quadrado, como se o fio que costura uma personalidade obedecesse a padrões e tesouras. Desde muito cedo, impuseram-lhe a ideia de um mundo programado, estudado, mas Elisa não quis esse desenho para o caminho. Havia, segundo suas intenções, muita vida para queimar, e uma existência pré-definida não acenderia tanto fogo.
         A mãe da jovem era aquela em quem a perfeição depositou todas as medidas: sabia as regras de mesa, de sala, de quarto, e sempre que punha os pés fora de casa, demonstrava como estava apta a desempenhar esse papel de mulher 'adequada'. A sociedade brasileira da década de 50 tinha suas exigências, e ela obedecia a todas. O pai era o senhor com óculos de graus voltados para os quatro lados do controle e da continuidade; o mundo estava ali para que pudesses servir de passarela; e nessa trajetória ele desfilaria com sua família, triunfante de ter conseguido ser em vida a cópia fiel do seu pai, do seu avô, do seu bisvô.
        Juntos, naquele instante de interior paulista, eles eram a família que dava certo levar adiante: nenhuma mácula no passado, nenhuma possibilidade de desvio no futuro. Mas Elisa sabia que muitas estradas abrem-se em “Y”. Assim enxergava o seu caminho: seguir para o lado oposto do permitido. Segundo seus cálculos, depois de tomar tal decisão, não mais haveria volta. Pegaria a estrada com mais esquinas.
         A possibilidade do caminho desviado começou numa certa tarde, quando, ali, sob calor dos seus limites, eles se encontraram. Ela apenas olhou, e aquele moço, a quem todos chamavam ‘o crioulo', filho de seu José da quitanda, ofereceu-lhe um tomate. Ora, o que vale um tomate quando aos quatorze tudo o que se quer é ter mais mãos para chegar aos pontos certos? Vale muito; ela compreendeu seu gesto. E ele foi tão silencioso, e apenas sorridente, que ela percebeu como era suave sua verdade, diferente do passo arrogante dos vários pretendentes do colégio. Decidiu então pousar os sonhos naquela fresta de felicidade que se abria na esquina. Quanto às cores que separavam aqueles mundos, ela passaria a borracha que trazia em seu estojo. Tudo muito simples, próximo e possível, como deduzem os apaixonados.
         A partir daquele dia, mudou o trajeto de casa por essa esperança de amor. Agora, com três ruas de acréscimo, na volta da manhã, demorava dez minutos a mais para colher o olhar do rapazote. Ele aproximava-se, lentamente, mas trazia tantos olhos em troca que ofuscava o movimento ao redor dela; tanto assim que ficavam órfãos de chão e de horas. Às vezes, ele trazia consigo uma goiaba, um pêssego, uma maçã; estendia-lhe a mão, e ela apanhava também um pouco do carinho guardado na timidez do sorriso. Guardava as cascas das frutas dentro do guarda-roupa, com o cuidado de quem enterra tesouros.
        Assim, amando-se mais, logo avançou o tempo. No dia, enfim, dos três morangos presenteados, o rapaz juntou também coragem e revelou que era Antônio o seu nome. Depois, partilhando um pouco do que sabia, falou do cultivo dessas frutas, desde a semeadura até a colheita, ressaltou o zelo que tinha por elas. Aguardava-lhes o aparecimento do broto, o surgimento de suas flores, enfim, a chuva vermelha, que morangava os setembros e dezembros do campo. Ela apanhou tudo isso, e correu para casa.
         Depois do jantar, naquele dia do nome, ela foi para o seu quarto, e no caderno pôs em códigos a paixão que aprendeu na quitanda. Uma letra “A” na primeira folha, para que fosse a porta, e na última o “E”, porque completaria a história, e isso estaria oculto aos demais. Depois, os corações pintados de vermelho: desenhou-os no alto de todas as páginas. Só ela saberia a multiplicação disso vezes porta, vezes intensidade, vezes o mundo adiante. Só ela confiaria o destino todo a um sentimento recheado de diferenças e morangos. Dormiu calculando que Antônio era o ponto final dos seus desejos; e com essa impressão vieram outras noites e frutas.
         Todavia, não demorou até que o senhor de óculos tomasse pé de toda a história: dos minutos a mais, das frutas, dos sorrisos e das promessas de amor daqueles jovens apaixonados. Impugnou, esbravejou, gritou todas as ofensas, ameaçou todas as punições, e teve, ou fingiu, início de ataque cardíaco. Sentou-se, arfante, pesado, no sofá, para pedir água e lamentar suas tristezas de pai. A senhora da perfeição, fazendo jus às suas medidas, calou-se, enquanto conduzia a adolescente ao castigo. Recolheu as cascas das frutas dentro do guarda-roupa da jovem, e pôs tudo no lixo; e não poupou os corações pintados de vermelho espalhados nas folhas do caderno.
         E todo aquele sonho chorado por dias, a esquina, as ânsias de adolescente e a história de ser diferente, ela mesma apagou quando conheceu Jonas, meses depois. E casou três anos mais tarde com as medidas trazidas por este moço: boa família, educação no lugar e um bom futuro, que já estava no caminho; e ele não pegava em fruta, muito menos em verdura, coisa de agricultor, de cozinha e de mulher. Elisa aprendeu a perfeição da mãe, mas algo nunca se calou nessa contenção: sua incontrolável paixão por morangos.

Ricardo Fabião (maio - 2010)

Texto para o desafio de maio - Fábrica de Letras
Tema: paixão.

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