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quinta-feira, 22 de novembro de 2012

sobre a felicidade...

"Eu gostaria de saber se com outras pessoas o cérebro é responsável pela razão e pela felicidade. Comigo o cérebro consegue formar apenas uma pequena felicidade. Para formar uma vida, não basta. Pelo menos não para formar a minha vida."

(...)

"Há muito que dizer sobre a vida, mas essencialmente nada sobre a felicidade, porque assim que a gente abre a boca ela some. Nem mesmo a felicidade perdida suporta ser falada."




Herta Müller em "O Compromisso"

sábado, 28 de janeiro de 2012

"O Cavaleiro Inexistente", Romance, Ítalo Calvino

Fiquei perturbada ao reler este livro, que há muito tempo havia lido em uma versão castellana no Uruguai. Não lembro de me chamado atenção como aconteceu desta vez. Pode ser uma questão de idioma, ou uma questão interna, que seja, nem sempre estamos para ler as coisas que lemos, e por isso re-ler pode ser um risco - um risco bom.

Aqui mistura-se realidade com ficção entre contextos históricos na época de Carlos Magno. O livro já inicia com algo completamente surreal, quando numa apresentação ao imperador, há um cavaleiro que não existe, ou seja somente sua armadura existe, ao levantar seu elmo, não há corpo nenhum que a preencha. Mas ele tem voz, títulos e se chama Agilulfo. À parte desta surrealidade, é incomum também a reação das pessoas que ao fim, o aceitam bem entre a sociedade. Todo o livro tem uma feição cômica incorrigível. Desde os nomes das personagens até os fatos improváveis e ridículos aos quais eles se sustentam. Comicidade que no fim podemos ler como sátiras/criticas à uma sociedade européia daquela época, mas não só, ao ser humano em geral. O cavaleiro que não existe, em oposto a toda cavalaria, é o único a se portar com honra, lealdade, limpeza e organização perfeitas, tem todos os atributos de um cavaleiro ideal, e ironicamente é o único que não é real.

Seu nome "Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Atri de Corbentraz e Surra, cavaleiro de Selimpa Citeriore e Fez" é extenso para alguém que não existe. A seu lado tem um escudeiro louco, que não sabe nem mesmo que existe, como se só tivesse seu corpo é guiado apenas por suas necessidades primitivas, fome, sede, sono etc... Contrapõe seu mestre com um nome simples "Gurdulu", o que lembra o nome de um "bicho" ou "criatura". Está posta a dupla, o escudeiro que só tem o corpo e o cavaleiro que só possui o espírito.

Não só essas duas personagens, mas também Rambaldo, Sofrônia, Torrismundo e Bradamente e o próprio Carlos Magno, compõe o livro de forma engraçada e instingante o tempo inteiro. Uma amiga me disse que o livro lembra um pouco a literatura de Cortázar, e de fato concordo, os dois autores se lembram muito quando exploram o ridículo e o fantástico em seus livros.

"O Cavaleiro Inexistente" é de leitura fácil, rápida, simples, para mim, é um livro muito bom. Simples. Simples. Que muitos podem dizer "fraco", mas que parece um erro de leitura para mim, simplesmente por não ser pretensioso pode ser confundido como “fraco”, é simples, nunca simplório. Antes dele li o "Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios" de Marçal Aquino, que apesar de ter um título bonito, e não ser uma má literatura, é muito mais pretensioso do que de fato seu conteúdo dá conta, parece que tenta ser muitas coisas, mas de fato não é nada. Sinto falta de mais sinceridade, até a simplicidade aqui parece ser forçada. Os momentos em que o livro consegue ser mais honesto - e às vezes acontece nos momentos mais "bobos" - são os que o tornam mais potente e bonito e aí sim, faz juz ao título.




O Cavaleiro Inexistente
Ítalo Calvino
Companhia de Bolso
115 páginas

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O Mar, John Banville, Romance..

Banville escreve com clareza, embora o conteúdo pareça sempre uma espécie de mormaço. E embora a escrita se alterne no tempo e espaço, é fácil de captar, nada se parece com Faulkner neste ponto (que aí sim, é um verdadeiro sargaço). Talvez seja a melancolia do livro que me faça sentir isso - este mormaço, talvez marasmo. Achei estranho no começo, simples demais, infantil e chato, depois fui absorvendo melhor (muitas vezes a chatice vem de mim, é claro). Mas não é nada mecânico - como se poderia dizer de Ian McEwan, que ninguém me ouça.

Alors, a história inicia quando Max Modern, retorna à praia de sua infância logo após ficar viúvo. A narrativa se alterna com este presente; as lembranças de criança e de uma família que costumava passar as férias ali; e toda a fase durante a doença de sua mulher. Gosto quando ele vai se aproximando da morte, incrível, porque parece que é quando o texto é mais genuíno, de resto, às vezes - contraditóriamente - parece sem vida. A última parte do livro é muito bonita e muito bem escrita, como quem escreve do estômago - é o que sinto falta no primeiro terço. A própria relação dele com a morte e com a indiferença... e eminentemente com a vida e o que poderia ter sido feito ou o que poderá ser feito, aún, dela. A enfim relação com o mar que é apontada nas últimas páginas, lindo. Isso tudo é o mais valioso do livro. As lembranças da infância ficam insossas perto da relação descrita com a sua mulher, depois ganham mais tônus. Eu não sei, realmente. É bonito. Tem partes bonitas, apesar de outras monotonias, e acho que algumas frases justificam a existência de um livro - ocorreu para mim com este. Mas demora.


‎"Ela está alojada em mim como uma faca e, mesmo assim, estou começando a esquecê-la" o personagem Max Morden sobre a mulher, Anna.


O Mar
John Banville
Ed. Nova Fronteira
222 páginas



John Banville (1945) é um escritor irlandês.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Reflexos Num Olho Dourado - Carson Mccullers, Romance

Sensação de uma espuma que não vai de lugar pra lugar nenhum. E daqui a pouco se dissipa. Sombra branca do oceano. Estranho. Parece um lugar intacto do corpo. Como tentar alcançar o meio das costas com os dedos. Coisas para pessoas sem costela ou dançarinos. Aberrações que são tão parecidas com a gente que devemos ser nós aberrantes e não eles, eles-nós. Pequeno romance, diferente de O Coração é um Caçador Solitário que vai por páginas e páginas entrando num mundo tão intimo e tão - espuma - de cada personagem que você parece que até entende - até. Neste a coisa acontece mais rápido, mas sempre dentro de uma jornada meio netuniana. De outra ordem de compreensão. Não é muito lógica mas corresponde em algum lugar por dentro e em certo momento faz um click. Musical. Piano - como a própria Carson era tão ficcionada. Uma das personagens gosta de Bach. Um criado negro tenta aprender francês. Os casais traem uns aos outros numa espécie de acordo tácito - completamente doloroso. Um soldado gosta de andar nu em cima de um cavalo sem sela. Um capitão do exército americano em crise existencial tem uma mistura de atração e ódio por um soldado novo. Mesclas de sensações que não constroem nada... Talvez dê pra pensar que o caminho aqui é mais importante do que a direção para onde se aponta. Maresia. Espuma. Nevoada.

Reflexos num Olho Dourado
Carson McCullers
Ed. José Olympo
144 págs

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Seda - Alessandro Baricco, Romance

Hervé Joncour é um francês comerciante de Seda, devido a uma praga dos bichos-da-seda no Oriente-Médio é obrigado a partir para o Japão para consegui-los através de contrabando - nesta época, meados de 1860, este comércio era proibido.

"[Hervé Joncour] Cruzou a fronteira vizinha a Metz, atravessou o Würtemberg e a Baviera, entrou na Áustria, alcançou de trem Viena e Budapeste, e depois prosseguiu até Kiev. Percorreu a cavalo dois mil quilômetros de estepe russa, passou pelos Urais, entrou na Sibéria, viajou por quarenta dias até alcançar o lado Bakail, que as pessoas do lugar chamavam: o último. Desceu o rio Amur, costeando a fronteira chinesa até o oceano, e, quando chegou ao oceano, deteve-se no porto de Sabirk por dez dias, até que um navio de contrabandistas holandeses o levou ao cabo Teraya, na costa oeste do Japão."

É entre esse pequeno roteiro, de ida e volta, repetido diversas vezes com pequenas variações de palavras, que o romance se embalsa e se repete; funciona quase como uma espécie de refrão que nós identificamos invariavelmente ao longo do texto e ao qual nos pautamos. É como se essa maneira de tecer a partitura da história também fizesse parte do modo com que Joncour percebe o mundo novo e entramos em suas viagens com o mesmo fascínio, estranheza, e uma espécie de inércia que penso ser responsável também pela leveza (quase existencialista?) do livro.

Tenho a impressão que, neste livro, Alessandro Baricco faz o inverso de "Oceano Mar" onde sua escrita é totalmente escorrida, quase onírica, livre, as passagens dissipam uma nas outras sem saber quando termina uma e começa outra. Aqui, o autor escreve com pulso marcado, seco, enxuto e rápido. O incrível é que mesmo assim ele não perde o lirismo, que talvez seja a sua característica mais forte. Como podemos ver nas imagens que Baricco cria através de Joncour, por exemplo, ao definir o "fim do mundo" como o "invísivel", ou ao revelar ideogramas japoneses em papéis de arroz que diz são como "cinzas de uma voz queimada" etc.

Para mim, de tudo o que li, este é um dos autores de nomes mais fortes para o mundo contemporâneo. Devido a sua capacidade de criação e resignificação simbólica e imagética. Reinventar o mundo e dar/manter um lirismo nas coisas que parece quase impossível hoje em dia – se pensarmos na forma com que tornamos tudo facilmente volátil. O deslocamento de figura, compreensão, sensação provocado dentro da gente, aqui, é incessante.


"- O que são?
- Um viveiro.
- Um viveiro?
- Sim.
- E para que serve?
Hervé Joncour mantinha os olhos fixos nos desenhos.
- Você o enche de pássaros, tantos quantos puder, e depois, um dia em que lhe acontece alguma coisa boa, você o escancara, e os vê sair voando."
página 74


Seda
Alessandro Baricco
Ed. Cia das Letras
121 páginas

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Tijolo de segurança - Carlos Heitor Cony, Romance

O homem "que pensa em nada, mas profundamente" vive nesta ilha, a Ilha do Governador (Rio de Janeiro) de 1960, enfeitada por Cony, que na verdade mais parece um cenário mítico fora do espaço e do tempo - ou digo isto porque quando penso na ilha que conheço não a reconheço ou a reconheço tão perfeitamente em qualquer lugar do mundo que prefiro deixá-la como recorte atemporal. Cláudio vive nesta ilha, este personagem, que mais parece um retrato de Cony nos seus 30 anos - engraçado porque ele é irônico, descrente, pessimista, e ao mesmo tempo ingênuo, amoroso, amante?.

A ilha vai ao caos com os boatos de um suposto ladrão que ronda de madrugada, um ladrão que nunca rouba, parece andar nu, os mais crentes dizem que é o demônio, outros que é a alma de um pescador, outros que é um tarado, outros que é apenas um bêbado ou um louco, mas os loucos que mal têm? Muitos dizem que o viram, outros acreditam tê-lo visto, vultos, sombras, histórias que transformam o cotidiano da ilha com seus coadjuvantes, o bêbado que dorme ao pé das canoas, o dono do bar, o sogro rabungento, o dono da boate, a mãe velha e pobre do bêbado, os que acreditam em fantasma, os que chamam a polícia. Esse ladrão existe mesmo? E quem seria? Em torno desta tecitura a monotonia angustiada do cotidiano vai se fazendo e se arrastando dentro da ilha.

É incrível como Cony pode ser ácido, irônico e lírico - numa mesma linha. Como se cada frase contivesse todas essas coisas juntas. Tem um olhar muito diferente sobre as coisas, é quase como se a gente pudesse reinventa-las o tempo todo - e faz sentido. Ótimos diálogos. Sentimento exagerado, sempre nos extremos, é com fogo, logo depois é outra coisa. Fica o convite para ler não só este romance, mas a obra toda dele.


"Saudade lúcida é uma droga. Saudade tem muita lucidez, mais angústia que ternura. Não sei por quê, associo Hamlet à lucidez. Até que ponto ele foi lúcido? Quando duvidou do fantasma? Quando acreditou nele? O ladrão daqui da rua será um fantasma igual? Haverá lucidez nesse fantasma? Talvez a lucidez se resuma na consciência da sensação. A morte de Sócrates não foi lúcida nem a de Cristo. Preciso sentir o problema, mas não me acredito lúcido em coisa alguma. No fundo, lucidez deve ser a consciência física do mistério." pag 23

"Cláudio, sozinho, agora no living, descobre que tem medo também. Medo de não sabe bem o quê. Mas não tem ninguém a quem pedir benção. Tenta se abençoar sozinho, mas não é a mesma coisa." pag 44

"'A casa é minha'. Cládio olha para Marcela, triunfal. Ela se diverte agora, sabendo-se derrotada. É quando alguma coisa dentro de Cláduio o adverte para temer a mulher derrotada."

"- Papai?
- Que é?
- Eu não queria que o senhor nunca morresse.
Cláudio se assusta. Depois tenta ficar com o pensamento da filha, mas o susto é mais forte.
- Vou dar um jeito, minha filha."



Tijolo de segurança
Carlos Heitor Cony
Editora Objetiva
212 páginas

domingo, 3 de outubro de 2010

Confissões de Uma Máscara - Yukio Mishima, Romance

Confissões de Uma Máscara conta a infância e juventude de Kochan, garoto que vive no contexto da Segunda Guerra Mundial no Japão.

Mishima lança uma narrativa em primeira pessoa que mergulha numa amálgama de conflitos interiores e contínua busca do personagem pelo seu verdadeiro "eu". O título do livro faz alusão já a este conflito enquanto Kochan às vezes confessa vestir propositalmente a "máscara social" escondendo seus anseios mais íntimos e em outras fica realmente confuso sobre o que faz parte verdadeira de si e o que é imposição de sua própria cabeça. Há uma descoberta intensa da sexualidade e tentativas de adequação do que seria a "normalidade" - termo que Mishima usa várias vezes durante o livro - que se confundem constantemente com os impulsos e fantasias reais de Kochan. Dentro de suas primeiras descobertas está Omi, um colega repetente da escola, por quem Kochan invariavelmente se excita. Os embates dentro de si rodeiam sempre a sua dificuldade de conciliar o amor e desejo sexual e um fetiche constante em relação a morte que o contexto de entreguerra só alimenta e prolifera. A busca intensa para definir o amor ocorre enquanto Kochan se pergunta se seria possível amar desprovido do impulso sexual - como o amor que pensa sentir por Sonoko - ou se esta espécie de amor seria apenas uma farsa imposta por si mesmo?

O Romance é escrito de forma muito poética e às vezes pode parecer até ingênuo pela sinceridade com que os sentimentos e conflitos são revelados. Li alguns artigos que esta história contém muitos dados auto-biográficos de Mishima, desde dados idênticos da infância até a relação com a sua homossexualidade, os fetiches mórbidos e uma paixão por samurais - representantes de um Japão tradicional.


"Visto sob essa luz, meu ciúme - ciúme violento o suficiente para me fazer dizer a mim mesmo que havia renunciado ao meu amor - era ainda mais amor" pág 62

"A auto-ilusão era agora meu último raio de esperança. Uma pessoa que tenha sido seriamente ferida não exige que os curativos de emergência que lhe salvam a vida estejam limpos. Detive meu sangramento com as ataduras da auto-ilusão, com que pelo menos estava familiarizado, e não pensei em nada mais além de correr para o hospital" pág 144

Confissões de Uma Máscara
Yukio Mishima
Circulação do Livro
184 págs

(Esta é uma edição antiga, mas é possível achar uma edição recente da Cia das Letras)



Yukio Mishima é o pseudonimo de Kimitake Hiraoka, um dos escritores mais conhecidos do Japão; se matou - cometendo seppuku, um ritual em que os samurais cortam o próprio ventre para mostrar a pureza de seu carater - após uma tentativa falida de discursar para os soldados do quartel japonês tentando convencê-los de que desistissem da constituição e voltassem às tradições imperiais.

domingo, 12 de setembro de 2010

Paludes - André Gide

Pequeno romance para ler em uma tarde. A escrita lenta e ao mesmo tempo fluida (longe de algumas chatices do realismo) trás muito mais a sensação do que a significa do que a estrutura de um pensamento filosófico (que de fato há, mesmo que Gide nem o saiba). Parece de fato uma critica/sátira ao mundo simbolista de Paris que Gide frequentava, os grandes encontros entre literatos e intelectuais num retrato também de discussões modorrentas. Dizem que Gide, em sua vida, e em todas as suas obras esteve a procura de uma verdade interior onde pudesse se igualar à si mesmo; Paludes parece um prenúncio desta busca onde questiona a inércia e a falsa felicidade dos homens (que fecham os olhos para a sua infelicidade e não se movem). Em romances posteriores Gide parece se apoderar mais destes questionamentos ao falar sobre o "ato puro".

Paludes é também um exemplo de "reduplicação" na obra artística, já que o personagem-narrador do livro está justamente escrevendo um romance que se chama "Paludes" e ao citá-lo vez ou outra no livro não sabemos à qual dos dois romances (o que estamos lendo x o que o personagem escreve) o autor está se referindo. Uma situação parecida ocorre em "Os Moedeiros Falsos" de Gide em que o personagem também escreve um romance homônimo.

Prefácio de Gide para o livro:

"Antes de explicar meu livro aos outros, espero que outros mo expliquem. Querer explicá-lo primeiro é limitar-lhe desde já o sentido; pois se sabemos o que queríamos dizer, não sabemos se estávamos dizendo apenas isso. Sempre dizemos mais do que ISSO. E o que me interessa acima de tudo é o que eu coloquei nele sem saber, essa parte de inconsciente, que gostaria de chamar a parte de Deus. Um livro é sempre uma colaboração, e o livro vale tanto mais, quanto menor é a parte do escriba e maior a participação de Deus. Esperemos de todos os lados a revelação das coisas; do público, a revelação de nossas obras."


Paludes
André Gide
Ed. Nova Fronteira
125 págs


domingo, 15 de agosto de 2010

O jardim de cimento - Ian McEwan, Romance

Esse é o primeiro romance de McEwan, e de todos os que li até agora, sinto que é o melhor. Parece que aqui sim, McEwan acerta com sua habilidade técnica literária para uma história genial que exige desenvoltura. Não dá para julgá-la, senão como obra isolada, tamanha a diferença com outros livros do mesmo autor - por exemplo "Na Praia" que não é nada demais. A narrativa pragmática, detalhada, (distanciada até), aparentemente fria ou mórbida e sem qualquer psicologismo de McEwan adentra o universo de uma família completamente absurdo e a transforma em algo impressionantemente natural (além de curioso, gostoso de ler também pelo clima de tensão sempre muito bem pensado).

Quatro irmãos (Julie, 17, Jack, 15, Sue, 12, Tom, 6), perdem os pais repentinamente logo no começo do livro, ao manterem isso em segredo passam a viver sozinhos na casa isolada da família. O enredo se constrói a partir de então quando eles tém a possibilidade de experimentar uma sensação extrema de liberdade e perda que se misturam do começo ao fim. Antes que ninguém externo descubra o fato ocorrido, passam-se meses em que as personagens vivem à margem da moral social, se descobrindo, estreitando o laço entre si (que passa da fraternidade, maternidade, até o erotismo), transformando também as relações consigo mesmo (numa auto-descoberta e amadurecimento contínuo) e até na relação com a casa onde vivem. São rumos inusitados para situações inusitadas que de acordo com a naturalidade que são desenvolvidas nos faz acreditar que era assim mesmo que as coisas deveriam ser feitas.

É impressionante a habilidade "cirúrgica" de McEwan costurando com domínio e precisão todo desencadeamento dos fatos. Além da originalidade com que são contados.





O jardim de cimento
Ian McEwan
Ed. Companhia de Bolso
129 páginas

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Sobre heróis e tumbas - Ernesto Sabato, Romance

Buenos Aires, década de 50, com uma pluralidade narrativa imensa, Sabato inicia uma trilha (assustadora) para os porões da loucura, a qual parece ser o personagem principal desse livro. São várias vozes que pertencem ou rodeam de alguma forma a família Olmos, lotada de entes estranhos obsecados por mundos completamente insanos que vão sendo revelados no decorrer da obra. A entrada nestes mundos através das descrições de Sabato nos trás uma veracidade tal que é como se estivessemos dentro dos olhos de cada louco e começamos a questionar o que faz parte da realidade e o que não ou por que o mundo deles seria menos real do que o nosso. A fenomenologia caberia bem aqui. Pode-se concluir, conforme afirma um dos loucos mais conhecidos do centro manicomial Pinel do Rio de Janeiro que "As portas do hospício estão do avesso".


Não é um livro fácil, não só pelo número de páginas, mas pelo excesso de elementos históricos, personagens, vozes etc contidas no texto. Muitas vezes durante a leitura acabei pensando que Sabato poderia excluir umas 200 páginas e o livro seria o mesmo, mas é claro que esse parece um olhar pobre ou ingenuo demais. Talvez se fosse mais compacto do jeito que eu o imaginava, essa nossa expedição não chegasse tão fundo, no musgo do musgo do musgo como ficamos ao final. Mas é difícil, afinal, nunca é simples emaranhar-se tanto assim, senão no âmago das nossas condições, em mundos cheios de nós mesmos. - e de maneira tão bizarra ou tão cheio de sombras.

Os principais fios narrativos são Alejandra, jovem, que conforme Sabato já nasceu madura, com a velhice por dentro, torturada e caótica; Fernando, homem obsecado pela cegueira, passa sua vida fazendo um relatório sobre a Seita dos Cegos, que aliás preenche um dos 4 capítulos do livro; Martín, jovem apaixonado por Alejandra, enciumado, tímido, obsecado e ao mesmo tempo temeroso da família a qual ela pertence; e o general Juan Lavalle, que tem sua história recontada por flashes narrativos dentro e fora da boca dos personagens, herói da independencia argentina que lutou contra o tirano Rosas e teve que bater em retirada para a Bolívia um século antes de todo o cenário do Romance ser construído.

Sobre heróis e tumbas
Ernesto Sabato
Ed. Cia das Letra
623 páginas














Ernesto Sabato (Rojas, 1911) é um ensaista, escritor e artista plástico argentino. Sobre Heróis e Tumbas foi considerado o melhor romance Argentino do século XX

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Oceano Mar - Alessandro Baricco, Romance

[se eu tivesse que esconder meu nome (minha alma, minha palavra, meu corpo) em um livro seria esse] [em colchetes para ninguém ouvir]

Poesia em forma de prosa (que poderia também ser um ensaio filosófico, um romance, ou uma espécie de bíblia com os axiomas mais ímpios do oceano inscritos aqui e formulados em algum lugar qualquer do universo etc etc), Alessandro Baricco descorre um tratado sobre o mar que só quem o conhece, mergulhou de fato em seu infinito ventre (e falo sobre a intensidade e não quantidade - um único banho às vezes basta) poderá sentir do que se fala, se vomita, se música, se palavra, se mar. É espelhar a si mesmo, horrível e doce. Certo e incerto como só o mar, "no mar nunca se sabe".

O Romance conta (canta?) muitas histórias, são personagens que se desdobram e se mergulham através do contato com o oceano, protagonista principal deste livro. Um navio da marinha francesa que naufraga; um pintor, Plasson, que mantém uma obsessão pelo mar e só consegue pintar coisas que estejam intimamente conectadas à ele, tanto que molha seus pincéis, em uma meta-linguagem linda, em águas do mar para pintar. Bartleboom, um cientista que quer descobrir onde termina o mar e escreve cartas de amor à mulher da sua vida que ainda não conheceu; Elisewin, menina doente que sai de seu castelo acompanhada pelo tutor, Padre Pluche, para curar-se no mar; Adams e Savigny, náufragos; crianças estranhas e mágicas; um velho que benze o mar... E tantos outros que chegam e se transformam ao redor da estalagem Almayer bem em frente
ao mar.

"A única pessoa que realmente me ensinou alguma coisa, um velho que se chamava Darrell, dizia sempre há três tipos de homens: os que vivem diante do mar, os que se lançam ao mar, e os que do mar conseguem voltar, vivos. E dizia: você verá que surpresa quando descobrir quais são os mais felizes." pág 118

"- Não complique as coisas, Padre Pluche, a questão é simples. O senhor acredita realmente que Deus existe?
- Bem, agora, existir parece-me um termo meio excessivo, mas creio que ele esteja, é isso, de um jeito muito particular, esteja." pág 94

"Mas depois a vida não se desenrola do jeito que você imagina. Faz o seu caminho. E você o seu. E não é o mesmo caminho. Assim... Não que eu quisesse ser feliz, isto não. Queria... salvar-me, é isso: salvar-me. Mas compreendi tarde de que lado era preciso seguir: do lado dos desejos. A gente espera que sejam outras as coisas que salvam as pessoas: o dever, a honestidade, sermos bons, sermos justos. Não. Os desejos é que salvam. São a única coisa verdadeira. Você fica com eles e será salva. Mas eu compreendi isto tarde demais. Se você der tempo à vida, ela toma um rumo estranho, inexorável: e você percebe que àquela altura não pode desejar algo sem se machucar. É quando tudo vai para o espaço, não há como escapar, mais você se agita e mais a rede se emaranha, mais você se revolta e mais você se fere. Não há como sair. Quando era tarde demais, eu comecei a desejar. Com toda a força que tinha. Machuquei-me tanto, mas tanto que você nem pode imaginar." pág 79, 80





Oceano Mar
Alessandro Baricco
trad. Roberta Barni
Ed. Iluminuras
222 págs








Alessandro Baricco (Turim, 25 de janeiro de 1958) é um escritor, crítico musical e diretor italiano, um dos mais importantes da ficção italiana contemporânea.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

As Brasas - Sándor Márai, Romance

Estou em um estado de fascinação tal que é pretensioso querer que as palavras me imitem. Sempre tenho o cuidado de escrever sobre um livro logo após terminá-lo para que as minhas impressões saiam da forma mais viva e genuína possível. Embora isso tenha me funcionado bem, muitas vezes não me parece saudável no ponto em que eu não estou preparada para terminar de digeri-lo. Enfim. Que saia o indigesto. Peço desculpas se for passional demais.

Sandor Márai neste texto se apresenta com uma fluidez, elegância e densidade que é quase impossível não entrar na dança - uníssono do romance. É como escutar a voz grossa de Nina Simone, bruta e ao mesmo tempo lisa. Espessa e lisa. Somos tomados pelo texto. Sedimentados pelo texto e fluímos para dentro de si mesmos com carinho - não só, mas delicadamente sempre. Sándor Márai consegue ser profundo sem ser ácido, consegue enfeitiçar-nos sem machucar tanto quanto Clarice e outros; nos situa no tempo e espaço sem ser excessivo como algum escritor desses realistas; profundo sem abusar da nossa capacidade de suportar sentimentos. Ele vai na medida assim como Hermann Hesse tão piedoso com as nossas feridas, mas sem ignorá-las, alcançando-as mansamente.

A história de "As Brasas" se passa em um castelo da Hungria, onde um velho general do império austro-húngaro recebe a visita de um antigo amigo após quarenta e um anos sem vê-lo, desde que este último desaparecera repentinamente sem dar explicações. O motivo de seu desaparecimento? É o que com esse retorno esperamos desvendar. Algo acontecera na véspera deste desaparecimento, um segredo o qual os separaram por quarenta e um anos e que Sándor Márai desnovela através de solilóquios (lindos, diga-se de passagem) feitos pelo anfitrião ao visitante, que acabam por ocupar quase o livro inteiro. Sándor Márai parece saber muito sobre a solidão humana, após tantos anos exilados, anos de espera e é assim que toma a boca do personagem ao relatar os quarenta e um anos que dividem o encontro dos dois amigos. É um romance que fala de paixão, honra, solidão, mas sobretudo amizade - o fio que deve sustentar o homem através da vida, algo que não desvendamos, mas inevitável não encarar.

"Viveram lado a lado desde o primeiro instante, como gêmeos no útero materno. Não precisaram fazer pactos de amizade como costumam fazer os garotos dessa idade, que se lançam com paixão e ostentação a rituais ridículos e solenes, dessa forma inconsciente e grotesca com que o desejo se manifesta entre os homens, quando decidem pela primeira vez arrancar do resto do mundo o corpo e a alma de outra pessoa para possui-la com exclusividade. O sentido do amor e da amizade estava todo ali. A amizade deles era séria e silenciosa como todos os grandes sentimentos destinados a durar uma vida inteira. E como todos os grandes sentimentos, também continha certa dose de pudor e de culpa. Ninguém pode se apropriar impunemente de uma pessoa, subtraindo-a de todas as outras." As Brasas, página 32


As Brasas
Sándor Márai
Cia das Letras
172 páginas








Sándor Márai (11 de abril de 1900 — 22 de fevereiro de 1989), foi um escritor e jornalista húngaro (nascido no atual território da Eslováquia)

domingo, 6 de junho de 2010

Na Praia - Ian McEwan, Romance

Este livro de Ian McwEan, lançado em 2007, conta a história de Edward e Florence, passado em Julho de 1962, virgens e recém-casados em sua lua de mel, prestes a passarem sua primeira noite juntos. A tensão do romance está entre as diversas e diferentes espectativas do casal; Edward entusiasmado e sonhador e Florence com uma certa repulsa, ambos sem poder demonstrá-lo.

Eu tenho que tomar cuidado para não falar mal, errôneamente, deste livro. Mas confesso que desde o comecinho eu tive que me esforçar bastante para não abandoná-lo. Pareceu-me por hora estar lendo um livro infanto-juvenil; não pelo tema que embora pareça clichê "Eram jovens, educados e ambos virgens nessa noite, sua noite de núpcias, e viviam num tempo em que conversar sobre as dificuldades sexuais era completamente impossível" (de acordo com o primeiro parágrafo do livro) mas pelo seu desenvolvimento; o tema não é coisa que bloqueie minha vontade de ler, pois acredito muito mais no "como" do que no "o quê" e por isso me mantive firme desde a sinopse até a última palavra. Aliás, considero por vezes um desafio muito maior tratar de temas tão clichês e transformá-los de alguma forma, mas é preciso fazê-lo bem, senão a coisa se torna previsível e chata.

Pois, McEwan não conseguiu me surpreender no "como", e como o tema já me era passado, o livro ficou por isso mesmo. Não sei bem como dizer isso, mas achei-o por vezes "legível" demais, tudo é muito explicado, até didaticamente, o que deixa o livro um pouco entediante, não me é possível advinhar muitas coisas. Claro que também não posso identificá-lo como mal escritor (não poderia mesmo, pois não li nenhuma outra obra sua), ele demonstra dominar muito bem as táticas literárias e é preciso na alternancia entre os pontos de vista de Edward e Florence, radiografando seus pensamentos e motivações internas, contrapostas também com suas atmosferas sociais e a própria da época. Além disso, talvez o maior mérito do livro seja o envolvimento que Mcwean consegue passar através de um clima de tensão crescente (principalmente do meio para o fim), onde o leitor se sente ansioso à medida que o tempo avança para o final inevitável, clímax que com certeza é a melhor parte do livro. Outra coisa interessante é que McEwan escolhe justamente o ano de 1962 para tratar de um tema que logo depois seria "arregaçado" com a Revolução Sexual de 68. Pode ser como se Florence e Edward representassem o último fio daquela postura pudica até então.

Na Praia
Ian McEwan
Ed. Cia das Letras
128 páginas



Ian McEwan (Aldershot, 21 de Junho de 1948), é um escritor britânico da atualidade.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

O Fio da navalha - W. Somerset Maugham, Romance












"A noite é escura / E o caminho é tão longe que me leva a loucura / Andando e dançando / No fio da navalha / Eu sou o faquir / Eu sou o palhaço / E um grande canalha" (Estrela da Noite, Jorge Mautner)



Certo. Neste fio de navalha, o qual percorre a vida, há sutilmente dividido de cada lado o dentro e o fora. E eu estou inclinada a achar, como Larry Darrel, personagem central deste livro, que a verdade está mais dentro do que fora. Certo, não cristalizemos a verdade, deixe que ela exista em qualquer lugar: mas entendo, ou melhor, sinto, que a minha verdade - e penso que nenhuma mais poderá me ser tão válida - está dentro, completamente dentro desta minha carcaça (elétrica, por sinal). Talvez seja um pouco utópico sugerir que não somos obrigados a viver da forma com que a repetição geracional nos impele e que esta coisa a qual se define como a rotina padrão mundial é sim coisa que existe para ser rompida; que o casamento, trabalho, filhos, fordismo, comunismo, almoço, bom dia, diplomas, é só mais uma forma de experienciar nossa pequena passagem pela terra e que por não conhecermos outra forma não quer dizer que não exista. Sim, existe (aqui lanço a sugestão, utópica ou não, com o perdão da palavra: foda-se.) Há mais verdade dentro de nós do que fora: Há o que o nosso corpo pulsa. Há "vim ao mundo à passeio". Há "vim vadiar". Há "espontaneidade". Há "prefiro não". Mas não pretendo fazer nenhum tratado, de forma que sinto que estou falando isso mais para mim mesma, numa espécie de auto-convencimento, do que para qualquer outra pessoa. Enfim.

Maugham (que descobri pronunciar-se "môme") neste romance, conta a história de um homem (Larry) que afetado pela Primeira Guerra Mundial, onde participou como aviador; perdido, desiludido, traumatizado ou quem sabe 'libertado', que seja, desestrutura sua visão de mundo e decide ir em busca daquilo que para ele seria alguma espécie de essência pulsional. Para isso renuncia aos estudos acadêmicos, à oportunidades de trabalho, ao seu noivado etc, e inicia uma viagem pela Europa (e mais tarde para outros lugares) com a intensão apenas de "vadiar". Entendo que "vadiar" possa remeter diretamente a alguma espécie de diversão irresponsável, não é bem à isso que Lary se refere, mas o termo casa bem com o "sem ofício e sem emprego", em rumo de não sei o quê, não sei quando e não sei aonde, com a esperança que possa achar algo de si mesmo. Ao redor de Larry, outras personagens se tecem, fazendo uma boa representação dos tipos daquele início de século XX (e que sem esforço podemos atualizar para hoje); desde aqueles que consideram a cultura uma posse exclusiva de uma elite estanque, em que ser culto é uma condição de status social e não por ter conhecimento, passando pelos variados artistas, até aqueles que buscam a autodestruição das drogas, do álcool, da farra de alguma forma insensata. Toda a futilidade e mesquinhez desta época aparece através deste núcleo que em algum instante também tenta convencer Larry à "endireitar-se", sem compreender de ângulo algum suas escolhas.

O livro pode ser visto também como um confronto de um mundo velho contra um mundo novo instável em incessante transformação, com suas infinitas direções. Mundo velho muito bem representado pela figura de "Elliot" que antes brilhava no meio social e termina o livro em seu leito de morte sem ser convidado para uma festa, a qual considerava de suma importância. Tudo isso registrado e narrado por um personagem-escritor, que se diz o próprio Maugham, desde o fim da Primeira Guerra, passando pela crise de 29, até provavelmente o inicio da Segunda Guerra. De minha impressão escrita, c'est ça. O resto são sensações.

"- Pobre Larry - disse ela, rindo baixinho. - O senhor não me vai dizer que ele está aprendendo grego para assaltar um banco.
Também Ri.
- Não vou, não; o que estou tentando dizer-lhe é que há homens que sentem tão intenso desejo de fazer uma determinada coisa que não podem absolutamente deixar de fazê-la. Estão dispostos a sacrificar tudo para satisfazer esse anseio.
- Até mesmo as pessoas que gostam deles?
- Oh! Sim.
- Não acha que isso é puro egoísmo?
- Não sei dizer - respondi sorrindo.
- Que útilidade prática pode ter para Larry o estudo de línguas mortas?
- Algumas pessoas tem um desejo desinteressado de adquirir cultura. Não se pode dizer que seja um desejo ignóbil.
- Mas de que adianta a cultura se a pessoa não pretende utilizá-la?
- Talvez ele pretenda. Talvez só o fato de saber seja uma satisfação, como ao artista basta a satisfação de produzir uma obra de arte. E talvez seja só um passo para coisa mais avançada.
- Se ele tem tanta sede de saber, porque não foi então para o colégio quando voltou da guerra? Era o que o dr. Nelson e mamãe queriam que ele fizesse.
- Falei com Larry sobre isso em Chicago. Um diploma de nada lhe adiantaria. Pareceu-me que ele tinha uma idéia exata do que queria, mas sentia que não ia encontrar satisfação numa universidade. Você sabe, no estudo existe o lobo solitário, da mesma maneira que existe o lobo que se move com a alcateia. Acho que Larry é uma dessas pessoas que não podem tomar outro caminho a não ser o seu próprio." (trecho da conversa entre o narrador-personagem e Isabel, pág 157, 158)



O Fio da Navalha
W. Somerset Maugham
Ed. Globo de Bolso
558 págs



mais de Maugham

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Gracias Por el Fuego, Mario Benedetti, Romance

Há algo na literatura uruguaia de tão doce e triste que não sei de fato explicar. Mas é sutil. O que leio parece a voz de um povo que foi violado, perdeu algo muito preciso (ou precioso?) dentro dos seus dias, um povo que foi ferido na sua ingenuidade mas que permaneceu inerte de alguma forma numa espécie de impotência, não sei se conformismo. Ao conhecer o uruguai só pude encontrar pessoas amáveis, de nenhum jeito histéricas, embora carregassem algum uníssono de tristeza. Na obra de Mario Benedetti isso não é diferente. Mesmo em seus livros mais políticos, parece ter uma voz tão próxima e tão intima do leitor que cheguei a me emocionar bastante durante os dois romances que li.

Gracias por el fuego, se passa no Uruguai e narra a história de Ramon Budiño que é confrontado com seus desejos, sua impotência em relação a si mesmo e à sociedade,(sua baixo-estima? falta de crença em si?) principios e ambições tortuosos não claramente definidos e o amor e ódio que mantém pelo seu pai, Edmundo Budiño - que aparece como um personagem magnata totalmente sem escrúpulos. A relação dos dois é a parte mais forte do romance, fazendo um paralelo com a opressão/dependência capitalista dos anos 60 no país, representado pelo pai, e a impotência de um povo, representado pelo filho, que está perdido, confuso e embora não aceite totalmente a expansão da corrupção em sua pátria, se omite. A falta de perspectiva de Ramón, seu eminente fracasso em relação à sua subjetividade, individualidade, desencanto consigo mesmo, o põem em um redemoinho tão grande que só consegue vislumbrar o assassinato de seu pai como a única saída e solução para si, para o país, para seu filho adolescente. Até chegar nesta conclusão e após, o enredo se constrói.

"Apresento-lhes Ramón Budiño, ao começar a jornada em que resolveu matar Edmundo Budiño, um crápula que provisória e casualmente é seu pai. Roga-se por não inquirir por circunstâncias antenuantes, porque não as há. Trata-se de um crime longamente ruminado. A única sorte é não acreditar em Deus. Assim há menos complicações. Apresento-lhes Ramón Budiño, vivissiccionista das relações com seu pai, insone fora de foco, covarde que joga sua última carta de valentia, nu com incipiente pança, iminente órfão por própria decisão e meditado rompante, apaixonado sem beijos e sem língua, pobre diabo inteligente e carrancudo, criminoso inesperado no entanto, estúpido com excesso de memória, criador da 'própria absolvição, pálido esquerdista sentado à direita, abastado possuidor de escrúpulos elétricos, curioso da própria morte e também da alheia, cansado de ser displiscente, pai desolado e sem norte, valoroso sexual, perpléxo incurável, eu." pág 121/122



Gracias Por el Fuego
Mario Benedetti
Editora L&M POCKET
266 páginas



(Leia sobre Benedetti nas postagens anteriores)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Por que não ler Paulo Coelho?

Ou "Por que ler Paulo Coelho?" Também poderia se chamar.

Neste início de ano ganhei um exemplar de um livro do Paulo Coelho de um amigo. Sem poder adiar mais o que eu jáa havia planejado antes - ler Paulo Coelho para tirar eu mesma minhas próprias conclusões sobre este autor que a crítica tanto esmaga - aventurei-me na aventura de mergulhar sobre suas páginas. O exemplar que li foi Brida. Sem querer repetir-me demais, segue parte do email que eu enviei ao tal amigo com as minhas sinceras impressões:

"Se gostei do livro de um modo geral? Não sei. De certo não é uma leitura que me desagrada, li facilmente e ficava angústiada nos momentos em que tinha que parar de ler. O Paulo Coelho sabiamente nos deixa com sede capítulo após capítulo. E por isso li tão rápido, praticamente o engoli. O livro fala de assuntos que tocam meu coração e que entendo bem. É uma linguagem (mistica? espitiual? vital? humana?) que me adoça, me gusta.

Porém de fato não é a literatura que gosto de ler. E nesse ponto talvez eu seja chata. Sinto que tanto a trama quanto a forma com que ele escreve são clichês e não encontro muito do refinamento e a complexidade que tanto gosto nos livros. A narrativa segue uma estrutura básica de tensão, climax, desfecho e catarse, e não inova muito neste ponto. A escrita se mantém com falas simples e usuais, quase esperadas. E na criação dos personagens também me falta, não que me soe simples - porque a simplicidade muitas vezes é uma virtude - talvez seja mais superficial, parece não se preocupar muito na construção das personagens e acaba por criar uma desarmonia (desproposital) às vezes entre o que a personagem fala, deseja e faz. É certo que não são personagens fúteis - não é disso que falo quando me refiro à superficialidade - elas fazem questionamentos profundos mas não se permitem perder-se e entrar nesses questionamentos e abrir a gama de leques e a complexidade que é própria deles - e o ser humano não é mesmo complexo?


enfim,

uma vez li que os livros do Paulo Coelho faziam tanto sucesso porque ao utilizar, por exemplo, frases como "quando você quer alguma coisa, todo Universo conspira para que você realize seu desejo" que determinam bem a maioria de seus livros, acabam por preencher o vazio da sociedade de massa que está afundada em desesperança, e perplexas sem entender o isolamento que se meteu o indivíduo. Porque não enxergam a origem (capitalista, ou seja lá qual) que gera aquilo tudo.

Ao ler o livro, não tenho como não concordar com esta afirmação. Embora ache que a crítica seja severa com o Paulo Coelho. Também acho que ele leva espiritualidade e abre um portal de questionamente de maneira simplificada às pessoas que não chegariam lá de outra forma. E de qualquer jeito, todos precisamos alimentar nossas esperanças e nossas almas - desde que não nos aliene."

Brida
Paulo Coelho
Editora Planeta
264 páginas


Paulo Coelho ((Rio de Janeiro, 24 de agosto de 1947) é um escritor, de muitos Best Sellers, brasileiro.

O Coração é um Caçador Solitário - Carson McCullers, Romance


O Coração é um Caçador Solitário de Carson McCullers é um livro muito sofrido, de leitura às vezes quase infantil, mas de uma crueza que nos depara o tempo todo com a inevitável solidão humana. O livro narra a história de cinco personagens que às cegas procuram respostas e rostos humanos para as suas angústias, pensamentos, desejos, ideologias internas. Em vão os cinco personagens parecem vagar no escuro cada vez que tentam falar e discorrer com os outros sobre o que se passa por dentro deles, cada um à sua maneira. O único personagem que parece dar algum alento aos seus pobres corações aflitos em busca por co-existência é um mudo, John Singer, que os "escuta" educadamente sorrindo, com paciência, a cada um que vai visitá-lo. Este é o único que une todos os personagens de maneira mais direta e os faz sentir-se um pouco menos sofridos em sua solidão diária, embora este mesmo seja obrigado em certos momentos da obra a mergulhar dentro de si mesmo, nas noites escuras ou seja lá em quais situações, em que parece buscar alguma resposta para sua própria existência sozinho. Resposta é o que todos procuram, mas resposta para quais perguntas? É um dos questionamentos que Biff Brannon um dos personagens se faz ao longo do Romance. É impossível não se intrigar com os gritos surdos de cada um e não olhar para si mesmo e se deparar também com a solidão que imprescindivelmente vivemos ou somos.


O Coração é um Caçador Solitário
Carson McCullers
Editora Cia das Letras
453 páginas


Carson McCuller (19 de fevereiro de 1917, Columbus, Georgia – 29 de setembro de 1967, Nyack, New York) foi uma escritora Norte-Americana e escreveu este livro com apenas 22 anos de idade, sendo seu primeiro romance.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Pontos de vista de um palhaço - Heirinch Böll, Romance

Pontos de vista de um palhaço conta a história de Hans Schnier, um palhaço profissional que apesar de ter feito muito sucesso entra em decadecência após ser abandonado por Marie, seu grande amor. Schnier passa a beber e perde a inspiração, se torna um palhaço mediocre, melancólico e triste. É irônico e ácido como ninguém ao narrar e debochar da moral católica e das impressões do pós-guerra a qual se encontra a Alemanha. Está sempre, (além de sofrido, apaixonado, e bêbado) cutucando as feridas e as falhas de caráter dos outros personagens que se encontram dentro desta turma, principalmente os religiosos que o julgam, escondem e protegem Marie, e sua mãe que anteriormente parece ter sido conivente com o Nazismo.

Como Schnier está falido, com o joelho machucado e quase passando fome, é obrigado a pedir dinheiro emprestado a qualquer custo para seja quem for. Telefona para todas as pessoas que conhece, inclusive os católicos que abomina, apelando para um suporto sentimento cristão (com muita ironia, é claro). O romance é dividido entre lembranças do passado em que ainda vivia com Marie e o (decadente) presente.

"Não sou religioso, nem ligação com a igreja eu tenho, só me sirvo dos textos e das melodias litúrgicas por razões terapêuticas: é o que mais me ajuda a superar os dois sofrimentos que por natureza carrego comigo: melancolia e dor de cabeça. Desde que Marie se bandeou para o lado dos católicos (embora Marie seja católica, acho adequada minha formulação), ficaram mais intensos esses dois sofrimentos, e mesmo o Tantum Ergo ou a Ladainha Lauretana, meus analgésicos favoritos até aqui, quase já não surtem efeito. Um medicamento vem funcionando por enquanto: o álcool - haveria uma cura definitiva: Marie; Marie me abandonou. E se palhaço começa a beber, a decadência é certa, cai mais rápido que telhador embriagado despencando do telhado." trecho página 11.


Pontos de vista de um palhaço
Heinrich Böll
Editora Estação Liberdade
308 páginas.



Heinrich Böll (Colónia, 21 de Dezembro de 1917 — Kreuzau, 16 de Julho de 1985) foi um escritor vencedor do prêmio Nobel, alemão, do período do pós guerra.

sábado, 29 de agosto de 2009

trecho de "O Destino de um Homem" - W. Somerset Maugham

"Não prestei muita atenção, e como ela parecia se prolongar, aproveitei para refletir sobre a vida do escritor. É uma vida cheia de contratempos. Para começar, ele deve sofrer a pobreza e a indiferença do mundo, depois, tendo conquistado uma parcela de sucesso, tem de se submeter sem protesto aos seus riscos. Depende de um público inconstante. Está a mercê de jornalistas que querem entrevistá-lo; de fotógrafos que querem tirar-lhe o retrato; de diretores de revistas que o atormentam por causa do imposto sobre a renda; de pessoas gradas que o convidam para almoçar; de secretários de instituíções que o convidam para fazer conferências; de mulheres que o querem para marido e de mulheres que querem divorciar-se dele; de jovens que lhe pedem autógrafo; de atores que desejam papéis e estranhos que querem um empréstimo; de senhoras sentimentais que lhe solicitam a opinião sobre assuntos matrimoniais; de rapazes graves que querem opinião sobre suas composições; de agentes, editores, empresários, chatos, admiradores, críticos, e da própria consciência. Mas existe uma compensação. Sempre que tiver alguma coisa no espírito, seja uma reflexão torturante, a dor pela morte de um amigo, o amor não correspondido, o orgulho ferido, o ressentimento pela falsidade de alguém que lhe devia ser grato, enfim, qualquer emoção ou qualquer idéia obcecante, basta-lhe reduzi-la a preto-e-branco, usando-a como assunto de uma história ou enfeite de um ensaio, para esquecê-la de todo. Ele é o único homem livre."



W. Somerset Maugham
(Paris, 25 de janeiro de 1874 — Saint-Jean-Cap-Ferrat, 16 de dezembro de 1965)

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Fantasma - Francisco Slade, Romance


Fantasma conta a história de um escritor anti-social e melancólico, João, e o personagem da peça que este primeiro está escrevendo, Arto. As duas histórias se misturam e se intercalam ao longo do livro quando uma companhia de teatro resolve encenar a peça. Em um dos capítulos deste livro, além de mil outras coisas, tem a descrição de uma trepada tão (....forte, impactante, marcante, engulho, tesão...?) sem palavra que estou que só por isso já me valeu a pena ter lido. O livro em si, demora um pouco pra pegar, começa lento e é preciso fazer um esforço para continuar, mas em certa parte do meio engrena numa velocidade onde não é possível parar mais. Além de ter me deixado com verdadeira repugna, constrangimento, em alguns momentos.

"Até que ponto se pode esquecer de si mesmo... E lembrar é como alguém que volta, um desconfortável encontro na rua com alguém que não se vê há muito tempo; a intersecção de dois espectros. Encontrar-se assim repentinamente consigo mesmo, com aquele que se julgava morto."(...) "Tenho medo, medo de ficar triste como eu realmente sou na frente de alguém. Preciso parar a minha vontade de chorar - afinal, que homem pode chorar o tempo todo, cada segundo?"(...) (Fantasma, página 146)

Fantasma
Francisco Slade
Editora 7letras
192 páginas


Francisco Slade (Rio de Janeiro, 1978) é um escritor brasileiro, formado em cinema. Já publicou Domingo (2004) e Fantasma (2008), ambos pela 7Letras.