Fiquei perturbada ao reler este livro, que há muito tempo havia lido em uma versão castellana no Uruguai. Não lembro de me chamado atenção como aconteceu desta vez. Pode ser uma questão de idioma, ou uma questão interna, que seja, nem sempre estamos para ler as coisas que lemos, e por isso re-ler pode ser um risco - um risco bom.
Aqui mistura-se realidade com ficção entre contextos históricos na época de Carlos Magno. O livro já inicia com algo completamente surreal, quando numa apresentação ao imperador, há um cavaleiro que não existe, ou seja somente sua armadura existe, ao levantar seu elmo, não há corpo nenhum que a preencha. Mas ele tem voz, títulos e se chama Agilulfo. À parte desta surrealidade, é incomum também a reação das pessoas que ao fim, o aceitam bem entre a sociedade. Todo o livro tem uma feição cômica incorrigível. Desde os nomes das personagens até os fatos improváveis e ridículos aos quais eles se sustentam. Comicidade que no fim podemos ler como sátiras/criticas à uma sociedade européia daquela época, mas não só, ao ser humano em geral. O cavaleiro que não existe, em oposto a toda cavalaria, é o único a se portar com honra, lealdade, limpeza e organização perfeitas, tem todos os atributos de um cavaleiro ideal, e ironicamente é o único que não é real.
Seu nome "Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Atri de Corbentraz e Surra, cavaleiro de Selimpa Citeriore e Fez" é extenso para alguém que não existe. A seu lado tem um escudeiro louco, que não sabe nem mesmo que existe, como se só tivesse seu corpo é guiado apenas por suas necessidades primitivas, fome, sede, sono etc... Contrapõe seu mestre com um nome simples "Gurdulu", o que lembra o nome de um "bicho" ou "criatura". Está posta a dupla, o escudeiro que só tem o corpo e o cavaleiro que só possui o espírito.
Não só essas duas personagens, mas também Rambaldo, Sofrônia, Torrismundo e Bradamente e o próprio Carlos Magno, compõe o livro de forma engraçada e instingante o tempo inteiro. Uma amiga me disse que o livro lembra um pouco a literatura de Cortázar, e de fato concordo, os dois autores se lembram muito quando exploram o ridículo e o fantástico em seus livros.
"O Cavaleiro Inexistente" é de leitura fácil, rápida, simples, para mim, é um livro muito bom. Simples. Simples. Que muitos podem dizer "fraco", mas que parece um erro de leitura para mim, simplesmente por não ser pretensioso pode ser confundido como “fraco”, é simples, nunca simplório. Antes dele li o "Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios" de Marçal Aquino, que apesar de ter um título bonito, e não ser uma má literatura, é muito mais pretensioso do que de fato seu conteúdo dá conta, parece que tenta ser muitas coisas, mas de fato não é nada. Sinto falta de mais sinceridade, até a simplicidade aqui parece ser forçada. Os momentos em que o livro consegue ser mais honesto - e às vezes acontece nos momentos mais "bobos" - são os que o tornam mais potente e bonito e aí sim, faz juz ao título.
O Cavaleiro Inexistente
Ítalo Calvino
Companhia de Bolso
115 páginas
mergulhem-se
Mostrando postagens com marcador Itália. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Itália. Mostrar todas as postagens
sábado, 28 de janeiro de 2012
quarta-feira, 10 de novembro de 2010
Seda - Alessandro Baricco, Romance
Hervé Joncour é um francês comerciante de Seda, devido a uma praga dos bichos-da-seda no Oriente-Médio é obrigado a partir para o Japão para consegui-los através de contrabando - nesta época, meados de 1860, este comércio era proibido.
"[Hervé Joncour] Cruzou a fronteira vizinha a Metz, atravessou o Würtemberg e a Baviera, entrou na Áustria, alcançou de trem Viena e Budapeste, e depois prosseguiu até Kiev. Percorreu a cavalo dois mil quilômetros de estepe russa, passou pelos Urais, entrou na Sibéria, viajou por quarenta dias até alcançar o lado Bakail, que as pessoas do lugar chamavam: o último. Desceu o rio Amur, costeando a fronteira chinesa até o oceano, e, quando chegou ao oceano, deteve-se no porto de Sabirk por dez dias, até que um navio de contrabandistas holandeses o levou ao cabo Teraya, na costa oeste do Japão."
É entre esse pequeno roteiro, de ida e volta, repetido diversas vezes com pequenas variações de palavras, que o romance se embalsa e se repete; funciona quase como uma espécie de refrão que nós identificamos invariavelmente ao longo do texto e ao qual nos pautamos. É como se essa maneira de tecer a partitura da história também fizesse parte do modo com que Joncour percebe o mundo novo e entramos em suas viagens com o mesmo fascínio, estranheza, e uma espécie de inércia que penso ser responsável também pela leveza (quase existencialista?) do livro.
Tenho a impressão que, neste livro, Alessandro Baricco faz o inverso de "Oceano Mar" onde sua escrita é totalmente escorrida, quase onírica, livre, as passagens dissipam uma nas outras sem saber quando termina uma e começa outra. Aqui, o autor escreve com pulso marcado, seco, enxuto e rápido. O incrível é que mesmo assim ele não perde o lirismo, que talvez seja a sua característica mais forte. Como podemos ver nas imagens que Baricco cria através de Joncour, por exemplo, ao definir o "fim do mundo" como o "invísivel", ou ao revelar ideogramas japoneses em papéis de arroz que diz são como "cinzas de uma voz queimada" etc.
Para mim, de tudo o que li, este é um dos autores de nomes mais fortes para o mundo contemporâneo. Devido a sua capacidade de criação e resignificação simbólica e imagética. Reinventar o mundo e dar/manter um lirismo nas coisas que parece quase impossível hoje em dia – se pensarmos na forma com que tornamos tudo facilmente volátil. O deslocamento de figura, compreensão, sensação provocado dentro da gente, aqui, é incessante.
"- O que são?
- Um viveiro.
- Um viveiro?
- Sim.
- E para que serve?
Hervé Joncour mantinha os olhos fixos nos desenhos.
- Você o enche de pássaros, tantos quantos puder, e depois, um dia em que lhe acontece alguma coisa boa, você o escancara, e os vê sair voando." página 74
Seda
Alessandro Baricco
Ed. Cia das Letras
121 páginas
"[Hervé Joncour] Cruzou a fronteira vizinha a Metz, atravessou o Würtemberg e a Baviera, entrou na Áustria, alcançou de trem Viena e Budapeste, e depois prosseguiu até Kiev. Percorreu a cavalo dois mil quilômetros de estepe russa, passou pelos Urais, entrou na Sibéria, viajou por quarenta dias até alcançar o lado Bakail, que as pessoas do lugar chamavam: o último. Desceu o rio Amur, costeando a fronteira chinesa até o oceano, e, quando chegou ao oceano, deteve-se no porto de Sabirk por dez dias, até que um navio de contrabandistas holandeses o levou ao cabo Teraya, na costa oeste do Japão."
É entre esse pequeno roteiro, de ida e volta, repetido diversas vezes com pequenas variações de palavras, que o romance se embalsa e se repete; funciona quase como uma espécie de refrão que nós identificamos invariavelmente ao longo do texto e ao qual nos pautamos. É como se essa maneira de tecer a partitura da história também fizesse parte do modo com que Joncour percebe o mundo novo e entramos em suas viagens com o mesmo fascínio, estranheza, e uma espécie de inércia que penso ser responsável também pela leveza (quase existencialista?) do livro.
Tenho a impressão que, neste livro, Alessandro Baricco faz o inverso de "Oceano Mar" onde sua escrita é totalmente escorrida, quase onírica, livre, as passagens dissipam uma nas outras sem saber quando termina uma e começa outra. Aqui, o autor escreve com pulso marcado, seco, enxuto e rápido. O incrível é que mesmo assim ele não perde o lirismo, que talvez seja a sua característica mais forte. Como podemos ver nas imagens que Baricco cria através de Joncour, por exemplo, ao definir o "fim do mundo" como o "invísivel", ou ao revelar ideogramas japoneses em papéis de arroz que diz são como "cinzas de uma voz queimada" etc.
Para mim, de tudo o que li, este é um dos autores de nomes mais fortes para o mundo contemporâneo. Devido a sua capacidade de criação e resignificação simbólica e imagética. Reinventar o mundo e dar/manter um lirismo nas coisas que parece quase impossível hoje em dia – se pensarmos na forma com que tornamos tudo facilmente volátil. O deslocamento de figura, compreensão, sensação provocado dentro da gente, aqui, é incessante.
"- O que são?
- Um viveiro.
- Um viveiro?
- Sim.
- E para que serve?
Hervé Joncour mantinha os olhos fixos nos desenhos.
- Você o enche de pássaros, tantos quantos puder, e depois, um dia em que lhe acontece alguma coisa boa, você o escancara, e os vê sair voando." página 74

Alessandro Baricco
Ed. Cia das Letras
121 páginas
Marcadores:
Alessandro Baricco,
Europeus,
Itália,
Romances
terça-feira, 19 de outubro de 2010
Quando já não era mais necessário - Marina Colasanti, Conto
"Beije-me", pedia ela no amor, quantas vezes aos prantos, a boca entreaberta, sentindo a língua inchar entre dentes, de inútil desejo.
E ele, por repulsa secreta sempre profundamente negada, abstinha-se de satisfazer seu pedido, roçando apenas vagamente os lábios no pescoço e o rosto. Nem se perdia em carícias, ou se ocupava em despir-lhe o corpo, logo penetrando, mais seguro no túnel das coxas do que no possível desabrigo da pálida pele possuída.
Com os anos, ela deixou de pedir. Mas não tendo deixado de desejar, decidiu afinal abandoná-lo, e à casa, sem olhar para trás, não lhe fosse demais a visão de tanto sofrimento.
Mão na maçaneta, hesitou porém. Toda a sua vida passada parecia estar naquela sala, chamando-a para um último olhar. E, lentamente, voltou a cabeça.
Sem grito ou suspiro, a começar pelos cabelos, transformou-se numa estátua de sal. Vendo-a tão inofensivamente imóvel, tão lisa, e pura, e branca, delicada como se translúcida, ele jogou-se pela primeira vez a seus pés.
E com excitada devoção, começou a lembê-la.
(extraído de Contos de amor rasgados, Marina Colasanti, Ed. Record)
E ele, por repulsa secreta sempre profundamente negada, abstinha-se de satisfazer seu pedido, roçando apenas vagamente os lábios no pescoço e o rosto. Nem se perdia em carícias, ou se ocupava em despir-lhe o corpo, logo penetrando, mais seguro no túnel das coxas do que no possível desabrigo da pálida pele possuída.
Com os anos, ela deixou de pedir. Mas não tendo deixado de desejar, decidiu afinal abandoná-lo, e à casa, sem olhar para trás, não lhe fosse demais a visão de tanto sofrimento.
Mão na maçaneta, hesitou porém. Toda a sua vida passada parecia estar naquela sala, chamando-a para um último olhar. E, lentamente, voltou a cabeça.
Sem grito ou suspiro, a começar pelos cabelos, transformou-se numa estátua de sal. Vendo-a tão inofensivamente imóvel, tão lisa, e pura, e branca, delicada como se translúcida, ele jogou-se pela primeira vez a seus pés.
E com excitada devoção, começou a lembê-la.
(extraído de Contos de amor rasgados, Marina Colasanti, Ed. Record)
Marcadores:
Brasileiros,
Contos,
Europeus,
Itália,
Marina Colasanti
quinta-feira, 8 de julho de 2010
Oceano Mar - Alessandro Baricco, Romance
[se eu tivesse que esconder meu nome (minha alma, minha palavra, meu corpo) em um livro seria esse] [em colchetes para ninguém ouvir]
Poesia em forma de prosa (que poderia também ser um ensaio filosófico, um romance, ou uma espécie de bíblia com os axiomas mais ímpios do oceano inscritos aqui e formulados em algum lugar qualquer do universo etc etc), Alessandro Baricco descorre um tratado sobre o mar que só quem o conhece, mergulhou de fato em seu infinito ventre (e falo sobre a intensidade e não quantidade - um único banho às vezes basta) poderá sentir do que se fala, se vomita, se música, se palavra, se mar. É espelhar a si mesmo, horrível e doce. Certo e incerto como só o mar, "no mar nunca se sabe".
O Romance conta (canta?) muitas histórias, são personagens que se desdobram e se mergulham através do contato com o oceano, protagonista principal deste livro. Um navio da marinha francesa que naufraga; um pintor, Plasson, que mantém uma obsessão pelo mar e só consegue pintar coisas que estejam intimamente conectadas à ele, tanto que molha seus pincéis, em uma meta-linguagem linda, em águas do mar para pintar. Bartleboom, um cientista que quer descobrir onde termina o mar e escreve cartas de amor à mulher da sua vida que ainda não conheceu; Elisewin, menina doente que sai de seu castelo acompanhada pelo tutor, Padre Pluche, para curar-se no mar; Adams e Savigny, náufragos; crianças estranhas e mágicas; um velho que benze o mar... E tantos outros que chegam e se transformam ao redor da estalagem Almayer bem em frente
ao mar.
"A única pessoa que realmente me ensinou alguma coisa, um velho que se chamava Darrell, dizia sempre há três tipos de homens: os que vivem diante do mar, os que se lançam ao mar, e os que do mar conseguem voltar, vivos. E dizia: você verá que surpresa quando descobrir quais são os mais felizes." pág 118
"- Não complique as coisas, Padre Pluche, a questão é simples. O senhor acredita realmente que Deus existe?
- Bem, agora, existir parece-me um termo meio excessivo, mas creio que ele esteja, é isso, de um jeito muito particular, esteja." pág 94
"Mas depois a vida não se desenrola do jeito que você imagina. Faz o seu caminho. E você o seu. E não é o mesmo caminho. Assim... Não que eu quisesse ser feliz, isto não. Queria... salvar-me, é isso: salvar-me. Mas compreendi tarde de que lado era preciso seguir: do lado dos desejos. A gente espera que sejam outras as coisas que salvam as pessoas: o dever, a honestidade, sermos bons, sermos justos. Não. Os desejos é que salvam. São a única coisa verdadeira. Você fica com eles e será salva. Mas eu compreendi isto tarde demais. Se você der tempo à vida, ela toma um rumo estranho, inexorável: e você percebe que àquela altura não pode desejar algo sem se machucar. É quando tudo vai para o espaço, não há como escapar, mais você se agita e mais a rede se emaranha, mais você se revolta e mais você se fere. Não há como sair. Quando era tarde demais, eu comecei a desejar. Com toda a força que tinha. Machuquei-me tanto, mas tanto que você nem pode imaginar." pág 79, 80
Oceano Mar
Alessandro Baricco
trad. Roberta Barni
Ed. Iluminuras
222 págs
Alessandro Baricco (Turim, 25 de janeiro de 1958) é um escritor, crítico musical e diretor italiano, um dos mais importantes da ficção italiana contemporânea.
Poesia em forma de prosa (que poderia também ser um ensaio filosófico, um romance, ou uma espécie de bíblia com os axiomas mais ímpios do oceano inscritos aqui e formulados em algum lugar qualquer do universo etc etc), Alessandro Baricco descorre um tratado sobre o mar que só quem o conhece, mergulhou de fato em seu infinito ventre (e falo sobre a intensidade e não quantidade - um único banho às vezes basta) poderá sentir do que se fala, se vomita, se música, se palavra, se mar. É espelhar a si mesmo, horrível e doce. Certo e incerto como só o mar, "no mar nunca se sabe".
O Romance conta (canta?) muitas histórias, são personagens que se desdobram e se mergulham através do contato com o oceano, protagonista principal deste livro. Um navio da marinha francesa que naufraga; um pintor, Plasson, que mantém uma obsessão pelo mar e só consegue pintar coisas que estejam intimamente conectadas à ele, tanto que molha seus pincéis, em uma meta-linguagem linda, em águas do mar para pintar. Bartleboom, um cientista que quer descobrir onde termina o mar e escreve cartas de amor à mulher da sua vida que ainda não conheceu; Elisewin, menina doente que sai de seu castelo acompanhada pelo tutor, Padre Pluche, para curar-se no mar; Adams e Savigny, náufragos; crianças estranhas e mágicas; um velho que benze o mar... E tantos outros que chegam e se transformam ao redor da estalagem Almayer bem em frente
ao mar.
"A única pessoa que realmente me ensinou alguma coisa, um velho que se chamava Darrell, dizia sempre há três tipos de homens: os que vivem diante do mar, os que se lançam ao mar, e os que do mar conseguem voltar, vivos. E dizia: você verá que surpresa quando descobrir quais são os mais felizes." pág 118
"- Não complique as coisas, Padre Pluche, a questão é simples. O senhor acredita realmente que Deus existe?
- Bem, agora, existir parece-me um termo meio excessivo, mas creio que ele esteja, é isso, de um jeito muito particular, esteja." pág 94
"Mas depois a vida não se desenrola do jeito que você imagina. Faz o seu caminho. E você o seu. E não é o mesmo caminho. Assim... Não que eu quisesse ser feliz, isto não. Queria... salvar-me, é isso: salvar-me. Mas compreendi tarde de que lado era preciso seguir: do lado dos desejos. A gente espera que sejam outras as coisas que salvam as pessoas: o dever, a honestidade, sermos bons, sermos justos. Não. Os desejos é que salvam. São a única coisa verdadeira. Você fica com eles e será salva. Mas eu compreendi isto tarde demais. Se você der tempo à vida, ela toma um rumo estranho, inexorável: e você percebe que àquela altura não pode desejar algo sem se machucar. É quando tudo vai para o espaço, não há como escapar, mais você se agita e mais a rede se emaranha, mais você se revolta e mais você se fere. Não há como sair. Quando era tarde demais, eu comecei a desejar. Com toda a força que tinha. Machuquei-me tanto, mas tanto que você nem pode imaginar." pág 79, 80

Alessandro Baricco
trad. Roberta Barni
Ed. Iluminuras
222 págs
Alessandro Baricco (Turim, 25 de janeiro de 1958) é um escritor, crítico musical e diretor italiano, um dos mais importantes da ficção italiana contemporânea.

Assinar:
Postagens (Atom)