Tudo se resume ao amor. Antes eu achava que era a libido, mas vejo
que sem amor a própria libido se enfraquece. O amor é o único
objetivo do homem, ainda que ele não saiba. É verdade que até as
ações mais simples são geridas pela libido, como vestir-se ou
trabalhar, pois ambas nos inserem na sociedade e nos capacitam às
relações sociais que almejamos. Fazemos o que fazemos para sermos
aceitos e, com isso, quem sabe, encontrar um parceiro para satisfazer
a libido. Esta é a força motriz da pessoa, mas satisfeito esse
desejo, resta finalmente o que todos buscamos e, também, o que nos
une: o amor.
Só fui compreender sobre o amor ao me vir afundado nas armadilhas da
fama e da fortuna, através de um bêbado contumaz chamado Carlos e
apelidado Bicauisque, por ser velho, desbocado e amargamente sincero,
igual ao famoso escritor. Era também engraçado, embora as senhoras
de plantão e os tiozinhos religiosos o vissem com aversão por conta
dos palavrões.
- um foda-se bem colocado é mais lírico que mil poesias de
escrevinhadores sem talento. – Redargüia Bicauisque.
Travamos conhecimento e até simpatia mútua num dia em que eu
resmungava no balcão do Bar do Escritor, em Brasília, sobre a
incerteza do sucesso. Eu completara a turnê com um show no Nilson
Nelson, fugira das dezenas de groupies famintas pela minha
atenção e me perdia satisfatoriamente nas cervejas e
cachaças do boteco. Estava cansado, queria esquecer, sumir, não
agüentava mais pegar mulheres que só me desejavam por conta da fama
e do dinheiro.
- teu problema é que não sabe foder. – Interveio Bicauisque.
- como é?
- tu não sabe foder.
Lembro que olhei o nariz avantajado e vermelho do homem, repleto de
poros abertos pelo álcool, a maioria comportando enormes cravos, e
pensei no que aquele estereótipo de homem poderia saber sobre
mulheres.
- tu sabe cantar, xará, mas não sabe foder. parece uma garotinha
lésbica que reclama a falta de um pau.
- como é?
- o pau não é o equipamento principal numa foda, cara. o que faz a
trepada ser memorável é o tesão, a preparação, o desejo, a
entrega, a proximidade, a doação, a sinceridade, a calma. a piroca
só deve agir quando a amante atingir o êxtase das outras sensações.
– Ele sorriu. – ou então é melhor se masturbar, pois só na
punheta a pica é o ator principal.
- papo furado. quem entende disso?
- tua mãe.
Enfezei. Até ali estava curtindo o papo do bêbado, mas ele se
excedeu quando botou a mãe no meio.
- como é? repete.
- uma mulher entende de pau, otário. – Ele parecia alerta contra
uma possível investida minha embora ainda estivesse recostado no
balcão. – ou você acha que tua mãe te concebeu imaculadamente
como a virgem de Guadalupe.
Eu não sabia se reclamava de sua grosseria se escutava mais
atentamente suas palavras.
- em Guadalupe tem cada virgem... – O sarcasmo estampava em
seu rosto. – uma mulher de verdade sabe tratar um pau. ela entende
que o pau é a miniatura do homem, uma espécie de boneca vodu, onde
se concentra toda a atenção e reação do sujeito. um homem de
verdade, que sente como a coisa mais excitante uma boa segurada
feminina no caralho, exigindo-o em seu ventre para conter o furor,
sabe como domar o próprio desejo para conseguir amar completamente
uma mulher, ou seja, sabe foder.
- como é?
- tu é bem burrinho, né? só fica repetindo “como é”, “como
é”... – Bebeu um gole de algo meio verde antes de continuar. –
quer aprender a foder?
- como é? quero dizer, é, sim... bem, explica.
- tu tem que saber escolher a mulher, ver outros detalhes além da
tríplice constituição básica: peito, bunda e acessório, que pode
ser cabelão, coxa, panturilha, pé bonito, barriga sarada, cara de
safada, bocetão, cuzinho rosa, aí depende da tara de cada caboclo.
esses detalhes é que são preciosos. neles você percebe a perfeição
em cada mulher. – Os olhos antes opacos do bêbado refletiam a luz
da luxúria. – pode ser um pescoço longilíneo, uma batata da
perna mais grossa, uma boca carnuda, um jeito de andar, um olhar
apaixonado, uma voz aconchegante...
- ah! – Eu disse, mostrando que aquele discursinho romântico não
me convencia.
- toda mulher tem um detalhe que é só dela, que a torna especial,
algo que às vezes nem ela própria percebe, ou melhor, ela quase
nunca espera que exatamente ali, em tal ponto, é que está sua arma
final de sedução. – Deu um gole na coisa verde. – a mulher é
diferente do homem. ela não concentra na vagina seu prazer sexual,
ela própria é um órgão dedicado ao sexo. dos pés à cabeça. –
Contornou um violão imaginário com os braços. – ela se cuida e
se perfuma e se penteia e se alisa e se arruma e se ajeita e se
apronta em cada pequena parte do corpo com esmero, trata tudo com a
maior atenção, sabe que será admirada por inteiro, dos pés à
cabeça. cada delicioso detalhe de um corpo feminino, dos pezinhos
pequenos e cheirosos até a cabeleira ruiva ondulada, no meio da
cintura, cobrindo a pele branca e suave, ajeitando-se sobre os seios
em pêra, de bicos rosados, que estão emoldurando a barriga lisa, de
umbiguinho fino, que será o portal da vagina, ah, a vagina...
- ta bom, já entendi. – Quase berrei. - cada mulher tem um detalhe
e devo saber escolher.
- ... dos pés à cabeça. – Ele ainda resmungou antes de beber
mais um gole para voltar aos ensinamentos. – a mulher dá bem mais
atenção ao corpo inteiro que o homem dá ao próprio pau, então,
tem que dar atenção ao corpo inteiro da mulher, à sua cabeça, às
suas idéias, aos seus medos, não apenas a uma só parte, ou a três:
boceta, bunda e peito. Tem que saber explorar até os espaços entre
os dedos das mãos e dos pés da parceira. – Outro gole. Um sorriso
verde brotou. – você sabia que lamber entre os dedos da mão de
uma mulher lhe causa uma sensação parecida com uma lambida na
vagina? aprenda a lamber mãos, meu caro, que isso lhe abrirá muitas
portas. ou pernas.
- a música já me abre muitas pernas. – Respondi, sem modéstia,
mostrando todo o poder de um rockstar.
- mas são pernas que se abrem com qualquer música. se vc aprender a
escolher a mulher que te interessa, principalmente pelo detalhe que a
torna especial, então perceberá a satisfação da singularidade.
- por quê?
Ele me olhou como um predador que está prestes da dar o bote, tinha
o sorriso riscado de quem recolhia a caça de uma armadilha bem
ajambrada.
- porque você a amará.
Esperei que ele completasse a idéia com algum argumento lido nos
fóruns de swing da revista Ele/Ela. Como manteve o silêncio
enquanto bebia mais um verde, intervim:
- por quê?
- é burrinho mesmo, né? agora fica “por quê”, “por quê”...
bem, porque sim. você compõe as músicas que canta?
- não.
- então você as escolhe.
- é.
- demora para escolher?
- ah, cara, é meio como uma paixão momentânea, escuto algo novo de
algum compositor e digo é essa, é a própria música que me
pega. na verdade, ela me chama, se mostra para mim. mas depois tem
que trabalhar o arranjo, encaixar na minha voz, aprender a variar no
tempo de execução... – Eu estava excitado por poder falar de algo
que conhecia em meio a tanta exposição de sabedoria daquele bêbado.
Só então me lembrei: - mas o que isso tem a ver com as mulheres?
- trate sua mulher como trata sua música.
Eu não sabia se me sentia tonto pela quantidade de bebida na cabeça
ou pela falação retórica do Carlos, mas por alguns segundos não
consegui focar corretamente os olhos, me sentia dentro de um
delirante conto do Charles Bukowski. Talvez faltasse alguma mulher
maluca gritando ou alguém vomitando, porém eu percebia a mesma
amorosa consternação em ambos as reflexões, a do escritor e a do
bêbado da minha frente.
- você ama suas músicas, não é?
- sim... – Ele tinha razão. Eu não deveria reclamar por não
receber amor das mulheres que me cercavam. Se eu escolhesse a quem
amar, a recompensa estaria intrínseca. Eu amaria, que era o que
importava, que me faltava para ser feliz. – sim, você tá certo. –
Sorri e levantei o copo prum brinde, mas percebi que sua bebida havia
terminado. – Garção, dá uma dessas bebidas verdes para o meu
amigo Bicauisque aqui.
Ele sorriu e brindou comigo. Tentei relaxar o ambiente com uma piada.
A conversa ainda estava densa no ar.
- cara, esse treco verde, isso é a porra do hulk?
- não, mas a minha ta aqui, quer provar? – Ele respondeu de
bate-e-pronto, as mãos segurando o cós da calça.
- você já tinha escutado isso antes, né?
- é.
Sim, um palavrão bem colocado valia mais que mil poesias chatas.
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