sábado, 29 de março de 2008

Planos



Emergidos solares
De um azul anil
Sonhos estrelares
Voam no escuro
Na constelação
De um mundo sem fim
Seres desconhecidos
Em terras explanares
Viajam
Em uma experiência
De submundos estranhos
No fundo sem cor
A energia do contato
Em vidas paralelas
Aterrissadas no espaço sideral

Na busca de um por quê

sexta-feira, 28 de março de 2008

Descompasso para múltiplos




Essa batucada incendiada
Azucrina disritmias no meu coração
A doçura alucinógena
Rasga-me em sedas pérfidas
Jardins de obsessão nascem
Em espasmos aquáticos
E medo do mais sonhar

Multifacetado, ser de enigmas
E cânticos-jograis violentos
Durmo no seu caixão
Com a alegria de um rebento
E o implodir luminoso
Sem garantias
Só alvorecer calamitoso
Rezas surradas
Cegando a razão

Retomo o compasso
Abismada em brotares melódicos
Quantas horas mais, aprisionada?
Enfeitiçada e perigosa?
Em ninho de cóleras
Ofegantes e perfumadas

Se a hipnose me leva tão lúgubre
Chovem velhas mordidas
Nas vísceras moribundas
Retorço o véu da teima
E escrevo urgências veladas
Sem força no punho
Com ponta de espada
E caule sonâmbulo

Sabe-se da exata escuridão
Hei de habitar as harpias do Paraíso
Sei, corro risco
Rabiscando-te em parcas letras
Te roubando daninha
Banindo a voz da raposa
Para não encasular a rosa

Essa pureza escandalosa
Encravada em minhas órbitas estripadas
È a novidade que salva a ousadia
De te sonhar
Macular-te quem sabe
Nas imundices púrpuras

Minha ode não há de render altar
Ou gesto nobre
Quisera asco
Talvez fluídos em nossas tarjas-pretas
Pudera flamas sorridentes em euforias tristes
Ou arco-íris em flechas

Em quantas notas, perco-me?
Despetalados quereres
Quantos corações não me reconhecem?
Agora que me adorno
De espasmo-canção
E saio para a alegoria
Dos anjos de avesso
Pousando pacotes
Escavados e profundos

Raízes sangrando
Em densos rosnares
Jaz aqui: fatídico transtorno
Imãs em redemoinho
Sulcos de perdição
Calabouços floridos
Violação!



Pintura: “Monrning glory” de Georgia O'Keefe

quinta-feira, 27 de março de 2008

Convidado Hildebrando Pafundi

A Greve dos Coveiros

Os coveiros da pequena cidade do interior do Estado de São Paulo estavam com seus salários defasados. Há mais de dois anos não recebiam um aumento. Aproveitaram a onda de bem sucedidas greves, com bons acordos para os metalúrgicos do ABC, naquele ano do final da década de 70 para decretar uma paralisação por melhores salários.
A quantidade de profissionais especializados em cavar sepulturas era muito pequena, apenas cinco homens trabalhavam na necrópole. Por esse motivo, não existia um sindicato da categoria e sim uma sociedade, que foi registrada com o nome de Associação Unida dos Coveiros (AUC), e se reunia uma vez a cada dois meses em caráter ordinário, de acordo com o estatuto da entidade. A assembléia geral dos associados era realizada só uma vez por ano, ou em qualquer ocasião, em caráter extraordinário.
Na época da fundação havia duas opções para o nome da entidade. A outra era Associação dos Coveiros Unidos, que foi descartada porque a sigla ACU certamente provocaria muita gozação e piadinhas sem graça entre os freqüentadores dos botequins e entre os aposentados, usuários da praça no centro da cidade.
Como eram cinco os fundadores e os associados da entidade, eles acabaram sendo também os membros da diretoria, constituída por presidente, vice-presidente, secretário e tesoureiro. O único que ficou sem cargo assumiu o conselho fiscal.
Todos compareceram à assembléia geral extraordinária, realizada no salão dos fundos do Bar Nostalgia, que aprovou a realização da greve a partir do dia dois de abril de 1979. Chegaram a convidar o Lula, que não pode comparecer devido a outros compromissos, mas enviou um telegrama, lido pelo secretário, no qual desejava “sucesso e vitória para essa sofrida classe de trabalhadores”.
Não quiseram marcar a greve para dia 1o. de abril, porque ninguém acreditaria. A paralisação acabaria servindo de gozação e piadinhas de mau gosto, que são freqüentes nessa data, quando se comemora o Dia da Mentira.
Mas, para azar da unida classe, no dia primeiro dia de abril foram realizados os três últimos sepultamentos. Não morreu mais ninguém até o final do mês. Mesmo que a greve não fosse decretada, eles ficariam praticamente parados o mês inteiro.
Depois de reuniões paralelas das quais participaram alguns vereadores de oposição, os profissionais especializados na abertura de túmulos, que trabalhavam no único cemitério do município, optaram por aprovar o fim da greve, em nova assembléia geral extraordinária realizada no mesmo local, já no final de abril.
E no dia seguinte, véspera de 1o. de Maio, o Dia Mundial do Trabalho, morreram cinco pessoas idosas naquela pequena cidade de apenas 15 mil habitantes.

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*Hildebrando Pafundi nasceu, em São Paulo (Capital), é escritor e jornalista. Membro da Academia de Letras da Grande São Paulo e autor dos livros Tramas & dramas da vida urbana, No ritmo sensual da dança (contos) e Cotidiano e imaginário do ano 2000 (diário), entre outros.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Quando escrever errado pode não ser tão ruim

Eu era criativo. Falava, discorria, dissertava. Era tudo caprichado. As linhas preenchiam ao mesmo tempo a folha e a mim. As palavras me davam a energia e o ânimo que eu precisava até mesmo para continuar escrevendo e preencher cada vez mais e mais minha vida. O coração pulsava num ritmo tão acelerado quanto o rabiscar da folha em branco ou o bater dos dedos nas teclas. Às vezes acordava desesperado em plena duas e quinze da madrugada para anotar uma idéia qualquer. Quando esquecia o que ia anotar, tratava logo de pensar em algo, pois nada justificava um salto da cama, a não ser escrever. Eu odiava ter que dormir sem registrar meu dia numa folha. Tive poucos diários, mas muito bem usados.

Meus textos eram extensos, pelo menos eu os considerava assim. Tinham densidade, lirismo - como disse - pelo menos eu os considerava assim.

Eu executava um ritual tão metódico: sentar (ou deitar), música clássica, lápis 6B, caderno comum e mil e uma idéias. Ás vezes terminava um texto ou um poema e no final não sabia explicar o que quis dizer. Simplesmente estava escrito e pronto. Certa vez li um texto sobre o escritor Paul Valéry, o qual afirmava que muitas vezes o escritor não explicava o quis dizer em determinado poema ou texto. Valéry apenas respondia que não quis dizer, mas sim fazer. A intenção de fazer é que dizia o que ele queria expressar.

É quase assim comigo, não em todas às vezes, só vez ou outra. Comecei a escrever essa crônica acreditando que a internet havia quebrado a minha rotina e prejudicado a qualidade dos meus textos. Fico com um pé atrás sempre que me vejo digitando “vc” ou coisas desse tipo. Com três anos de orkut já esqueci como escrever muitas palavras não tão usuais. Não quero imaginar como será daqui a dez ou vinte anos, quando começarem a surgir os primeiros livros escritos em linguagem de internet. Será o fim da gramática, da boa escrita ou será o início da preguiça mental? E quando da escrita passar para a fala? Questão de tempo ou questão de escolha? Eu não sei responder. Você sabe?



P.S.: A internet propaga muito rápido qualquer tipo de tendência. Hoje é possível encontrar quem faz humor utilizando os erros de português, criando uma nova língua, chamada Tiopês. Os adeptos criam comunidades e conversam na nova língua.
Exemplo de diálogo em Tiopês retirado da comunidade inpreza tiopes ®:
“tiop açin, __---a inpreza tiopes eh uma inpreza qriasda paar imriqecer o vokabulareio tiopes con proldtos inovadoris qeu faraun di seu kliemtis peçoaz mais kuutas vokbolariam...

Mais comunidades:
Tiopês - A Revolução
faalr tiopes como fas???

Pra quem gostou ou achou divertido e quer aprender, existe um tradutor de Tiopês. Experimente http://www.tiopestranslator.cjb.net/

Este post faz parte da Blogagem Inédita

segunda-feira, 24 de março de 2008

No Brasil tudo é festa!

Não resta menor dúvida que o futebol brasileiro é o melhor do mundo. Todos param diante das telas. Cada torcedor com sua fantasia, uniforme, adereços - a caráter! Para os gols a favor: um sorriso, um grito, um pulo, uma gargalhada. Se contra... “ninguém cala o chororo”. No Brasil tudo é festa! Tudo é motivo para comemorar. Haja feriado!

Se eu for fazer uma lista de feriados, passaria dias escrevendo, tenho mais o que fazer. Para um país que têm estampado na sua bandeira "ORDEM E PROGRESSO", você não acha que tem feriado demais? Nem quero entrar em detalhe sobre os ditos prolongados, facultativos, e tampouco os dias enforcados.

Com tantos feriados consecutivos, a Ordem e o Progresso vai ser uma utopia. No ano passado, para a economia do Rio de Janeiro, por exemplo, os feriados da Semana Santa, Tiradentes e do Dia do Trabalho, trouxe um prejuízo em arrecadação de impostos de R$ 180 milhões e um endividamento de R$ 300 milhões para o comércio. “O lojista tem que tomar recursos do sistema financeiro, que cobra, em média, juros de 3% a. m. para cobrir despesas operacionais”. Afirma o presidente do Conselho Empresarial de Varejo da Associação Comercial do Rio de Janeiro em entrevista a JBFM.

Em 2008, ano bissexto, muitos feriados coincidiram com os finais de semana. Alívio para o comércio, que tem mais oportunidade para faturar, e, também para os trabalhadores que dependem do ciclo de venda para garantir o sustento. Eu não quero defender os “capetalistas”- os que visam apenas o lucro, nem pedir uma reforma no calendário. Pois se não há faturamento desejável por parte das empresas, o desemprego aumenta, não há plano de carreira ou aumento de salário.

A disparidade de renda sempre vai existir enquanto nossos governantes, que já não gostam de trabalhar em dias úteis - quem dirá em feriados - não estabelecerem políticas efetivas para uma programação de feriados que contribuam com o progresso brasileiro.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Insano

O Deus da Guerra está enfermo,
Massacrado pelo medo.
Geme à ferida da fúria
Escarlate e insegura.
Cospe lágrimas, incandescentes
Sobre escárnios e escombros.
Movimenta-se lento
Na atmosfera rarefeita
Mutilada e imperfeita.
Arrasta-se, arrasta-se...
Ante um tempo sem dobras,
Um tempo linear
De alvéolos sonolentos
Sôfregos pela fumaça.
Arrasta-se, arrasta-se...
Mas insiste em respirar.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Convidada: Yasmin dos Anjos (Portugal)

A TELA...

Espreito na Janela do meu olhar,
Debruçada em meus pensamentos...
Mergulho na lembrança, no sonho perdido,
Desperto a esperança, preencho um vazio...

Inspirada nas coisas mais simples da Vida,
Como a luz do Sol ou o brilho do Luar,
Abro as asas e deixo-me voar...

Atravesso os Sete Caminhos,
Os Sete planos do Arco-Íris,
Em busca de um Universo Encantado,
Terra de Sonho, Mar de Utopia...

Segurando um pincel do tamanho dos Céus
E uma palete com cores da Terra,
Pinto o meu Mundo...
Pinto a imponente Tela da Vida!

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Yasmin dos Anjos - Poetisa, Escritora e Artista Plástica - Risco e pinto o meu mundo na forma em que o mesmo se espelha em mim e, num dilúvio de cores e letras traço sonhos e devaneios, nas telas e no papel... Faço brotar os meus sentidos em forma de cor, luz e amor.... Vertendo um sonho na realidade, broto à luz a essência da minha Utopia...
Blog Nas asas do amor.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Amar Só Você.

Hoje não fiz o teu poema,
Gramaticalmente reneguei lingüística.
Hoje despedi as palavras
Abri as pernas e só penetrei-me
Com tuas carícias oxítonas.

Hoje deitei as palavras
E suguei teus líquidos secretos
A olhar o relógio com medo do fim.

Hoje fiquei só
No lençol provei monossílaba
E gozei monossilabicamente
Teu gozo singular em minhas linhas.

Hoje não me abri à chegada da Poesia
Fui ‘a’ própria com pensamentos
No teu corpo semi-ausente na junção das letras.

Hoje... Masturbei a saudade
E molhada não fiz o teu poema.
Preferi tatuar tua existência
No verso carne/espírito a evocar,
Tudo o que eu não precisei dizer
Para provar que ainda hoje sou tua.


Eliane Alcântara.




Ps: Felizes ovinhos, Felizes coelhinhos (as), Felizes copinhos...
Felizes e felizes os brindes, porém que a Esperança renasça
no coração de todos nesta Páscoa! Beijos!

segunda-feira, 17 de março de 2008

Odisséia de Objetos Sem Vida



Era uma manhã indecisa
No porto do Recife,
e sentado eu via
as águas carregarem embora
toda a escória
da cidade.

Tudo o que foi útil num dia
e no outro deixou de ser.

Vi uma garrafa pet verde
andar sobre as águas,
como um jesus
feito de plástico.

Mas era só uma garrafa pet verde,
fazendo milagre num mar esverdeado

com um andar solene,
como que indo pr'algum lugar
onde seu corpo
pudesse ser sepultado.

Em seguida
veio uma sacola antiga
do bompreço,
cuja lápide dizia:
"Orgulho de ser Nordestino".

Foi gestante na noite passada
d'alguma cana barata
ou d'um vinho suco-de-uva-tinto
de dois reais.

Deu a luz em plena madrugada
do Recife Antigo.

O sol já ia aumentando,
e vi um único sapato
que apressado
ia boiando,

de repente
me peguei pensando
num Saci Pererê descalço.
andando pelas ruas quentes do Recife.

Pois foi então que me joguei
para ser mais um desses objetos inúteis
que a correnteza toma pra si
a responsabilidade de arrumar um fim.

Mas um canoeiro,
cuja profissão é salvar os bêbados
que desejam morrer assim,

deu-me a mão
e me tirou dali.

André Espínola

sábado, 15 de março de 2008

VIDICOM

Das terras longíquas do Norte, o velho bruxo trouxe o espelho mágico.

-Finalmente. - exultou a rainha má. O espelho é meu!

O bruxo tomou suas moedas e afastou-se, deixando o estranho dispositivo acoplado ao nicho do aposento da rainha.

Um gênio habitava o espelho. E a megera passou a comunicar-se com o Espírito:

-Espelho meu, há alguém mais bela do que eu?...

O tempo passou.

Nas ruínas do velho castelo de Husberth, em terras dos saxões, o diligente historiador encontrou um estranho objeto: uma chapa de cristal quadrada, três palmos de lado, agarrada a um tubo catódico, uma válvula, um condensador com seus dois pólos e, estarrecido, detectou uma objetiva rudimentar firmemente acoplada à frente, direcionada à tela, como a capturar a própria imagem do equipamento.

Os bruxos do Norte conheciam os receptores de ondas eletromagnéticas.

Recriaram em laboratório eletrônico o rudimentar Vidicom. Era a chave dos segredos da TCI, e precedia as redescobertas de Marconi, Landell de Moura ou mesmo Baird.

Desde as mesas girantes, da tiptologia, da psicografia, o intercâmbio com o plano espiritual evoluía, e a mediunidade, a transmissão dos fluidos pela hipófise, o Spiricon, tudo tornava-se obsoleto - os portais interdimensionais estavam cada vez mais exequíveis.

Alimentaram com eletricidade o Vidicom retirado das ruínas. Um gênio surgiu na tela, comunicando-se num típico dialeto saxão. Reclamava sua rainha, operando numa faixa de onda do Umbral Grosso. Questionou sobre uma tal maçã mergulhada numa droga de indução ao coma cataléptico.

As obsessões eram um escolho, não somente entre médiuns. O gênio jamais se desprendeu daquele harmônico, frustrando toda tentativa de sondar a paisagem do Além, no plano Espiritual ou Monádico, através do espelho mágico outrora oráculo da vaidosa rainha.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Tempos modernos

A atualidade de O Grande Ditador (1940), de Charles Chaplin

Da Mesopotâmia ao novo milênio, podemos dizer que a humanidade mudou muito – mas uma análise da obra de Charles Chaplin pode nos levar a afirmar justamente o contrário. Charles Spencer Chaplin, imortalizado na figura do “Tramp” (ou Vagabundo), produziu mais de setenta títulos e buscou revelar, por meio da sétima arte, a essência da natureza humana, levando-nos à comédia através da tragédia – ou à tragédia através da comédia. Talvez por causa de seu cinema mudo, Chaplin nos impõe, a cada filme, o silêncio da reflexão e ainda assim nos diverte com as mais inusitadas cenas. Quando decidiu, com O Grande Ditador (1940), realizar seu primeiro filme totalmente falado (e ele resistiu durante longo tempo a essa idéia), Chaplin sabia o que estava fazendo e – quebrando a reflexão e o silêncio – cravou na nossa história um discurso imortal pela paz.

De tempos em tempos, discursos como estes aparecem na história da humanidade e nas suas mais variadas manifestações: na filosofia, podemos citar Platão; na religião, Cristo; na questão das línguas, Zamenhof; na política, Gandhi; na ciência, Einstein; e no cinema, Chaplin. Isso nos leva a crer que, na sua essência, a humanidade pouco mudou, e a atualidade que ainda se confere ao filme de Chaplin confirma esta idéia.

O Grande Ditador traz Chaplin em papel duplo, encarnando o ditador da Tomania, Adenoid Hynkel (um referência à Alemanha e a Hitler), e um barbeiro judeu, que lutou pelo seu país na Primeira Guerra Mundial. Ao seu lado, desfila um elenco de grandes atores, como Paulette Goddard, vivendo a judia Hannah, Maurice Moscovitch, no papel do velho Sr. Jaeckel, e Reginald Gardiner, como o Comandante Schultz, de quem o barbeiro judeu salvara a vida.

O que Chaplin faz em O Grande Ditador é uma impressionante paródia daquela época, atribuindo nomes familiares a pessoas e lugares e ridicularizando sistemas contra os quais muitas vezes o mundo se sentiu impotente. Os nomes Tomania e Adenoid Hynkel dispensam associação. Mas temos ainda Henry Daniell interpretando Garbitsch, cujo nome significa “lixo” e remete ao alemão Goebbels, uma das pessoas mais próximos a Hitler; e Jack Oakie no papel de Benzino Napaloni, ditador de Bactéria (uma alusão a Mussolini e à Itália e uma brincadeira com o nome de Napoleão). Ainda na paródia, mas na forma de uma bela homenagem, Chaplin desenha um país ameaçado de invasão, Osterlich, que pode funcionar como uma lembrança à Polônia, então sendo invadida pelas tropas de Hitler. Interessante é o uso do Esperanto, pouco notado pelos espectadores. O Esperanto é uma língua associada à cultura de paz e união, criada por um judeu na Polônia, quando esta era território do Império Russo - e, por tudo isso, avidamente perseguido e negado pelo nazismo.

Apesar das referências explícitas aos acontecimentos das décadas de 30 e 40, O Grande Ditador continua atual e é um convite à reflexão acerca dos primeiros acontecimentos do século XXI. Além disso, assistir a esse filme é se permitir conhecer algumas das mais clássicas cenas do cinema, como a sonhadora dança do ditador com o globo terrestre ou a fuga de cabeça para baixo no avião de Schultz.

Nunca será lugar-comum dizer que a obra de Charles Chaplin é uma genialidade. O Garoto (1921), Luzes da Cidade (1931) e Tempos Modernos (1936) são alguns dos grandes títulos inclusos na filmografia básica deste cavalheiro inglês, e O Grande Ditador se junta a ela pelo seu conteúdo e pelo fato de ser o primeiro filme totalmente falado de Chaplin, embora, mesmo aplicando a fala à sua arte, o artista tenha valorizado cenas completamente mudas, onde os únicos envolvidos são os gestos dos artistas e os olhos da platéia que os aprecia.

Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.

– Charles Chaplin, “O Grande Ditador”.

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O Grande Ditador (EUA, 1940)
Elenco: Charles Chaplin, Reginald Gardiner, Henry Daniell, Jack Oakie, Paulette Goddard e Maurice Moscovitch.
Direção/Roteiro: Charles Chaplin.
Cor: P&B.
Censura: Livre.


Crítica: CINCO estrelas

quinta-feira, 13 de março de 2008

O Fantasma



Absinto! Absinto!
William Shakespeare, Hamlet


A perfídia se instala
Na traição conspirada
Envenena a voz que cala
Em lascívia conspurcada

O festim faz seu tributo
Afrontando vil ao mármore
Qual mão que obtém o fruto
E depois abate a árvore

D'além, inaudíveis gritos
Estertor d'alma penada
Clamando, varam granitos
A paz na honra lavada

Cobre-se paixão incúria
Sob o manto da falseta
O viço da rosa espúria
Tem espinhos de vendeta

Maldição recai em fúria
Saciando o ectoplasma
Pois nem força de centúria
Bate a sombra d'um fantasma

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quarta-feira, 12 de março de 2008

Sobre Solidão e Pedras


do alto,
o solário me chama
e reclama:

vai, desça e suma!

não vê seu tempo
esgotando
gota a gota
sua lucidez?

e ainda pretende
desentender
com a poesia
que já não faz?

você jamais
saberá o valor
dessa solidão
que o consome

entediado,
consolo-me no salto
que as pedras
me convidavam

segunda-feira, 10 de março de 2008

Convidada: Giulia Moon

Para Onde Vão os Fernandos

Ele passara por poucas e boas, mantendo a todo custo a postura de um gentleman no espírito e proletário da propaganda no dia-a-dia. Apesar dos cabelos brancos e do corpo desgastado por anos de noites maldormidas e finais de semana perdidos, ainda dava duro pra garantir o uísque nacional das sextas na varanda do velho e confortável apê em Higienópolis. Tinha olhos para observar as coisas que importavam e cérebro para gerar idéias que não vingavam, projetos que ficavam na gaveta, conversas geniais que poucos tinham ouvidos para ouvir. Rotina na sua vida de publicitário veterano num mercado sado-maso de crianças tolas, que ditavam regras loucas e encontravam prazer no sofrimento alheio.
Caminhava como quem não quer nada na Avenida Angélica, lusco-fusco de automóveis, faróis e luzes esmaecidos competindo com o sol recém-posto atrás dos prédios, naquela hora em que o mundo paira no vácuo entre o dia e a noite. Pensava nos jobs a terminar, na viagem rápida de sexta-feira, na revista Asas na gaveta do escritório, no almoço com o genro-prodígio amanhã. Foi assim que a moto o colheu, seu corpo dando piruetas de acrobata de circo mambembe. E, enquanto o corpo beijava o chão, obedecendo à lei da gravidade, algo nele continuou a subir e a subir, até se descobrir lá em cima, olhando para si mesmo, uma maçaroca ensangüentada no meio-fio. Putaquepariu! Frio no estômago, mas que estômago, uma parte daquilo que estava ali, espalhado no asfalto? Ih, fodeu...
Ou não. Começou com um formigamento na ponta dos dedos. Que dedos, seus dedos tinham ficado lá em baixo, merda! Mas era formigamento sim, um monte de pequenas pontadinhas e coceirinhas pelo corpo, todas as células, moléculas, átomos se agitando, se mexendo. E sabia-se lá se ainda tinha átomos, pois de que era feito agora, já que a sua parte física tinha se ido? Olhou para cima, esperando ver algo que o convertesse finalmente a alguma crença. Nada. Cadê o facho de luz que sempre dizem surgir nessa hora? As luzes, por favor! Pelo menos as luzes. Nada, nada, nada.
Mas não estava decepcionado. As coisas estavam acontecendo. O seu eu dissolvia-se, dividindo-se em pedaços menores e menores, cada vez mais numerosos, até fundir-se com algo poderoso e único. E tão grande... A única coisa que sabia era que aquela sensação se espalhava, se amplificava. E era boa. Se a morte fosse aquilo, era... Suspirou, emocionado. Era muito boa. Muito confortável. Nunca tinha imaginado algo assim. Era a sensação incomparável de uma volta ao lar, a compreensão de que a vida num corpo físico nada mais é do que um estado passageiro. Sim, que peso fora aquele corpo durante tantos anos! O corpo que doía, que coçava, que cansava, que envelhecia, que morria... Agora, sim, sentia-se à vontade, pois estava nu por inteiro. Encontrava-se em todos os lugares, em todas as épocas, em todas as coisas... Sentia as emoções, os gostos, os cheiros, os prazeres e as dores de um Universo. Tornara-se uma ampliação gigantesca do pequeno ser que fora. E que já não existia mais. Ele, Fernando, também ia sumindo como o resto de seus pensamentos. Afinal os átomos não são conscientes da própria existência. Nem precisam ser. Estava realizado. Voltara a um estado de absoluta perfeição.
Olhou para a amiga que o ouvia.
– Então acordei.
– Hum, Fernando, isso não parece coisa sua.
– É só um sonho, no sonho pode tudo...
– Posso usar isso num conto?
– Pode, sim. Mas tenho histórias mais interessantes. Já ouviu aquela sobre...

Fim.

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Giulia Moon

domingo, 9 de março de 2008

O Melhor Amigo do Homem


Chegou em casa puxando o cachorro pela ponta de um barbante improvisado como coleira. Janete tão logo pôs os olhos no bicho, resmungou:
— Apartamento não é lugar prá cachorro! Já tenho trabalho por demais, homem! Vou lá ser aia de um cão?
Adalberto clamou pela compaixão da esposa. Encontrara o animal perdido e, em um ato de piedade, o levara para casa. Que mal havia nisto? Seria uma companhia para os dois, um casal sem filhos, beirando a meia-idade. Como a esposa mantinha-se resoluta, apelou para os santos
— Por São Francisco, mulher!
Neste ínterim o cachorro, que se mostrara impassível durante a discussão, escapou da coleira de barbante improvisada e correu em direção a Janete de jeito festivo, abanando o rabinho cotó. Amolecida pelos carinhos do animal, a esposa foi aos poucos cedendo. Que ficasse o pulguento. Adalberto poderia dispensar a ajuda do santo protetor dos animais. O cão vencera.
Sentados no sofá, acariciando o pelo do cachorro que se deitara entre os dois, Adalberto e a mulher começaram a debater como chamariam o animal. Depois de abortarem algumas idéias, Janete cismou pelo nome de Ralf. Adalberto preferia Rex, todo cachorro se chamava Rex, não convinha inventar mas, diante da insistência da esposa e temeroso de que a contenda em torno do nome a fizesse mudar de idéia em relação a permanência do bicho, Adalberto capitulou. Daria um tiro na cara de Janete caso descobrisse que o nome escolhido remetia a recordações luxuriosas entre a esposa e seu primeiro amante, um Padre alemão (ou austríaco, Janete nunca soube ao certo) com quem ela descobrira as ciências do amor dentro casa paroquial. O casal se amava após sermões do Padre, hipocritamente pregados no púlpito, carregados de ameaças àqueles que, mesmo em pensamento, pecassem sensualmente. Colegial inocente na época, Janete caiu de paixão pelo religioso. Sofreu o diabo quando Padre Ralf foi enviado para a África. Por anos a fio, Janete imaginou que ele havia sido devorado por supostos canibais. À noite, o seu sono era assaltado por pesadelos. Acordava suarenta, mente agitada pelas visões de partes do corpo do Padre Ralf, tão conhecidas, tão intimamente percorridas por ela, dilaceradas por bocas antropófagas. Sim, o padre merecia a singela homenagem.
E o cãozinho conquistou o casal. Era gratificante para ambos ter alguém, ainda que irracional, como objeto de um amor quase filial. Banhos, tosas, roupinhas de cachorro, passeios pelo condomínio onde moravam. O único motivo de discussão entre eles passou ser o prosaico privilégio que um acusava o outro pelo zelo extremado a Ralf. O cão agradecia a atenção recebida com chamegos.
Durante um dos incontáveis passeios com Ralf pelo condomínio, Janete conheceu Rogério, um viúvo, aposentado, tipo atlético apesar dos sessenta, também morador do conjunto residencial. Ele afagou Ralf que, de rabo abanando, simpatizou com o viúvo. Cumprimentaram-se mecanicamente. “Belo animal”, disse ele. “Obrigada”, retribuiu. E cada um tomou sua direção. Depois deste episódio, sempre que Janete passeava com Ralf, Rogério cruzava seu caminho como por encanto. Os monossílabos trocados no primeiro encontro metamorfosearam-se em diálogos gentis e da simpatia nasceu a atração. Em pouco tempo Janete e Rogério tornaram-se amantes. Sob a cumplicidade do cachorro, os dois se encontravam fora dos limites do condomínio. Janete embarcava no carro do aposentado e Ralf ia no banco detrás. Nunca se soube que motéis aceitassem cachorros, tal fato seria uma aberração, um verdadeiro culto à bestialidade. Permaneceu assim o mistério do local para onde aqueles três personagens se dirigiam.
Adalberto começou a estranhar a maneira como a esposa passou a tratá-lo. Tornara-se distante, fria, dispersiva. E aquele sorriso permanente? Qual o motivo da alegria? A felicidade de Janete o incomodava. Fofoqueiras da comunidade fizeram chegar aos seus ouvidos insinuações maldosas em relação à fidelidade da uma certa esposa cujo cachorro passeava demais. Mesmo sem provas, tornou-se ríspido com a mulher. Só a possibilidade de traição o desnorteava. Ela, mais preocupada com sua nova paixão, sorria o seu sorriso de adúltera por todo o condomínio enquanto desfilava por entre os blocos de apartamentos escoltada por Ralf .
Um dia, ao chegar do trabalho já corroído pela desconfiança, Adalberto decretou.
— De agora em diante quem leva o Ralf para passear sou eu!
— Vai me prender em casa?
— Só estou dizendo que vou levar o cachorro pra passear. Não posso?
— Claro que pode, se esta é a sua verdadeira intenção....
O pobre Adalberto segurou de forma abrutalhada o rosto da mulher.
— Se for verdade que você me trai sua ordinária, eu não respondo por mim...
— Pergunte ao Ralf! – zombou a mulher, livrando seu rosto daquela mão suada.
Disposto a não cometer um desatino, Adalberto tomou a coleira e chamou Ralf para passear. O cachorro prontamente o atendeu. E saíram os dois, com estados de espírito opostos. O dono, exalando ódio e dúvida, o cão, felicidade estampada no abanar da cauda. Deram uma volta pelo condomínio e Ralf o arrastou para o estacionamento. Em meio aos inúmeros carros, Adalberto descobriu o de Rogério. O veículo estava com as portas escancaradas. Dentro, o aposentado, espanador, nas mãos, tratava da limpeza do estofamento. O viúvo desviou o olhar para não encarar Adalberto. Era o amante, todavia mantinha seus pudores. Não era daqueles de desafiar maridos traídos e exibir suas conquistas. Rogério poderia se dizer, tentava ser discreto como um mordomo, daqueles que, diante de seus patrões parece desaparecer, aglutinando-se a mobília de uma casa.
Acontece que Ralf, ao reconhecer Rogério, rompeu com força a coleira da guia e, saltitante, correu em direção ao carro do aposentado, entrando e se aconchegando no banco traseiro.
Aquele gesto do cão fez com que Adalberto fosse como que atingido por uma bala. Explodia diante de si a prova da infidelidade de Janete. Até o cachorro, que ele tanto prezava, o enganara. “Corno da esposa, corno do seu próprio cão”, ruminou. Rogério empalideceu. Tentou se explicar, mas viu que as palavras morriam em sua boca. Inesperadamente, Adalberto girou calcanhares e, bufando, dirigiu-se para o bloco onde morava. Abriu a porta de com violência. Janete estava na cozinha preparando o jantar. Diante de um marido rubro pelo ódio e coleira na mão, ela escancarou os dentes numa risada indecorosa. Adalberto saltou para cima de Janete e, sem ligar para os seus protestos e resistências, amarrou a parte que restara da guia e da coleira no pescoço da esposa e a arrastou para a pracinha central do condomínio. Juntou gente para ver a humilhação. Meia dúzia protestava, outros apoiavam o modo como o marido punia a mulher adúltera. Crianças riam e pulavam divertidas, sem ter a real compreensão do dantesco espetáculo.
— Cachorra! Vagabunda! Vem dar uma voltinha, cadela no cio! – vociferava Adalberto, exibindo a traidora pela coleira que na, tentativa de resistir, teve o corpo arranhado pelo contato com o a aspereza do calçamento.
Em meio ao tumulto, Rogério fugira no automóvel levando Ralf com ele. Deste modo, o viúvo não presenciou o the end mexicano. Achincalhada perante os vizinhos, humilhada diante de uma comunidade, Janete vingou-se com a originalidade que só algumas mulheres são capazes de fazer. Aproveitou-se de uma mínima distração de Adalberto e conseguiu enrolar a guia da coleira em torno do pescoço do marido. Apertou com todas as suas forças, asfixiando-o. Os vizinhos ainda tentaram socorrê-lo, mas a fúria de Janete impediu que eles conseguissem afrouxar o laço. Morreu ali mesmo, na praça, olhos saltando das órbitas, boca espumando, ante o horror dos moradores. Janete está presa. Agora é famosa. Um programa sensacionalista de televisão a batizara como “O Monstro de Olaria”. Rogério reapareceu meses depois e, portando a costumeira discrição de mordomo, providenciou sua mudança. De Ralf, não há notícias.

sábado, 8 de março de 2008

Fofoca? (dia internacional da mulher)


Eu era a única mulher no grupo em volta da mesa do bar, naquela noite. O que se faz em torno de uma mesa de bar? Fofoca-se. Fofocávamos, pois. Falava-se do caso extra-conjugal de um amigo comum. A moça é solteira, linda, fina, inteligente. Ele quer que ela se case – com outro, pois não pretende se divorciar. Ela provavelmente se casará, porque quer ter filhos. Elogios gerais à menina.

– Ela é um cristal –, explico ao único que não a conhece e que nos ouve boquiaberto.

Terminada a conversa, quem a arremata é ele. Diz que nunca imaginou que o outro, tão sério, tão calado, fosse capaz de conquistar uma pérola como essa que descrevêramos.
– Meu respeito por ele foi aqui, ó:
E ali sentado ergue o braço na vertical, dobrando os dedos no alto pra indicar o nível que o outro atingiu no seu respeitômetro.

Era o tal do Dia Internacional da Mulher.
Então fica combinado: poderemos dizer que há igualdade entre os sexos no dia em que uma mulher for mais respeitada se tiver um caso extraconjugal, desde que o cara seja maravilhoso.

sexta-feira, 7 de março de 2008

SEI-OS



Sei-os.
Sei de quem deles se alimentaría,
Seí também o que eu mesmo fazia
E nem tinha fome
Para aliviar meus pecados.
Deles me lembro:
Lado-a-lado,
Cheios.
Eu adorava lambê-los
Para sentir aquele teu frêmito...
Cada um – por sí só – aflito
Pela súbita mudança de ares,
Minha pulsação pulsando aos milhares
E cada segundo
Sabendo-os
Mais longe
De
Mim.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Panapaná


Curioso? Também fiquei. Eu tinha um dicionário à mão. Talvez você não tenha. Se tiver, não precisa buscar, até o final do texto desvendaremos esta charada.
Panapaná não tem prefixo nem sufixo. E nem crucifixo para quem não souber o significado.
Existe um jogo com centenas de palavras, cada uma associada a cinco possibilidades, apenas uma verdadeira. Os jogadores devem tentar descobrir o significado se não souberem a resposta certa. Este não é um jogo, apenas um breve exercício mental.
Panapaná não tem origem grega nem latina. Não provém do francês, nem do inglês. É produto nacional, do bom. Ascendência tupi. Desta língua aprendemos e guardamos pouco. Ita é pedra. Pira é peixe. Boi é cobra e açu é grande. Só conhece quem se aventura por palavras cruzadas.
Com estas dicas já podemos deduzir que panapaná não é nome de palavra para invento do homem nem de coisa relacionada a modernidades. É coisa da natureza ou de sentimento.
Panapaná apesar de coletivo não se encontra nas cidades. Não é coletivo de transportar pessoas, é coletivo de transportar sonhos.Panapaná não é uma borboleta, é um conjunto delas refletindo a alegria do sol em devaneios coloridos.

terça-feira, 4 de março de 2008

Os outros que não vêem

Sou outro, outra vez
Refletido em um rosto que não reconheço
Não sei onde me encontro
Não sei qual é o preço
Da sanidade que não controlo
Da ingenuidade que me consola
Da concordância com o mundo
Ou da revolta que ainda guardo
Há na mente tantos quartos !
Tantas lembranças, tantos fardos
Mas vou à luta novamente
Erguendo-me da lona
Onde atirado estava
No fundo da minha vala
Que cavei para me defender
Dos assaltos ao coração
Da covardia e da traição
Da minha própria condenação !
Sem defesa e sem juiz
Me acuso continuamente
Por teimar em ser feliz
Por sorrir serenamente
Enquanto o caos me consumia
Levando os socos ainda sorria
Fingindo ser tão poderoso
Inatingível e inalcansável

Era outro eu que se valia
Da bravura e covardia
Que dissimuladamente exibia
Estóico !
Era o brado que retumbava
Por qualquer lugar que eu passava
Heróico !
Feitos meus que não contei
Que nem mesmo acreditei
Terem sido obras minhas...

Mas isso é passado de um outro
Que guardo longe dos olhares
E me acompanha aos lugares
Sem ser visto por ninguém...

Mesmo comigo ele insiste
Quer provar que ainda existe
Quer provar que é alguém

segunda-feira, 3 de março de 2008

Gemas

Que as gemas
dos meus ovos
São que te engordam
o zóio.



Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves

domingo, 2 de março de 2008


I

Repare, meu caro Kerouac, saiba que aqui a vida anda desoladora e como você sobrevivi aos consórcios por anos, e eles assim me proporcionaram vinhos baratos e leitura cara! Os cigarros vingavam-se de meus pulmões e o ar nunca me faltou, embora a comida de bandejão tenha me feito regurgitar pensamentos sartreanos! Cá ainda ouço nossa canção, aquela de Bob Dylan que inspirou tantas involuções! Tenho saudade apenas do tempo que nos sobrava e de seus olhos de paisagem quando eu falava de sentimentos pouco nobres! Aquilo sim era um Royal Straight, baby! E depois de esgotar as vontades vãs tento não me apegar às futilidades de uma vida vazia, mesmo sabendo que as pequenas epifanias nascem desses abusos frívolos e descartáveis. O amor para mim tem cheiro de látex e gozo puído. Mas odeio sentir-me dependente e percebo que quero é espatifar qualquer vínculo, qualquer vício, mas acabo me entregando a eles com mais violência do que quando me apeteciam as dependências. As garrafas secas lanço contra o concreto armado, as bitucas de cigarro pisoteio para se apagarem, mas compro tudo que desdenho mais de uma vez. Até quando vou poder pagar pra ver?

II

Suas alegorias insanas me trazem lembranças do tempo em que as esquinas me eram menos sombrias e fétidas. De quando os olhos alheios não me causavam asco e não me chicoteavam danos.

As humanidades nunca me proporcionaram pão e vinho e se não fosse minha capacidade de abstrair talvez não tivesse sobrevivido.

Mesmo assim, Kerouac, doei-me a seus devaneios por altruísmo, de maneira simples e cívica me coloquei em seus braços magros e jovens como quem se entrega com gosto ao seu carrasco.

Nos becos o caos, a selvageria, a desordem e o atentado ao próximo sempre me acompanharam de perto, mas era jovem e inconsequente, nada me atingia em cheio!

Nós nunca almejamos arco-íris ou chuva de meteoros!

Enquanto você me esperava em casa com a perna quebrada, por tantas rasteiras da vida, eu me vendia por bebida e diversão. Por horas, dias e anos estranhos meteram a mão por baixo de minhas saias arrancando-me ralos pudores, deixando esmolas e levando gozos recolhidos.

Não estou reclamando, aprendi contigo a não me arrepender de nada! E o vil metal que troquei por mim comprou-me ovos fritos, conhaque e companhia sua.

III

É certo que dinheiro não compra tudo, mas nos dá a dimensão quase completa do possuir, o que creio seja o mais próximo dessa tal felicidade utópica.

Você nunca foi óbvio e por vezes se zangava com minhas serenidades, mas o que posso fazer?

Por mais que queira não ser mulher, por mais que negue essa condição imposta e desonre essa tal feminilidade, ainda sou mulher e tenho sentimentalidades.

A tala na perna e o andar desajeitado te deixaram mais frágil e as impossibilidades te fizeram um pouco mais meu e isso te desagradava.

Não pense que desconheço tal sentimento, você sempre me aprisionou em sua boca, baby!

Foi bom ter seu corpo entregue aos meus cuidados, naqueles dias.

Banhar e alimentar o homem que venerei apaziguava as dores de faltas e ausências.

Do que não senti por não parir, creio que tive ao acolher-te.

Não digo isso com amor, o sentimento de posse é mais forte que qualquer outro, fui dona de alguém, mesmo que por pouco tempo.

Temos nossas brevidades pérfidas e admito que gostei de ter-te, naquela época em que não tinha quase nada além de mim.

IV

Conheço bem sua filosofia do tudo ao mesmo tempo, agora. E sei que se irritava em ter apenas duas mãos para abraçar esse mundo gigante.

Nunca dormia antes de você e quero que saiba que ouvi todas as suas orações para Dean Moriarty, nosso deus-pai.

Sabe, eu já quis tudo ao mesmo tempo e não aguentei o tranco, nem Dean aguentou e acabou como pastorador de carros numa garagem qualquer em Nova York.

Já estive no chão, na lona, sei bem a sensação de um direto cruzado, o sabor do sangue na boca e o gosto que a derrota tem. E às vezes arroto com o gosto dela na boca!

Mas a derrota não me traz desmerecimento, ela é minha única e verdadeira glória, baby!

Ainda amo você por me fazer lembrar do que vivi quando tinha a sua idade e para quem não acredita em deuses isso é bento!

Sobraram-me apenas alienações e as recordações das viagens alucinadas que fizemos.

Não tenho mais com quem compartilhar minhas sandices e a vida desregrada que levo, estou entregue ao álcool, às drogas e aos viscos sexuais.

Outrora pensei em regressar ao nosso canto e olhar você mais uma vez nos olhos, como quem anseia se encontrar fora de si, mas já desisti.

Não somos os mesmos!

V

Embora todos os homens me tratassem bem e me fizessem feliz por algum tempo, as mulheres constantemente lançavam-me olhares de fúria e desdém, não que eu procurasse a aprovação delas, mas sempre fui rechaçada como um demônio entre as santas imaculadas no Paraíso.

No fundo sinto que queriam ser como eu, mas moças bem criadas não suportariam as cargas que já carreguei e não se sujariam como já me sujei. Mas elas aguentam calcinhas, nunca gostei delas, marcavam minhas roupas e o que é pior, dilaceravam minha carne. Melhor mesmo era não usá-las e quando alguma senhora polida me olhasse com descaso abaixava-me perto de seu cônjuge para constrangê-los em público.

Tenho porte, mas não tenho classe, baby!

A decadência foi a menina de meus olhos, mesmo que eu quisesse progredir sempre acabava me lançando na sarjeta, de onde jamais deveria ter saído. Por mais que gastasse tudo o que tinha em sapatos caros, cheirava à bebida barata.

VI

Os sapatos vermelhos e as meias arrastão foram meu uniforme por anos, nas ruas aprendi a não esperar nada do outro que não fosse um direto cruzado.

Em meu caminho sempre houve quem quisesse só me derrubar.

Lembra de nosso último Natal juntos? Recordo que me deu sapatos vermelhos envernizados, daqueles caros que eu gostava e te dei luvas de boxe.

Os bebês deveriam ganhar, ao invés de chupetas e doces, luvas de boxe e aquele boneco “João-bobo” para aprenderem golpear desde cedo.

Tenho braços finos, olhos dormidos, uma boca enorme, minha sorte são os pulsos firmes e a respiração constante. Mas o que derruba é o álcool, esse sim diminui as dores e os dias de vida, aliás, elegi a bebida como mãe-protetora, ela apóia, dá colo, esquenta o peito e atenua a visão dolosa do mundo.

Ainda calço aqueles sapatos, como que se batê-los e repetir em voz alta que: “não há lugar melhor que minha casa”, eu voltasse a sentir a garoa das noites menos infelizes que esta.

VII

Nunca me iludi com saudosismos baratos, mas sinto saudades do tempo em que estivemos juntos, tinha companhia e assunto depois do sexo. Com quem mais discutiria Maiakovski depois de trepar? Sexo bom, diga-se de passagem.

Perdi a conta de quantas vezes preparei o revolver e quis reduzir minha vida de forma simplista, como Maiakovski fez, quem dera tivesse tido coragem!

Optei pelos sacolejos das viagens, as caronas com estranhos, o sexo alucinado. Escolhi dissolver fronteiras e perverter o cais, ir além do que esperavam de mim. Preferi magoar.

Gostava do cheiro de sua jaqueta surrada que me aqueceu durante algumas noites, embora preferisse seu corpo. Mas nem sempre pôde estar comigo, o mar chamava você de tempos em tempos e eu ia ao porto ganhar a vida, na espera de seu aroma em mim.

Assim nos deixávamos vaga e dolorosamente.

Trazia-me galhos de presente, um a cada chegada, alguns floridos outros estéreis, mas eles vinham com um toque de dúvida.

Havia mais de uma razão para viver naqueles tempos, embora aquela arma dentro da bíblia hora ou outra me desafiasse a brincar de roleta russa e ela me deixou perder todas as vezes!

Apressados e atrasados nos tocávamos e nos deixávamos sós.

Hoje encontrei um galho seu entre “O proletário voador” e “A plenos pulmões”, sangrei.

VIII

Que hora é melhor que agora, esta hora que falo, mordo e sangro?

Talvez um dia eu sinta saudade do hoje, dessa carta e do derramamento espontâneo que me deixa mais frágil que nunca.

Da mesma forma que vivemos, o inferno não pode esperar, é tudo agora ao mesmo tempo, já!

As palavras desse escrito, carregadas de ternura podem enganá-lo, baby!

Mas não redigi uma linha dada aos destemperos balzaquianos e fechei os olhos para as rugas que me atravessavam o rosto, meu êxtase e castigo foram e serão as premissas da luxúria.

Recordo-me do dia que nos conhecemos, quando me encontrou numa sarjeta qualquer, depois de ter sido sugada e abandonada.

Levou-me para sua casa, tirou-me a roupa, lavou-me, como que em um batismo, onde se tira todo pecado do mundo.

Uma estrangeira entre seus lençóis e não me tocou a carne, não naquela noite!

Parecia-me engraçado não trepar comigo e se enfiar debaixo das cobertas e ficar olhando minha buceta, como se não fosse igual a todas as outras. Isso confundia e me envergonhava, tanto que fingia estar dormindo. Mas você se assegurava de que eu tivesse bem acordada, fazendo perguntas do tipo: “quantos homens já teve?”, “quem foi o primeiro?”, “ele te amou?”, “como ele te deixou?”...

Enlouqueceu-me com seu interrogatório ao ponto de eu pedir que me currasse ou quebrasse meu pescoço! Entendo que queria mais que sexo.

Talvez fizesse isso para me deixar constrangida, para me ferir, como saber?

Por isso me magoa tanto meu marido não perguntar como foi meu dia.

Os becos me eram mais gentis e menos aterradores que o cotidiano.

IX

Acordei hoje com seu gosto impregnado entre minhas coxas, baby!

Não que estivesse aqui para tocar meus devaneios ou dispersar angústias antigas num tempo tão ido, mas pela mão gelada de outro que me tocara fundo sem mesmo me conhecer.

Sempre deixei claro o meu desgosto por acordar cedo demais!

Não por suas mãos frias que se aconchegavam entre meus regalos mornos e carcomidos, não pelos olhos inchados pelo porre da noite anterior, nem tão pouco por minha falta de humor matinal.

Despertar era algo maior que isso, um não querer ver, um asco precoce da rotina de fingimentos e consternações.

Cedo ou tarde experimentamos uma das piores sensações humanas, a rara certeza de estar só e de não ser útil ou vital para algo maior.

O simples abrir dos olhos é mais assustador do que os becos mal cheirosos ou as navalhas presas ao pescoço ao ser currada.

Mas nada pior que ter dois olhos esquerdos e a deformidade de não me adaptar.

X

A única constância é esse desespero, baby!

Mesmo as lembranças que vez ou outra me levam ao Colégio Diocesano, onde o toc-toc apressado dos sapatos envernizados e o sussurrar pelos corredores soavam pecado, não me deixam esquecer que desde o começo o impulso era o de me jogar contra os muros.

Os uniformes finamente engomados, as gravatas azuis como as saias e meias ¾ brancas revestiam esse desespero. Nem conhecia ainda as ruas da cidade baixa, muito menos o porto, mas naqueles dias de calor e febre, eles já chamavam por mim.

Tudo que fiz é embebido desse sentimento que me arrasta para o chão, baby!

Alimento-me do erro que prolonga minha existência, embora sinta que esse manco ético aumente ainda mais o peso de ser livre.

Já estou ancorada aqui há alguns anos e as ondas do cais do porto vêm me assombrar nas noites quentes.

Nunca gostei das casas que morei, nem mesmo essa que resido agora, grande demais, cheia de luxo e tão fria. Mesmo o nosso apartamento, decorado com um colchão mofado, caixotes e mesa de tapume, parecia-me luxuoso demais.

Nasci para as sarjetas, portos e pontas de rua!

Por quantas vezes fui pega escalando muros, quantas vezes fui surpreendida na ala masculina do internato?

Nem me lembro mais!

Já esperei e esperam muito de mim, não estou à altura de esperas e creio que foi um dos poucos que nada esperou de minha parte.

Cobram-me um preço alto demais por escolhas equivocadas, sofro por não me encaixar nas necessidades alheias, mas nem por isso desisto de ser quem sou.

Tentei, por muito tempo, vencer esse sentimento autodestrutivo que toma minha rotina desde que me entendo por gente. De me trancar com meninos nos banheiros masculinos no colégio e até me deitar com desconhecidos.

Lanço-me contra muros embolorados e densos, construídos por outras pessoas para conter o inevitável, para deixar de fora o que seja constrangedor.

Nem sei o quanto me estraçalhei, sem tirar um tijolo alheio do lugar!

As minhas vontades tiraram-me o uniforme, as meias ¾ e as saias plissadas que não me importunavam tanto. As camisas brancas e a gravata incomodavam, oprimiam-me o peito, apertavam a garganta, não me deixavam respirar.

Soava-me castrador a imposição do igual, uniformes, rotinas, contratos e hora marcada são fivelas de camisas de força.

Sei de meus pecados e não os ignoro, embora os julgue menos pesados do que não saber definir de maneira simplista onde me perco e porque desisti dos contínuos esforços para mudar minha atitude.

XI

E pensar que foi tudo tão rápido, a ponto de não me dar conta de que saborear pequenos momentos vale mais que uma vida inteira de esperas inúteis.

O automóvel ia a mais de cem por hora, nossos corpos a mil e seu membro em minha boca, e aquilo era tudo que desejara além da adrenalina da velocidade.

Quando os navios ancoravam no porto, corria como criança ao encontro do cais, a meu modo enchia-me de alegria ao vê-los aportando, pois era a possibilidade de te reencontrar.

Evitei a melancolia nesses dias solitários e frios, em que a geada encobriu as alamedas e matou alguns mendigos. Só agora percebo que nos amávamos, mas sempre é tarde para rememorar e quase dói.

Retiro pele sua sob minhas unhas e sei que carreguei mais que isso, o cheiro de maresia permeia meu hálito e dilata minhas pupilas.

Quando esbugalhava os olhos e me dizia: “é só sexo, baby” e eu sorrindo repetia: “sim, é só sexo”, alguém mentia.

Enquanto os neons inconstantes refletiam em nossa parede nua, chamando para a boite Le Burlesque Noir, latejávamos em fúria grotesca.

E quem ousaria dizer que foi tudo um engano, baby?

XII

Ao caminhar distraída pelo centro, numa manhã qualquer, vi um bêbado caído na rua, com a cabeça recostada no meio-fio, senti vontade de levá-lo para casa, como fez comigo!

Lembrei-me de quando fugi do colégio, sem ter para onde ir, numa noite fria e sabendo do castigo que receberia me sentei na calçada e chorei. Muitas pessoas passaram por mim e só um bêbado todo sujo e rasgado veio me perguntar se eu precisava de ajuda. Um bêbado que encontrei na quinta esquina, que teve a gentileza de querer saber de mim, poderia ter tido medo, poderia ter gritado e corrido, mas não tive nenhum receio. Olhei direto nos olhos dele, já enxugando minhas lágrimas e disse: “não quero voltar!”

Ele sorriu e me disse: “nem eu, nem eu!”

Contou-me de sua saga na cidade, de seus sonhos caipiras, em dado momento a história dele começou a se parecer com a minha e acabamos bebendo na mesma garrafa e fitando as luzes que passavam por todos os lados. Com ele esqueci-me do frio, da fome, do medo de ser castigada e vimos o dia amanhecer esverdeado e quadrado como o fundo da garrafa vazia.

XIII

O que acaba comigo é a realidade, baby!

A verdade sobre os ombros dói mais que os golpes da palmatória e ainda trago marcas desses golpes em toda extensão da alma. A realidade arde bem mais que mãos depois do castigo!

Por muito tempo me enganei inebriada pela inocente certeza de ser única, especial, insubstituível.

Mas ao comprar meias-finas entendi que não fazem apenas uma e sim milhares delas, para mulheres que por algum tempo têm o mesmo gosto, vestem o mesmo número que eu!

O que me diferencia das outras são esses olhos enormes e agateados, vêem longe e atraem rápido demais!

Nunca quis esses olhos, nunca quis olhar as coisas com esse jeito de cachorro-do-mato, como quem assalta o galinheiro com prazer e foge para não ser apanhado.

Vejo as coisas como são e não quero encarar, desejei um filtro que me protegesse dessa dor nos olhos e não há óculos escuros que me livrem da verdade.

Recordei-me de uma noite em que me perguntou por que eu pedia para me foder com a força que tivesse e naquela época não tinha a resposta.

Hoje tenho.

O que não dói, não machuca, não penetra fundo e não rasga, não é real, baby!

XIV

O engraçado é querermos colocar no outro a culpa de nossos defeitos.

Não sei bem porque meu avô materno era meu ídolo, acho que por um tempo o amei mais que ao meu pai. Talvez por ele ser muito permissivo comigo, deveria ter me posto freios antes de eu desembestar!

Sinto que aquela frase foi pior do que ser estuprada ou cuspida por um estranho!

E acabo retornando àquela padaria cada vez que tenho que escolher algo.

Carrego o vício de não saber escolher, aliás, o mal é mais grave, não escolho nunca, dou-me apenas o direito eterno das pequenas dúvidas e das grandes desistências.

Minha inocência foi perdida ali, no meio daqueles doces, com o cheiro de baunilha no ar!

Para mim não era apenas escolher um e sim abdicar das infinitas possibilidades contidas em cada opção desprezada.

E a farsa continua e se repete como ciclos de sofrimento absoluto, eu me embriagando e seguindo caminhos perigosos de desistência.

Meu avô sussurrou-me ao pé do ouvido: “você pode escolher o que quiser, minha linda!” e assistiu inerte aos meus olhinhos pedintes e desorientados e não alcançou o mal que me fez!

Ah, Kerouac, ali começou minha saga de vícios e insatisfações!

Ah, vovô, ali descobri o que era livre e quão difícil é escolher!

XV

Tive outra crise de bulimia nervosa, doença que não me perturbava desde os treze anos.

Naquela época não entendia e nem os médicos sabiam o motivo das crises. Mesmo com fome, meu corpo se negava a segurar qualquer coisa que comesse.

De forma inconsciente, me punia por não fazer todas as coisas que tinha vontade. E num ato de revolução berrava com dores descomunais, nenhum remédio me curou! Ardi em febre por sete dias, a pele latejava entre brotoejas que estouravam feito a verdade que explodia por dentro. Insatisfeita com a vida que me impunham, sentia nojo de minha imagem e de tudo que representava para aqueles que cobravam algo de mim.

Ora, eu tinha tudo que uma moça poderia querer! Vestiam-me nos mantos da vitória social burguesa, formavam-me num colégio católico e iam me casar com um político, ou um advogado, um médico, quem sabe. Ele viraria meu dono, me sodomizaria e eu viveria ali apenas pra servi-lo na cama e na mesa, a mucama de luxo!

Só podia vomitar, regurgitar a sopa imposta, servida como a realidade intragável que era minha vida.

Ansiava por um corpo, como o da Irmã Clotilde clamava pelo de Padre Bernardo sob o hábito. Ah, era aquilo que eu desejava, a expressão de felicidade incontida, o grito dela abafado pela mão dele, o prazer escondido na capela do colégio, só queria aquela febre!

XVI

Por conta de minha crise minha mãe veio me visitar, sabe que não gosto dela!

Deve se lembrar de quando ela apareceu, logo que me levou para morar com você?

A cara de nojo que fazia ao olhar as nossas coisas e aquele lencinho ridículo que colocava na cara, como se tudo estivesse contaminado e fétido!

É mereceu o apelido que deu a ela: “Dona Pedra”!

Vi diferenças nela dessa última vez, tinha os cabelos bem mais acinzentados, os olhos estavam caídos, não eram mais aqueles olhos superiores e altivos que ostentava no rosto sisudo, sobre aquele pescoço longo, quase vi meiguice.

Trouxe algumas roupas dela que não usava mais, de bom tecido, dizia que era pelas cores, não ficavam bem em uma viúva. Como sei costurar, fez questão que as reformasse para mim e citou as tais grifes que tanto deu valor durante sua vida inteira.

Estava mais entusiasmada com os vestidos que eu. Observei o cenário com atenção, uma felicidade incontida parecia outra pessoa, não a minha mãe. Por um breve momento vislumbrei a possibilidade das pessoas mudarem.

Em certo momento me perguntou se havia visto minha caixinha, como não havia visto, procurei no meio de algumas peças de roupa que sobraram na sacola. Sim, reconhecia a caixa de prata, meu pai trouxe como prêmio de consolação por esquecer o dia de meu aniversário de nove anos.

Ela me contou que sempre que olhava em cima da penteadeira lembrava a cena de meus irmãos destruindo o jardim e que eu catava as migalhas das flores guardando todas nessa caixinha.

Veio-me a cena tal qual acontecera: eu catava os retalhos da destruição de meus irmãos e falava baixinho vou te curar, tudo vai ficar bem!

Como se existisse algo que pudesse desfazer o esgarçamento das flores despetaladas.

XVII

Por vezes me pegava com o crucifixo que me deu entre os dedos, não para rezar, apenas pra ter a sensação de quando o amarrou em meu pescoço dizendo que o que nos enforca é a fé.

Todos os cigarros que acendi desde então foram em sua homenagem, não pelo vício, mas pela carga similar a sua, entram em autocombustão por trazerem pólvora na veia.

Estou sozinha desde que me entendo por gente, já tenho noção desse estado faz algum tempo e não ter alguém que confio para desabafar me corta ao meio.

Nunca trouxe a leveza das plumas comigo e ao caminhar com sapatos altos arrastava-os no asfalto até perderem a sola. Às vezes invejava as mulheres que passavam pelos estacionamentos no centro da cidade, escondidas em seus vestidos finos e em seu caminhar elegante. Para ser elegante é preciso ser leve e minha consciência pesa mais de meia tonelada, baby!

Meu consolo era me ater à sua presença, ouvir suas histórias, compartilhar de seus amigos, assim as angústias se calavam, mas não me bastava aquilo tudo, nasci para magoar.

Quando tranquei pela última vez a porta de nosso apartamento esqueci-me de como é chorar, travo a mandíbula e feito animal coagido entrego-me ao silêncio.

A escrita tem sido uma válvula de escape, a única, dissolver-me em palavras alivia o peito e ainda assim, feito Sísifo carrego a pedra de erros nas costas, sem ter a quem recorrer.

Não trago mais o crucifixo que me deu de presente, gostava de trazê-lo entre os seios para me lembrar da maneira que passeava com sua língua entre eles. Precisei penhorar a jóia para não passar fome. Ainda não consegui resgatar nem a jóia e nem a fé!

XVIII

O caso é que éramos muito jovens e eu adorava me exibir para você, usar o charme que tinha para ludibriar trouxas e me gabar depois! Engano-me dizendo que não sou mais assim, embora ainda queira arrumar alguém que trepe comigo pelo menos duas vezes seguidas antes de pegar no sono e me trate com o desprezo que encontrei nos becos da cidade baixa.

Chove agora depois do calor infernal, aqui não existem as quatro estações e creio que se Miller descesse aos trópicos descobriria a real intensidade de seus escritos sobre a carne castigada pelo calor, ele seria menos voraz.

Serão dias de chuva sem meio termo, tudo é suor e afetamento, pois não há remédio para esse meu estágio desgastado e febril. Quem dera tivesse só vocação para o martírio, o clima já derriçaria com os dias úmidos e mofados e as noites seriam devotadas apenas para o prazer.

Em março o inferno é aqui, não é branco nem colorido, é marrom acinzentado. Queria estar chapada, sob o efeito de um barbitúrico qualquer que me afastasse dessa sobriedade nula e cortante.

Como já disse estou tentando me endireitar, sentir o prazer como a maioria das pessoas: três refeições ao dia, dormir um pouco mais, não pensar muito e sentir cócegas.

Mas ainda penso e o pensamento pesa, lateja e tira o sono, baby!

Enganei-me por muito tempo, pensando que a satisfação reside nas coisas e descobri que o prazer está além do objeto.

Mas sei também que se não beber, não fumar ou me enterrar em minhas pílulas não conseguirei prazer imediato. Percebo que não enganei ninguém, que os trouxas ansiavam por ser enganados para terem o que queriam de mim, eu era só um objeto.

XIX

Conseguia ficar horas velando seu sono, como se uma loucura me tomasse os olhos e trouxesse-me a quietude quase vazia do contemplar.Foi minha religião por muito tempo, um recanto onde ainda me encontrava e voltava a me perder.

Nunca foi um ser abstrato ou um borrão desses que se prende aos sistemas impostos, nem tão pouco era um observador acocorado fora do mundo. Era a realização fantástica de tudo porque eu não construí.

Não tive nada de verdadeiro, nada de real antes de você. Alienei-me de meu fracasso para viver o seu entusiasmo, as suas histórias preenchiam minhas lacunas de forma pitoresca e ácida.

Sem você, eu era o retrato da miséria pessoal, nada mais que o suspiro do oprimido, desânimo de um mundo sem sentimentos bons. Enquanto digo isso me dou conta de que a felicidade é ilusória, não passa da exigência utópica que cultivei por muito tempo.

E seu apelo era para que eu abandonasse as ilusões a respeito da minha condição, era o apelo para abandonar uma condição que precisava de ilusões e ainda quero me enganar.

A realidade arrancou as flores imaginárias, como fizeram meus irmãos anos atrás. Não para que eu suportasse as coisas sem fantasias ou consolo, mas talvez para que não me iludisse que tenho o poder de curar tudo.

XX

Esforcei-me ao máximo para não falar em certas lembranças com você, mas como de algum modo tudo que escondemos vem à tona na pior hora possível é chegada minha hora. E não há uma maneira mais fácil e menos dolorosa de fazer isso, baby!

Saí de nosso apartamento naquele setembro fatídico acompanhada, bêbada e consciente de minha condição. E imagino que se ficasse você se afastaria de mim aos poucos esqueceria o motivo de ter me tirado daquele beco e talvez tudo o que vivemos dali para frente seria um simples prelúdio. E isso seria insuportável para mim!

Preferi trazer comigo essa imagem irretocável de quase-perfeição.

Parti dona de mim, trazendo uma dor lacerante e um filho seu, que eu não queria, dentro de mim.

Por um tempo usei o álcool como se fosse prescrição médica, servia-me como um anti-realidade que me curava da agonia mental causada pelos breves períodos de sobriedade.

Rejeitei até o fim a ideia de ser como minha mãe e injetei a morte de seu filho na veia, deixei que o cortassem e o levassem de mim, sem piedade, mas não sem dor e culpa.

Agora depois de alguns meses sóbria vejo as coisas com uma clareza insuportavelmente cortante, como que tivesse recebido um dom maldito, o da clarividência. Não aquela que de ver os mortos ou ter pressentimentos ruins. Vejo coisas, lugares, pessoas que parecia nunca ter visto antes. A luz tem um tom branco invasivo, já não é amarelada e fosca, descobri que a paz segura que procurei por algum tempo não existe.

Vejo que as coisas e lugares que desconheço são parte de um passado ébrio e nauseante que vivi e que me persegue, mesmo que eu o aborte todos os dias.

Sinto falta do que não fomos.

XXI

Sabe do pavor que tenho por certos insetos, não é baby!

Deparei-me com baratas, pernelongos e aranhas por muito tempo.

As coisas são diferentes hoje, quase não os vejo mais, nem sei se porque dedetizam ou porque minha visão está cada vez mais fraca.

Outro dia vi uma aranha espreitando m minha sala, ela se esgueirava pelo tapete se aproveitando da pouca luz.

Sou ruim, Jack, muito ruim. Observei a pobre fazendo o trajeto pela extensão de todo o tapete, mais ou menos uns dois metros e meio. Acendi um cigarro e esperei que ela chegasse bem perto de meus pés, então a queimei com a bituca do cigarro.

Somos insetos nas mãos de outros seres humanos. Vulneráveis e à mercê de suas vontades cruéis. Sei que serei exterminada como a aranha que matei.

XXII

Tenho o péssimo hábito de querer boxear com pugilistas mais fortes que eu, dessa vez desafiei Holyfield, um peso-pesado e eu estava de olhos abertos e sóbria, só podia mesmo estar querendo levar uma surra.

Jack, no fundo, sabemos o fim da história e não sei o motivo, mas a gente ainda insiste. Passei minha vida desistindo de tudo que era bom para mim.

Achava que era autodefesa, uma tentativa de me proteger, mas sei que era medo, medo de enfrentar uma escolha, não sendo eu nem peso-pena, ou seja, sendo só uma mulherzinha que mal sabe bater!

Outro dia senti aquela coisa de novo, aquela sensação enganosa que nos ludibria com a frase: “vale a pena”. Mas sabe a voz de meu avô, sim ela voltou também! Mais uma vez ela me dizia: “vai se machucar”.

Ouço a voz dele só em iminência de perigo e na maioria das vezes fujo, mas deixei passar, sufoquei, mesmo de alguma forma sabendo que era verdade o que dizia. Até quando vou pagar para ver? Até quando vou poder pagar para ver? E é cada vez pior, querer pode ser bem pior do que se imagina, e não é uma piada, baby!

No começo ele só brincou comigo, como se eu fosse mesmo aquele João-bobo, ficou com pena, talvez. Chegou a ser doce e agradável, gentil, por assim dizer e foi quase um pás de deux o primeiro round! Quase respeitoso e tocou-me a luva, mas agora percebo que foi um teste, um estudo do inimigo, um deboche velado.

No segundo round, ouvi a campainha mais de uma vez, parecia que ela tocava dentro de minha cabeça. Foram as sequências de golpes e deixando bem claro que ele foi limpo, nem meio golpe baixo!

Jabes seguidos e alguns diretos e enfim um cruzado!

Nocaute, sem ao menos eu ouvir a contagem. Tenho gosto de meu sangue na boca e ainda me dói, mas já estou farta do bordão da dor, não é baby, nem ele me é suficiente!

XXIII

O que a água e sabão não lavam é o sentimento, baby!

Sinto-me suja como antes, do mesmo modo de quando me arrancou da sarjeta!

Não consegui pensar em maneira melhor do que acabar com tudo do que envelhecendo. Criando rugas e manias senis, chorando meus mortos e me olhando sem ver nada de mim. Sábio foi você que morreu cedo, que se entregou ao caos mundano sem freios ou estacionamento.

Penso mais no passado que no presente, quando não são os brancos, buracos negros a me perseguir sem trégua. Riria de mim se eu dissesse que não lembro das suas fuças, pois não lembro.

Recordo-me do cheiro de cigarro que trazia em sua jaqueta de couro surrada e do cheiro daquela pomada que você usava para tudo, desde desodorante a lubrificante, você cheirava Minancora.

Talvez o suplício maior seja pensar nos vermes, pobrezinhos... Terão que acabar com meus restos, se é que lhes sobrará algo. Pense em alguém que odiava calcinhas, rendida agora em fraldas geriátricas, se houver algo pior que a vergonha de se borrar, eu desconheço.

Você sempre cheirou bem, baby!

Mesmo os cigarros, a maresia e a Minancora, tudo vindo de você tinha cheiro de vida.

XXIV

As esperas são pequenas mortes, baby!

Perdi a conta de quantas vezes esperei algo extraordinário acontecer e acabei me vendendo para manter nossa relação, ovos e bebida.

A dimensão das coisas não me assustava tanto, sei que não me cobrou muito, mas nesses tempos que só tenho a mim, vejo que pode ter custado mais me tirar das ruas e me manter limpa.

Nunca aprendi a usar as palavras como você, sempre lidei melhor com a bebida.

Se algo me afetava eram as garrafas vazias que ouviam meus soluços de gargalo.

Quisera eu, baby, uma mulher que nasceu nos melhores berços e acabou nas ruas, saber me expressar tão bem quanto você.

Mas as coisas não são assim, como queremos. Tudo foge ao controle e só agora entendo isso.

Devotei minha vida a um sonho, quis a liberdade e provei por alguns anos amostras dela e no restante do tempo vivi das lembranças dela!

Não fiz a conta de quanto paguei, ou de quanto pagou.

Só agora tenho noção que foram os melhores tempos de minha vida.

Enfim, estamos quites!

XXV

Passei os últimos meses tentando evitar, sem sucesso, qualquer sensação que me remetesse a você. Mas não consigo separar a consciência diária dos acontecimentos que me trazem lembranças suas.

Moro num lugar quente, muito quente e o calor enlouquece as pessoas, creia-me!

Queria sair correndo, sem roupa no meio dessa gente que demonstra tanto desprezo por mim. Se estivesse ao meu lado, talvez tivesse a mesma coragem de outrora.

Hoje o máximo que poderia fazer seria compor um ensaio sobre como o derretimento das calotas polares, o aquecimento global mudam o comportamento cognitivo das pessoas. Rindo sozinha e imaginando alguns graus a mais cozinhando os miolos de alguns! Foda-se, não é disso que quero falar, morrerei logo, independente do clima desse mundo de merda!

Surpreendi-me por não estar magoada pelo fato de descobrir amor nesse peito que já julgava morno e entregue ao movimento marítimo do vai e vem das marés. Sei que nesse momento brota um sorrisinho cínico, de canto de boca, bem aquele que esboçava quando tinha razão e eu teimava. É verdade, tenho que me retratar, aprendi que o querer bem é melhor assim, vivenciado dessa maneira tosca e hipócrita que você vivenciara há décadas atrás. E acabei me aconchegando nos braços de alguém que me diz o que quero ouvir. É o maldito vício humano, baby! O apego à mentira doce e afável para sobreviver ao caos egoísta que a realidade nos impõe.

Fugi desesperada de nós e dessa realidade da maneira mais segura que encontrei, tentando me libertar e iludida nessa utopia me amarrei a alguém muito diferente de você.

Sei bem que ressaltava as vantagens de sua vida sem vínculos, que no frigir dos ovos era como a minha antes de me tirar daquele beco, mas sou uma mulherzinha, Jack, no fim sou apenas uma mulherzinha, igual a todas as outras de minha espécie. Eu só queria estar a salvo, encostada num corpo quente, ter alguém para dividir um teto e me contar mentiras doces. Estive cega por um tempo e só consegui alcançar-te quando já estávamos distantes demais para reatar.

“ ─ É tudo mentira, baby!” – ainda me lembro dos seus olhos quando me dizia isso.

Agora que tenho o que sempre quis, falta-me algo, falta-me tudo!

XXVI

Nunca fui grande coisa, baby!

Uma menina quieta, uma moça que gostava de sexo, uma mulher debochada e hoje mais calada do que gostaria.

Fui muitas mulheres, mais do que pude suportar em mim, mais do que pude controlar e independente de quem fosse eu era sua!

Quem dera eu me amasse na mesma intensidade que me entreguei a você!

Quem dera tivesse faro para os negócios como para homens errados!

Corri o mundo em busca de aventura e um pouco de diversão, tentando esquecer os meus e quando podia tripudiava, ria, debochava de suas vidas medíocres e insossas, devotadas ao convívio social brando e poético.

Cada vez que caía de bêbada, que me entregava a um estranho ou despertava em alguma esquina fria, era para eles que devotava meu primeiro pensamento. Por vezes até me perguntava o que estariam fazendo naquele momento.

Os quitutes que minha mãe exibia pela manhã soavam-me afronta. Como poderia perder tanto tempo comigo, justo comigo que a desprezava tanto!

Acho que minha revolta nascia ali, por entender cegamente a fuga de meu pai, por não suportar aquela mulher sem atrativos, devotada a tarefas menores.

Meu pai era um porta-retrato sobre a penteadeira dela, que me olhava todos os dias enquanto eu me penteava. Quantas vezes ele me ouviu chorar e guardou minhas confidências, conselho nunca deu, mas esteve mais presente do que minha mãe!

Choveu muito por esses dias e as marés estão mais altas que o normal, o mar quebra mais pesado que nunca. Ontem o mar invadiu a lagoa, a praça, levou carros, ilhou bairros e matou pessoas. Como se algo precisasse ficar cheio e sujo para que eu entendesse que não são apenas faltas que me fazem mal, os excessos também me afetam.

Acordei encharcada de suor e sangue, o suor é a saudade que tenho de minha mãe e o sangue é por saber que metade de meu DNA é aquela fotografia sobre o móvel.

XXVII

De onde vem essa sensação de que as coisas são tão iguais e que mesmo assim ainda posso sentir falta delas?

Algo que me aflige todos os dias são essas molduras que suportam os mesmos quadros há décadas nessas paredes, o mesmo relógio, as fotografias sobre o piano.

O par de chinelas e os elos que se arrastam de madrugada pela casa em silêncio, minha casa hoje se parece com a casa de meus pais. Cortinas empoeiradas, sofás confortáveis para que as pessoas possam cochilar neles, armários lotados de coisas inúteis e o velho silêncio.

Esse pesa e assusta mais que os de outrora, ainda que não tenha mais o impulso de liberdade desenfreada que cultivei, ainda que segura e distante dos atentados invasivos, sinto-me aflita.

O portão range mais que de outras moradas, o calar da noite é mais intenso.

Nossa vida tinha mais música, mais soul, baby!

Já vi mais sentido nas coisas e meus copos eram mais vazios.

Hoje é a incansável xícara de chá sobre o pires e um guardanapo para sufocar o atrito.

Os sons e o atrito não são permitidos por aqui, Jack! Todos dormem, o silêncio é brutal e nauseante.

Por vezes, o barulho de carros acelerados rasga as madrugadas, meu coração dispara na lembrança nossa.

Se não fossem esses rompantes que cortam as noites e minhas esperas vãs, não sei o que seria. Pobre de mim que já fui tão irreverente e soberba, agora entregue ao desespero das noites de insônia.

Sou um arquipélago, como o relógio de sempre na mesma parede mofada avisa a cada segundo que apodreço, os retratos sobre o piano não me deixam esquecer isso.

Sou um morango embolorado e minha mãe dizia que um morango estragado dentro de uma caixa contamina todos os outros. Já estou concordando com ela, quase a entendo...

O que mais me faz falta são os bigodes desalinhados de meu pai.

Deixou-me palhaços e bonecas de louça, mas o colo que tanto quis foi para as putas em seus passeios noturnos, ou para empregadas que o visitavam no sótão durante suas longas noites de insônia.

Deparo-me com a dor de ser órfã, com mãe viva, sem filhos, sem um lugar que me pertença, sem paz.

XXVIII

Todos os dias se tornaram quarta-feira de cinzas!

Não há palhaços ou alegorias finas que durem mais de três dias!

Acho que me esqueci ou relutei demais para banir essa fantasia de minha vida, como um elmo que depois de encontrado é difícil devolver para a terra.

Ou aquelas máscaras venezianas que teimamos em pregar em portas e paredes velhas para que nos lembrem de que somos falsos!

Quem sabe mereça ser esquecido, como cadáver jogado em vala comum, indigente!

Guardo você por tempo demais, um relicário que me faz lembrar o que sou, o insólito de solidões mais profundas.

Quisera ter a coragem doutras eras e ser-te ingrata., mas desaprendi!

Mas não há como esquecer sua mão a me puxar da sarjeta, o colo nas noites frias, o silêncio das horas mais certas!

A sua estadia conturbada me deixou o pago de sabedoria e força.

A idade também tem suas recompensas, seja a proximidade do fim ou o aprendizado lacerante.

Meu desejo hoje é deixar de pensar em tudo que não fomos e esquecer o cansaço. Tentarei voltar pra mim, embora acredite que nada é esquecido.

─ O passado é Medusa, baby! Não me verá olhando pra trás, não quero virar pedra!

Carrego seu querer por mais tempo que suportaria qualquer outra coisa, não sei abandonar você feito alegoria e seguir caminho, descobri em hora tardia que não há liberdade, são poucas as escolhas e por mais que me prive desse frisson de lembrar mais marcado em mim está.

Sim, eu sei Jack, sonhei mais do que tive e brindei os sorrisos, me livrei das derrotas estando ao seu lado.

Amar você em me odiar é remédio para meu caos interno, é quase solução.

Definho, pois a memória é bandida me faz enxergar melhor sob as linhas do não dito.

É o sufocar dentro de cada cigarro, evaporar a cada trago que bebo quem dera fosse fácil assim?

Faz três dias as cólicas do aborto de nosso filho me doem, três dias, todo maldito mês é assim.

Seria um homem hoje, se eu não o tivesse matado e talvez me apoiasse no meio desse labirinto. Talvez visse no olhar dele os seus olhos e me doesse menos a falta que me faz. Pior seria vê-lo como o flagelo culpado por ter te abandonado, sempre pode ser pior, baby!

XXIX

Hei de redescobrir a fórmula para calar os gritos que me tomam nesses desertos lotados de personagens que já vivi. Sim, talvez afogá-los em caos íntimos, naquela solução menos dolorosa para beber, que há tempos me ensinara.

Reaprender a secar esperas, dormir o dia inteiro e vagar à noite.

Por um tempo era o poker, hoje é o remanescente jogo de paciência que gira em meu baralho inerte.

Cansei de reclamar do passado e me comportar como um ser caquético e irresoluto.

E vem aquela voz mais ríspida que manda calar a boca e beber até desmaiar. Tudo ao mesmo tempo agora e em alta velocidade!

Pois que se for para chocar contra as coisas que seja para despedaçar, baby!

A voz maldita ecoe dissonante, a junção das falas de vários dos homens que passaram em minha vida, cuja visão da mulher perfeita é a que geme de prazer, aquela que não fala de dores, não chora e só sorri permissiva.

Cansei de ser mulherzinha, estou velha demais pra isso, Jack!

Quero ser massacrada pela angústia mais torturante e agora abri todas as minhas comportas. Não suporto mais o desistir!

Não me doei mais por altruísmo, creio que é o que me falta, me dar a alguém que precise de mim e nessa hora não me sinto essencial.

Esse lugar me passa, tem luxo e zelo em excesso, parece frágil e imexível e isso me incomoda demais.

Outro dia vi um menino maltrapilho, sentado bem em frente ao meu portão, saí e o olhei de lado. Pés sujos, mãos entrelaçadas, trazia um cheiro ocre de abandono, seus olhos miúdos e fixos não me perceberam, parecia devotado ao chão, tive medo que ele me olhasse.

Não sei dizer o motivo, mas tenho medo de tocar o que desconheço e eu não era assim.

XXX

O que nos afasta da realidade é a civilidade, é o egoísmo, baby!

Não direi que fujo à regra, querem seu melhor, mas não dão nem uma migalha de si.

Quero o melhor dos outros, mas me guardo em retaguardas para não me ferir gravemente, salvo raras exceções.

A civilidade é o oco do mundo, compram-nos presentes caros, fantasias baratas e reduzem a existência a um espetáculo burlesco.

─ São os tópicos! É o carnaval, baby! - como você bem dizia - Uma alegoria transitória que se desfaz em poucos dias!

Nos deixamos envolver com a música, com a festa e a dança e esquecemos que a pintura e os disfarces não duram.

Ainda admiro você, Kerouac, tinha uma sinceridade crua, quase agressiva, mas não me decepcionava, nunca me decepcionou.

Tinha a capacidade de me foder sem palavras doces e de dizer ainda me penetrando:

─ É só sexo, baby! É só mais uma para mim! Não se apaixone!

Por mais que doesse escutar aquilo, naquele momento, eu segurava firme em seus braços e implorava por mais! Isso de certa forma me fez mais forte.

E não consegui odiar você por isso, não consigo te odiar!

É fácil cobrar o que não se tem, o que se desconhece, o que te privam.

Difícil é ser fiel aos seus princípios e ter coragem de confessar o inconfessável.

XXXI

Num dia comum trouxe-me um relógio e uma garrafa de vodca. Mimo perfeito para uma escritora decadente. Um me faria lembrar do tempo perco engendrando filosofias maiores que meu entendimento pode alcançar, o outro para esquecer o resto.

Agora vejo que acabo falando feito você, Jack, com aquele ritmo erótico-sarcástico, que imprimia em suas falas e que fez com que eu me apaixonasse tanto.

Sim, a palavra esgarça tanto meu sentimento que me comovo e me encho de piedade a me ver ainda tão ignorante e deslumbrada.

Por estar distante de qualquer pessoa que me entenda ou que eu possa contar tudo isso sem que pareça uma ladainha sem começo e sem fim.

No fundo, acredito que a maioria de nós pousa a cabeça sobre o travesseiro querendo dizer algo e não tem coragem.

Se abrir é perigoso, é se desarmar. E se ver frágil ao lado da pessoa com quem divide até a escova de dente é pernicioso. Temos pesadelos que não ousamos nem confessar a nós mesmos.

Sim, o mais velho e ancestral companheiro do homem é o medo da loucura, isso é o que aflige a todos, inclusive a mim, Jack!

Lembro-me do dia que me disse:

─ Você é só mais uma, baby! Não se apaixone por mim!

XXXII

Suas dúvidas me alimentavam e eu já imaginava onde isso tudo ia dar, não sabia o caminho que percorreríamos para isso, mas não poderia ter outro desfecho que não esse.

E quando me dizia que estava com outra mulher, mas não suportava a ideia de eu andar com outros homens, mesmo que isso tenha nos dado mais do que tivéramos até ali. Esse seu machismo desavergonhado, a desculpa perfeita para me fazer ciúmes e me trazer de volta pra casa.

Vejo que meus passos eram e ainda são rumo à autodestruição, muitos tentaram me salvar, mas eu não presto, não presto.

De certa forma me via refletida em seus olhos negros, pedintes, aquele desespero de quem mal sabe dizer que ama e que repele, expulsa e pune quem tenta.

Como meu avô dizia:

─ Venha minha menininha, ver o boi antes dele ir pro abatedouro, espie só o desespero no olho do bicho!

E eu, mesmo sem saber via no olho do boi o meu desespero.

Sou um amontoado de mentiras doces e de realidades desastrosas.

Sou construir, alimentar e depois destruir para viver à míngua, à margem!

XXXIII

Poderia pintar meu mundo todo de vermelho, um vermelho de amor, um vermelho desesperado, num grito de socorro, um vermelho encarnado de desejo e sangue, como se nas paletas não existisse sequer outra cor, mas não esqueço, não aprendo e não perdoo.

Nossas noites eram de febre e loucura, na grande-pequena cidade, ali naquele apartamento onde os letreiros da esquina tingiam nosso quarto de vermelho-neon e como esquecer que o cenário nos fazia querer mais e mais. Penso como nos afastamos tanto, não posso esquecer seus olhos e suas palavras doces em tempos estranhos.

A saudade era imensa, quase insustentável quando saía, as horas passavam lentas e em certos momentos vivia por obrigação, na esperança de vê-lo no próximo barco ou bote salva-vidas no horizonte.Deveria aprender a esperar com suas idas, a chorar sua ausência, a dar valor em sua estada. Mas tenho talento para fazer tudo errado.

E quando pedi para ficar, pela última vez, quando finalmente cedi, quando mais precisei de apoio e proteção e me vi frágil e com medo, você fechou os olhos e caminhou por sete quarteirões, sem ao menos olhar para trás. Abandonei nosso lar e meus sonhos e não culpo nem a mim e nem a você. Mas ainda não aprendi a esquecer, nem tão pouco perdoar.

XXXIV

Somos seres sugestionáveis, escutamos histórias que nos repetem desde a mais remota civilização, somos convencidos que o caminho do meio, nem o esquerdo ou o direito. O morno, nem o quente ou o frio, nem o bom ou o ruim demais, o meio.

Esse é o caminho para o bom cristão, pois a luxúria, a gula, os excessos são pecaminosos e sujos.

O que nos sobra faz falta para alguém, os desperdícios particulares são mínguas alheias, como se isso fosse mesmo verdade.

Por isso não sigo regras, descobri cedo que desmedir os sentimentos e deixar-se à revelia dos excessos é a melhor maneira de se sentir vivo.

Os amantes jovens brincam de esconde-esconde, aquela premissa de correr na frente e se camuflar, para se misturar com a paisagem e não ser encontrado e no fim se atingirem com sustos. Pouco muda durante toda a relação, as confissões de amor desmedido, as pequenas punhaladas que fazem sangrar de alegria e de dor, que trazem dor, culpa e dúvida de sermos merecedores desse sentimento.

Os ciclos viciosos que não se quebram nunca. O eterno esconder, e cada vez mais e cada vez mais nocivamente.

A pessoa com quem dividimos nosso cotidiano é a que mais nos desconhece.

A loucura também nos é desculpa parar fugir de tudo que nos aflige e nos atinge em cheio. Tudo que não se entende ou não quer explicar é loucura.

Quando ganhava a vida nas ruas sabia bem o que era felicidade, era o que dez noites de sexo incessante pudessem comprar, ou o que me sobrasse delas.

O inferno e o céu estão muito próximos em ideologia e nenhum deles nos salva.

XXXV

Aprendi desde muito cedo que ser mulher não era muito bom. Vovô me dizia quatro vezes por dia, cinco vezes por semana:

─ Use seu charme como mulher e enfie a faca como homem!

Essa foi uma lição que me valeu muito!

Mas mesmo assim sou fragilizada pelo sentimentalismo, alimento o querer bem e me dou mal.

Não se gabe por ter salvo minha vida, não foi o único!

Meu avô preservou minha sanidade durante toda a fase mais difícil que vivi e me avisa ao ouvido até hoje quando algo pode me machucar demais.

Você não foi o único, trago uma cicatriz profunda em meu ombro esquerdo, de uma noite marcada com sexo, suor e sangue. Quem salvou-me foi um travesti mais esperto que eu.

Enfim, os homens são mais espertos que as mulheres, mais safos e sinto-me uma tola, traída e salva por eles.

Aliás, acho que as fêmeas não passam de joguete nas mãos masculinas, moeda de troca, de sedução e de poder.

─ Um sorriso por uma moeda! – dizia o vovô.

Aprendi na marra uma lição bem mais perversa e tracei minha vida sobre o inverso do que aprendi.

Quando fiz o caminho contrário ao que meu avô me ensinou quando criança: uma moeda por um sorriso, entendi a essência humana.

Agora é aprender até quando pagar para ver, ou fazer com que paguem para ver. Mas essa não é uma lição tão simples quanto a primeira. Se houvesse um limiar do suportável, como ter consciência de quanta verdade podemos suportar?

XXXVI

Por vezes a solidão é tão acompanhada que me sufoca ainda mais. Estou cercada de estranhos gentis, que a qualquer momento podem se rebelar, tomar meu território, apossarem-se de minhas horas preciosas com assuntos pueris e por fim envenenar meu chá.

O jardineiro lá fora cuida de assassinar as flores que cultivei por anos e ainda me cobra por isso. Penso que se deixasse as trepadeiras tomarem o portão e a fachada da casa o ambiente fosse mais propício ao meu isolamento, uma barreira talvez para olhos curiosos. A faxineira cuida para que tudo permaneça limpo e cheirando à alvejante. A cozinheira prepara quitutes com o mesmo sabor dos de minha mãe, pensar que tive raiva deles quando jovem.

Desaprendi de sentir, desaprendi de amar, as coisas perderam o frescor e o calor de outrora e me sinto cada vez mais entregue ao sentimento da morte. Custa-me envelhecer, encarar meu rosto tão velho no espelho inda reluzente me incomoda, mas não o suficiente para que eu pare de me pentear. As coisas estão sempre frias, Jack!

A sala está vazia e observo todos os objetos em sua harmonia costumeira. Os velhos retratos sobre o piano silencioso, os livros alinhados cada um em sua prateleira lembram replicantes que quase tudo nessa casa tem lugar.

Mas me pergunto por que ainda não encontrei o meu?

XXXVII

Recordo-me que havia uma cisterna nos fundos da casa de meu avô, era um lugar proibido para os menores, tanto que havia uma porta de madeira velha, com dobradiças enferrujadas e um grande cadeado que enlaçava uma grossa corrente, tudo para proteger os mais corajosos do perigo. Meu avô desafiava minha coragem, certo dia me perguntou se eu queria ver uma coisa assustadora, como me cobrava a valentia, nunca soube desviar os olhos ou desistir de seus desafios.

Mesmo me borrando de medo, quis saber do que se tratava, era noite e ele colocou suas botinas de trabalho, atravessamos o jardim de minha avó em silêncio, onde eu costumava passar as tardes mais quentes, meu coração batia tão forte que supunha ouvi-lo dentro de meus ouvidos.

Abriu a velha porta, onde todos os meus medos infantis habitavam, era como se fosse visitar os porões do inferno, num movimento rápido ele lançou à distancia a tampa de madeira que cobria um muro circular de tijolos maciços e me convidou a olhar o fundo.

A luz estava fraca, meu medo pulsava e quase conseguia não ver nada, mas num dado momento ele disse: “só saberá onde é o fundo se abrir bem os olhos e fitar atentamente onde a luz se reflete, ali está a água!”

Mal sabia ele que aquela lição era grandiosa demais para aquela noite, só entendi essa frase quando me vi no fundo do poço.

XXXVIII

Quem dera voltar ao conforto de ser esquecida quantas vezes desejar. No passado, Jack, as coisas eram diferentes, mesmo que quisesse me alcançar não tinha tempo ou espaço para mim, exigiam comportamentos superiores de uma pessoa fraca, que se perdia na ira. Brilhava quando queria sumir, e a vontade de abstrair só tornava a fuga mais difícil, quase impossível, diria.

Perdi o visco e a luminosidade que têm todas as mulheres que amam e são amadas, aquilo que me diferenciava das outras de modo momentâneo e ilusório, vejo várias de mim caminhando, indo as compras e se distraindo com coisas frívolas.

Quem dera tudo tivesse medidas exatas e coerentes, quem dera haver lógica nessas perturbações levianas.

Minhas ostentações se diferem das alheias apenas no teor de volatilidade, nada pode alcançá-las, além do estopim de meus próprios olhos.

XXXIX

O aroma de felicidade senti poucas vezes e com tanta propriedade que o distinguiria ao meio da podridão que vivo.

Sim baby, lembro-me do pequeno frasco que me trouxe de Paris e do meu nariz passeando por minha pele para senti-lo, aspira-lo fundo e permanente, como tudo que me ofertara.

A vida é tão bruta que nos endurece e aprendi a ser forte, não só com os becos, nem com as navalhas, mas com meu avô, por vezes com você. O certo é que essa vadia perfumada nos ludibria e nos deixamos levar por tão pouco, ou apenas pelo faro apurado ou enganado, não sei dizer.

A sensação é que alguns banhos são lentos e outros bentos demais, mas certo mesmo é o cheiro de alívio e volatilidade que trazem os sabonetes de motel e nisso não posso mais me iludir.

Tenho cá pra mim que a felicidade tem cheiro de perfume francês, daqueles que basta uma gota pra se perverter, para se entregar a ela sem visgo e sem pudor. Senti seu cheiro de Minancora e mesmo assim quis me entregar, Jack, mesmo assim quis me entregar!

XL

Prometeu me mostrar todos os lugares que conheceu, me levar a cada um deles, como quem promete o que não pode cumprir e não pôde. Estive sozinha por tanto tempo em nossa relação que me acostumei com a solidão que me impunha e ela se tornou parte de nosso dúbio entendimento. quis me levar para tantos lugares e de certa forma eu preferi ficar do que enfrentar o mundo que se estendia além dos horizontes vastos de meus olhos encarcerados. Talvez fizesse isso por proteção, amar o Kerouac que trazia em mim era infinitamente mais fácil que querer o Jack real, aquele que mal parava em naquele apartamento pequeno e mofado.

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a vida está tão limpa e parada que periga virar criadouro do mosquito da dengue.

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o que importa o que sua boca diz, bocas e palavras mentem para se livrar da culpa, numa tentativa inútil de fazer fardos mais leves. sei que cá em meu desespero sinto apenas solidão e desprezo.

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A verdade é que é tudo muito relativo, baby!

Suas andanças me aguçaram o sentido, todas as suas cartas traziam fragrâncias e olhares diferentes. Cada palavra sua, mesmo que impressa em papel sujo, por vezes salgado trazia um laço, uma linha que nos mantinha unidos de alguma maneira.

O certo é que sei que se foi, pois as cartas pararam de chegar e já não sabia mais a quem recorrer, e essa minha derradeira fala é prova maior de minha desistência, uma tentativa de ter a última palavra.

E nesse ponto mais uma vez estava certo, me sinto reconfortada com a última palavra, tendo a nítida noção que esta jamais chegará até você.

Ao que me lembro era de poucas palavras, embora adorasse escrever-me cartas contando de suas inseguranças e de suas pequenas conquistas e cada porto era uma vitória pessoal, um deslumbramento estrangeiro. No fundo, acho que era isso que admirava em você, a imensa capacidade de se iludir co coisas tolas, mesmo se achando um cético incurável.

A verdade brilha de modos diferentes sob cada prisma, não há como explicar isso, pois o encantamento reside onde as palavras nem sempre podem entrar.

(continua)