Nos 100 anos da morte do primeiro dos Espírito Santo, a jornalista Alexandra Ferreira conta a história do patriarca da única dinastia portuguesa de banqueiros.
Esta é a história de José Maria, batizado sem nome de pai nem de mãe, talvez filho de um conde e de uma criada, mas que cedo decidiu que o seu destino era ele que o traçaria. A história empolgante de um vendedor de lotaria, com um ambicioso plano que o catapulta para a alta-roda financeira. Dois casamentos, muitas infidelidades e 10 filhos, quatro dos quais nunca reconheceu oficialmente, foram o lado mais secreto de 65 anos de uma vida, que termina pouco depois da implantação da república em Portugal. O império de que lançou os alicerces só conheceria o fim em 2014.
O fim do Banco Espírito Santo foi uma das crises mais mediáticas de 2014 em Portugal. Prejuízos astronómicos, irregularidades nas contas, pormenores económicos e financeiros (para os quais infelizmente não tenho os conhecimentos para compreender) que revelaram um Banco absolutamente danificado, corroído, corrupto. "Tóxico".
Atrevo-me a dizer: a situação do BES vem mudar por definitivo o nosso conceito de Banco. A confiança, que já não era muita, é perdida. Hoje, é difícil olharmos para um banco e ver para lá da empresa de corrupção e exploração. Espero que um dia a credibilidade seja recuperada (menos não devemos esperar, quando a sociedade actual depende tanto do seu bom funcionamento).
O Banco Espírito Santo é um caso particularmente interessante por ser um banco de família. Em Portugal, a família Espírito Santo foi a única dinastia financeira existente. Nasceu no século XIX e termina em 2014. O negócio foi sempre gerido pela família, ainda seguindo regras ditadas pelo primeiro patriarca.
A jornalista Alexandra Ferreira conta-nos, neste livro, a história desse homem. A história do primeiro Espírito Santo, do pai desta dinastia única em Portugal. Primeiro de nome (ele próprio inventa o apelido), aquele que ganhou o primeiro tostão que daria os frutos de milhares de milhões que o BES controlou. O início do império.
José Maria Espírito Santo Silva tem uma história bastante obscura, pelo menos na sua juventude. É filho de pais incógnitos, como a certidão de baptismo indica. Há algumas teorias (nomeadamente filho bastardo de um conde e uma criada), mas nada confirmado. A mãe, contudo, parece ser conhecida, até porque José Maria decide repousar, na morte, no mesmo jazigo dessa mulher. "Do nada", conseguiu subir na vida.
Apesar desta emocionante, talvez inspiradora, ascenção do primeiro Espírito
Santo, não acho que haja assim tantos motivos para romantizar a sua
história. Na verdade, José Maria teve acesso a uma educação razoável,
superior àquela que um rapaz de classe baixa teria. Teve a oportunidade
de estudar na área de Economia, o que lhe permitiu trabalhar numa Casa
de Câmbios. De onde vieram os recursos para essa educação, ninguém sabe.
Talvez uma ajuda do tal conde, suposto pai?
A grande aposta de Alexandra Ferreira é a de contar a história não só do primeiro Espírito Santo mas também a de um "homem que traçou o seu próprio destino". É uma estratégia de vendas que para mim, e para quem lê o livro creio eu, não corresponde à realidade objectiva. Não fosse uma educação suficiente, um trabalho relativamente seguro, ter aberto negócio próprio aos 19 anos (com que dinheiros, também é um mistério), as oportunidades de vida de José Maria seriam muito mais limitadas.
Objectivo,
sim, foi a sua sorte ao longo da vida em escapar às grandes crises
económicas pelas quais Portugal passou nesses tempos de fim de Monarquia
e o seu olho para o negócio, sabendo sempre onde devia investir. Era inteligente no que toca a negócios e finanças. Assim
foi acumulando capital, dando aos filhos o suficiente para fundarem o
Banco que hoje conhecemos.
Apesar desta romantização não muito objectiva de Espírito Santo, o livro é uma leitura muito elucidativa. Aliás, a grande valia da leitura é a cobertura tão detalhada e perceptível da História de Portugal e da situação económica do país na segunda metade do séc. XIX, antes da implantação da República. Eu, que sou um apaixonado por História, não podia ficar mais satisfeito
E no entanto, essa cobertura histórica é ao mesmo tempo um grande defeito desta biografia. É que, no fim de contas, grande parte do livro é dedicada à situação financeira do país nessa época, enquanto a história de José Maria Espírito Santo assume um papel secundário. Obviamente que é impossível construir uma bibliografia sem situar a personagem no tempo e no espaço, mas, em vez de termos a história de José Maria, temos uma leitura sobre a História de Portugal nos últimos anos da Monarquia, com participação especial de José Maria. O carácter biográfico do livro é bastante renegado para segundo plano em prol de um pouco de História da Economia Portuguesa. Não é totalmente aborrecido, mas não deixa de estar um pouco em desacordo com a premissa do livro.
Quanto à escrita do livro, vejo-me mais uma vez perante um ponto que é tão forte quanto fraco. Em capítulos pequenos, Alexandra Ferreira oferece-nos sobretudo uma leitura muito rápida e nunca aborrecida. Por outro lado, fá-lo numa voz pouco fluida, num aparente esforço em elaborar a escrita. O que não a torna necessariamente melhor.
Alexandra Ferreira constrói a sua escrita com inúmeros cruzamentos, desprezando frequentemente a narrativa linear. Ora fala de 1890, ora volta para 1860, ora fala dos sócios, ora dos diferentes negócios nos quais José Maria "mergulhou", e faz esses saltos mesmo ao longo de um mesmo capítulo. Por um lado, há uma preocupação em tornar a leitura o mais acessível possível, e devo dizê-lo que o consegue! A veia jornalística de Alexandra Ferreira é notória, e muito bem empregue. Mas também parece tentar "injectar" uma voz "mais literária" com o recurso a inúmeras referências por vezes deslocadas no tempo e no espaço, o que na minha leitura nem sempre foi agradável. Um pouco irritante aliás. Por um lado, compreendo que foi a melhor atitude que a autora encontrou neste compromisso de contar a história do primeiro Espírito Santo e aliá-la a uma grande lição de História. Por outro, um bom livro não precisa de uma escrita muito trabalhada. Por vezes a linguagem mais simples, sem pretensões de "qualidade literária", é mesmo a mais acertada.
Para terminar, faltaram mais imagens. Existem algumas, mas poucas. Gostava de ver um livro mais recheado, com mais fotografias da época, das ruas que José Maria pisou, de mais documentos, mais registos visuais. Mas isso é um capricho pessoal, e que não afecta de todo a qualidade do livro.
Não parece, portanto, haver uma característica deste livro que seja verdadeiramente sólida. Nenhum ponto que eu consiga elogiar sem criticar. O que não significa que o livro não seja bom! Aliás, fiquei bastante agradado por ser uma leitura fácil e com muito pormenor histórico.
Foi uma leitura que apreciei bastante, sobretudo por ser tão rápida e educativa. Mais do que isso, vejo-me a aconselhar o livro a várias pessoas, o que é bastante surpreendente com um livro não tão marcante. Aconselho-o tanto sobretudo por ser uma tão boa lição sobre crises financeiras, e uma reflexão muito oportuna sobre a situação do nosso país e economia (que, em boa verdade, não é muito diferente do que era no séc. XIX). Bom ou mau, relevante ou não, é uma leitura bastante oportuna hoje, e por isso recomendável.
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