Recuperei hoje um disco externo que julgava perdido e achei lá vários textos de vário género e feitio que não armazenava em mais nenhum lugar. Aqui deixo três, o esboço de um poema, um esboço para um pequeno ensaio de estética e uma crónica sobre os meus rubicundos preconceitos:
CORPOS NO VERÃO, CORVOS NO INVERNO
1
Imaginemos-te empenhado num duelo de esgrima. Se no tinir das espadas te assalta a dúvida sobre se terás nessa manhã, antes de saíres de casa, regado as begónias, a resposta não chegará a tempo de impedir o ferro de te atravessar as tripas.
Tantas coisas que te atormentam são só a montanha russa com que os teus fantasmas se divertem, aqueles que existem porque tu insistes em familiarizar o mundo com a tua irrealidade, em achar no vento uma cabeça
onde possas encaixar o teu chapéu cónico de palhaço rico.
2
A brecha entre as nuvens,
duas brechas entre nuvens,
o azul que flui pleno como um cetáceo
uma nuvem isolada e a esgarçar-se
grisalha como uma lágrima:
tantos adereços que o tempo
mobiliza para ser.
3
Corpos de verão, corvos de inverno:
só o ar admite a corporeidade.
Entretanto, o pior de tudo
é não habitar num mundo físico.
Cresce a árvore
para o laço
em que se enforca?
PEQUENO TRATADO SOBRE O (MEU) RACISMO
Vomito os dejectos, o muco, as excrescências que o meu organismo fabrica, incapaz de evadir-se a pensar: "a grunhisse deste gajo!", ou de atentar na melancólica estupidez de outro.
Que os menos estultos me perdoem, até porque aceito a intrusão destas manobras com resignação. Não com essa comiseração que aveluda os passos dos mais cristãos, mas como espinhos que assinalo mas não perco tempo a pisar. Embora peça a Deus ou à entidade supranumerária que rege os atropelos humanos que não me abstenha nunca de manter esta vigilância sobre os empedecidos.
O meu racismo não se dirige à cor da pele. Aí estou bem com o mundo. Quem me vê no chapa sabe que eu passo a vida a cantar, que tenho as glotes inflamadas de tanta cantoria, sendo-me igual a cor dos meus parceiros de infortúnio.
Era num pardieiro que se representavam as peças de Shakespeare, ponto. O que me atormenta é que na época toda a gente as percebia e hoje os senhores editores dos jornais as achem peças de relojoaria para mentes eruditas.
A estupidez que os embaça é que me embaraça. Foi essa a maior lição da minha infância: nenhum bicho de seda degenera em verme atolado pelo peso dos seus excrementos. A maleita que os atinge transforma-os em borboletas. É-me inatingível que possa entre os homens ser desigual.
Aquilo que mata a humanidade é o seu apego à estupidez e ao comezinho gosto que faz das tripas uma gala. Nada me move contra as tripas à moda do Porto e um bom resmoneio intestinal ou um flato seguro de si, largado na hora certa, soam-me a carrilhões de Mafra.
O que me arrasa os nervos é as pessoas agarrarem-se a essa parte de si, a esse efeito, como se se tratasse do todo – essa desistência volver marca de identificação.
Continuo a invejar a graça com que o meu amigo de infância enchia os baldes de água em proporções variáveis e depois baixava as calças para, numa flatulência corrigida pela melomania, tocar os primeiros acordes do Danúbio Azul. O que se me antolha, pecaminoso, é que aos 50 anos esse truque delicioso seja a única coisa que o distingue, incapaz de ler um haiku ou de discutir comigo a luminosidade de uma peça de Koltés.
Ele não se interessa!
São poucos os que realmente se interessam! Por exemplo, toda a gente se interessa, mas, ah, a tenacidade com que os leitores de poesia não compram os livros!
Tornemo-nos prontamente racistas para com os medíocres! Merdre!
Igualmente, me enfadam de morte os melancólicos. Os faustosamente melancólicos que me perdoem, mas alegria é fundamental!
Julgo, como o Christian Bobin, que a melancolia é um dos pecados capitais!
Nenhum bebé ressuma melancolia. Mesmo Idjha, de O Inquebrável, que nasceu com os quatro membros partidos não tinha pingo de melancolia, era antes de um furor inabalavelmente ressentido. Troco um melancólico por dez ressentidos.
Há que resgatar a paisagem dos melancólicos!
Estou farto de paisagens melancólicas, de temperamentos melancólicos, das capas melancólicas da Assírio & Alvim (mudem uma vez na vida, rapazes), das capas da ECM, da onda que atingiu a poesia e que me faz lembrar um juízo de Beckett sobre um livro de poesia que lhe fora apresentado: é muito bom, mas plat (liso)!
Há sete anos que saí do país, e de cada vez que volto há um cemitério novo no lugar de um amigo, uma incombustível falta de tempo para tudo (só o tempo é combustível, não é?), um rameloso espectro que com voz cavernosa me anuncia: esta merda está uma caos, não voltes!
O drama é que está uma merda por todos os lugares, merdre! Mas que me atordoa o sentimento de que a culpa é nossa e não fazemos o bastante.
Eu não fiz o bastante para sacudir à minha volta o esterco – merdre!
Assim que for primeiro-ministro despeço-me, de panhonhas tou eu farto!
Que má raça a minha!
Eu sei, já editei. Já enterrei o dinheirinho neles! Nos livros.
Tenho sido um sucesso de estima. Estou com o lombinho cheio de pancadinhas nas costas. Não vendo um livrinho. E agora as editoras de poesia publicam: cem livros. Ou já não há economia de escala, ou à frente das mesmas só estão insensatos. Não sei se me consola saber que a coisa não é só económica: há caroços de azeitonas que medram e outros não. Bons caroços passam-nos às vezes ao lado da vista.
Há que aceitar que às vezes o fluxo das dinâmicas sociais não nos abarca.
Falo da estupidez que era previsível mas não era inevitável. Da preguiça que torna xistoso o cérebro, da suficiência – é um exemplo – com que os jornalistas se agarram aos factos para lerem o mundo como uma panela de pressão de que eles só descrevem o apito; afadigados a demonstrarem o seu perpétuo descomprometimento.
Merda para a imparcialidade dos jornalistas, merda para o bom gosto com que se entregaram à tarefa de demonstrar que o mundo se descreve mas não se transforma!
Fiz parte de um descoordenado júri para avaliação de candidatos ao ramo de encenação, num curso de teatro. Sugeri a todos: dão-te um palco, um surdo e um telefone: que tipo de peça fazes? Votei naquele que respondeu imediatamente, «…substituía o telefone por um atendedor de chamadas e fazia uma comédia política. É essa a condição do político, continuou, estar surdo à realidade, por isso se ouvirmos os incessantes apelos da ou à realidade que lhe chegam de fora e as soluções que a sua bondade congemina, os seus planos de acção, o contraste não pode ser maior…».
Esta capacidade de improviso, esta capacidade de relacionar tudo com tudo, esta imaginação - eis que devia ser exigível a cada jornalista e não a circunspecção com que lê como um dactilógrafo o teleponto ou que faz copy/past para nos embuchar de notícias.
Merda para os conteúdos que não nos comprometem.
Merda para a abjecção de aceitar como lobo o destino do homem.
MERDRE, diria o Jarry.
Eu nasci para tropeçar milhentas vezes até me pôr em pé. As cicatrizes das minhas quedas são as escamas das minhas asas de mariposa!
O resto é a abominável bondade com fui resvalando para a mentira, a facilidade com que fui deixando que apodrecesse tudo à minha volta porque me esqueci do primeiro lema para a potabilidade do homem: Nenhum medíocre é inocente!
Tornemo-nos prontamente racistas para com os medíocres! Merdre!
Igualmente, me enfadam de morte os melancólicos. Os faustosamente melancólicos que me perdoem, mas alegria é fundamental!
Julgo, como o Christian Bobin, que a melancolia é um dos pecados capitais!
Nenhum bebé ressuma melancolia. Mesmo Idjha, de O Inquebrável, que nasceu com os quatro membros partidos não tinha pingo de melancolia, era antes de um furor inabalavelmente ressentido. Troco um melancólico por dez ressentidos.
Há que resgatar a paisagem dos melancólicos!
Estou farto de paisagens melancólicas, de temperamentos melancólicos, das capas melancólicas da Assírio & Alvim (mudem uma vez na vida, rapazes), das capas da ECM, da onda que atingiu a poesia e que me faz lembrar um juízo de Beckett sobre um livro de poesia que lhe fora apresentado: é muito bom, mas plat (liso)!
Há sete anos que saí do país, e de cada vez que volto há um cemitério novo no lugar de um amigo, uma incombustível falta de tempo para tudo (só o tempo é combustível, não é?), um rameloso espectro que com voz cavernosa me anuncia: esta merda está uma caos, não voltes!
O drama é que está uma merda por todos os lugares, merdre! Mas que me atordoa o sentimento de que a culpa é nossa e não fazemos o bastante.
Eu não fiz o bastante para sacudir à minha volta o esterco – merdre!
Assim que for primeiro-ministro despeço-me, de panhonhas tou eu farto!
Que má raça a minha!
O PORO NO CIRCUITO
O actor na actuação abre o circuito, o Poro, por onde passa «o afecto», esse elo que o torna indiviso consigo (porque está presente a si) e com os outros.
É como no símbolo que tem duas metades que é preciso reunir para que se cumpra e reactive. Só "dando" a sua metade se completa o circuito e se conecta a energia da sincronicidade: aí reactiva-se a revivescência.
A revivescência do afecto, isto é a cadeia da sincronicidade que activa:
A presença de si para os outros
A presença dos outros num jogo que os torna participantes do uno, isto é conectados a si e aos outros simultaneamente.
Esta revivescência colectiva não se confunde com a revivescência em Stanilawski porque esta é redutora, no sentido em que a dimensão psicológica só serve ao actor separadamente e não o habilita a abrir o circuito, o Poro; é como meio passo, falta-lhe a outra perna para a simultaneidade;
só quando muda a representação em dança, ou seja na passagem duma memória reactiva da emoção para o nascimento de um outro gesto e de um outro ritmo apoiados no agora da sincronicidade, é que a comunicação se torna expressiva.
Um peixe não se identifica consigo mas com o cardume, é o que dá simultaneidade de movimentos ao cardume. O processo do actor deve ser o mesmo: abrir-se ao circuito do afecto que é o ser-por-conectação-ao "indivisivo plural" que é o colectivo.
Representar é, paradoxalmente, abandonar todos os nós da interpretação (ainda apegada à memória) para abrir o circuito dum Poro (um instante onde se dilui a separação entre fora e dentro) onde o actor está indiviso em si e simultaneamente tecido com os outros; aí desencadeia-se outro tempo, o "pulsar" a que aludia Grotowski.
Para a compreensão desta qualidade de ser indiviso é que se coloca a pertinência de associar o teatro ao ritual.
Passando do teatro para a ontologia.
No quotidiano, na vida, a maior dificuldade está em falarmos com "os vivos", a partir do agora, do estar-aqui. Somos condicionados para
projectar modelos pré-fabricados sobre os acontecimentos, o que nos obstrui os Poros
anular o presente com as expectativas quanto ao futuro
cair na armadilha de substituir a tríada: instante (a intensidade)-agora (o eterno presente)-incondicionado (a duração), pelo passado-presente-futuro
Para Platão o tempo era o que se tornava visível quando o infinito se movimentava, o que está nos antípodas da dualidade finito-infinito que se veio a instalar no pensamento conceptual posterior.
O Tempo é a deslocação do infinito a correr os cem metros e não a unidade de medida mecânica que permitiu a construção dos relógios. Por isso o tempo psicológico sai dos bordos da medida mecânica: é um entrosamento do vivido e não algo objectual, fora de nós.
Ao desconectarmo-nos com essa qualidade do tempo vivido perdemos a capacidade de ler as sincronicidades e ficamos exilados do "agora". Daí que os budistas refiram que o estado búdico é vivenciar a cartografia do agora, reactualizar o agora, estar indiviso. Eu quando como como, quando bebe bebo, quando pinto pinto, quando fodo fodo, respondeu um monge budista quando lhe perguntaram o segredo para ter atingido a beatitude.
Nós somos criaturas permanentemente despejados do agora, devoradas por fantasmas e representações; dominadas pela comunicação reactiva do alter-ego, divididos pelas solicitações com que os simulacros do desejo nos confundem, manietadas a um ponto que perdemos o contacto com o fluxo profundo da nossa natureza indivisa.
Grotowski dizia que para "representar" basta deixar de representar, ou seja, que há um descasque fenomenológico a fazer para nos restituirmos à unidade.
O papel nefasto da comunicação instrumental, a função dos fantasmas e dos mortos, é dividir-nos, afastar-nos do afecto que nos reconduz à experiência do indiviso.
O papel da arte, o trabalho da expressão criativa, é a tentativa de absorver a realidade de todos os seus lados, abrindo-lhe um Poro por onde volte a passar o afecto, o elo que re-liga, como nos símbolos.
Por isso a Poesia, ou o Teatro, não são uma fuga da realidade mas uma fuga para a realidade, como dizia Mário Quintana