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domingo, 28 de setembro de 2014

DUAS NOTAS DE DOMINGO PARA A AMNÉSIA GLOBAL TRANSITÓRIA

                                                                     inge morath



 Com insistência se propõe – Holderlin, Baudelaire, Eluard, Gonzalo Rojas, Adonis ou Bachelard, por exemplo – que a pátria do poeta é a sua infância. E que os nossos devaneios infantis se reactualizam na poesia. No meu caso, tenho as maiores dúvidas, da infância só aproveitei o mecanismo, o devaneio de criança isolada, ao ponto de se ter tornado quase um tique com contornos patológicos, mas sou pouco saudoso da infância.
Esse meu estádio de vida foi completamente saturado de burburinhos e acontecimentos, no seio de uma família intranquila, eivada de desequilíbrios relacionais e de muitas instabilidades na pauta emotiva, e isso, que me deu um volume de “informações” a granel que levei décadas a processar e converter em algo potável, arrastava-me num estado de estupor prolongado que não me foi nada favorável. 
Descobri a literatura como um instrumento para a resiliência, como o outro lado do espelho. Por isso dediquei cinco anos da minha vida e dois livros a reinventar a infância, mas senti-la como a minha pátria é uma descarga que não me cabe.
O comum das infâncias é carenciado, falho disto ou daquilo, sacudido por medos, espectativas e traumas, e lança a criança num sentimento de incompletude inevitável, mas ver na arte ou na poesia uma sua projecção simétrica implica esquecer que, no trajecto, essa “vivência de mutilações” conheceu conversões e transformações, e que o adulto é já uma liga onde as reversões da memória geraram um novo impulso que nem sempre coincide com uma re-actualização do vivido.  
Há, contudo, uma tese de Bachelard que me agrada, quando ele escreve, “A solidão do menino é mais secreta que a solidão do homem… e o menino sonhador conhece o devaneio cósmico, o que nos une ao mundo…”. Gosto muito desta ideia do devaneio cósmico, que eu leio como uma transpessoalidade, embora seja redutor assumi-la como uma reminiscência da infância… Se o primeiro contacto com tal “estado de abertura” da percepção pode, de facto, suceder-se na infância, porém, quando ela se repete no homem, e este tem a felicidade, rara, de viver um igual sentimento de indivisibilidade, vê convergirem na sua consciência um feixe de unidades de muito maior amplitude - na mesma proporção com que uma asfixia momentânea se separa do primeiro golfo de ar.
Ou seja, não localizo na infância, nem qualquer pátria, nem qualquer paraíso perdido. 


Para o chileno Gonzalo Rojas o exercício poético não se funda tanto num projecto de invenção como num mecanismo de resgate, ideia estimável mas a verdade está no meio, como o sabia Baudelaire, para quem uma obra devia ser feita de metade de novidade e de metade de eternidade (isto é, de tradição – um coisa no oposto de ser “tradicional”), radicando então a originalidade na morfologia da sua capacidade combinatória.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

DE ADONIS: UM CHEIRINHO



Um dos projectos que desenvolverei nos próximos tempos é uma (duas?) antologia de poesia africana. Do Magrebe à África do Sul. Por isso em algumas navegações na net deparei com um número da Courrier, da Unesco, com um entrevista a Tahar Ben Jelloun, que será um dos poetas que traduzirei. Mas o que li surpreendeu-me. Dizia ele, a propósito de grandes nomes da poesia árabe, que não aderia muito à poesia de Adonis, sírio, porque lhe parecia demasiado racional. Os homens nunca deixarão de me espantar. Seremos sempre os literatos de alguém, de vera incandescência romântica.

Bom, de Adonis recebi, por mão amiga, a antologia que dele saiu no Brasil, traduzida por Michel Sleiman (Companhia das Letras, 2012), que achei boa. Adonis, de quem tenho, felizmente, vários volumes, foi sempre um poeta que quis traduzir. Enquanto não o faço aqui deponho fragmentos e alguns poemas provindos desta antologia brasileira.

Atentem na extraordinária Celebração de Beirute, 1982.

Entretanto, para quem ainda não tiver percebido que, apesar dos media e da internet,  existem vários mundos de facto diferentíssimos, e como a queda da Europa pode trazer-nos (a todos) mais dissabores do que aleluias, transcrevo o que aconteceu a Adonis em Amã, em 1990, durante uma celebração duma Intifada palestina, onde leu um poema: «foi acusado por estudantes universitários de cometer blasfémia ao ler os versos “não sabe que deus e o poeta /são dois meninos e dormem na face das pedras”». E dali saiu vivo por pouco.

 
                                       (fragmento)

Nasci e nasceu comigo o deus do amor
- que fará o amor quando eu me for?

 

 CANÇÕES PARA A MORTE

1

 
A morte quando passa por mim é como se
o silêncio a abafasse
é como se dormisse quando eu dormisse.

 
2

Ó mãos da morte, alonguem meu caminho
meu coração é presa do desconhecido,

alonguem meu caminho

quem sabe descubro a essência do impossível

e vejo o mundo ao meu redor.

 

 
CAMINHO

Caminho e atrás de mim caminham as estrelas
até seu próximo amanhã

o segredo, a morte, o que nasce, o cansaço

amortecem meus passos, avivam meu sangue.

 
Não iniciei a trilha, ainda

não vejo nenhum jazigo

caminho até mim mesmo, até

meu próximo amanhã

caminho e atrás de mim caminham as estrelas.

 

ESPELHO DO SÉCULO XX

Caixão revestido com rosto de menino
livro escrito nas entranhas de um corvo

fera que avança levando uma flor

rocha que respira nos pulmões de um louco

assim é

o século xx.

 
CELEBRAÇÃO DE BEIRUTE, 1982

 
O tempo avança,

na mão um cajado de ossos.

 
A lâmina da insónia
marca o pescoço da noite.

 
Crânios – uns servem sangue
outros se embriagam e deliram.

 
O fogo se suja?

O vento se infla?

 
Fumaça é nuvens.

Nuvens com a forma de cabeças.

 
Letras caídas

são impressões dispersas no chão

- pedaços de corpos.

 
Hoje o horizonte recomendou a seu filho

o vento que não saísse.

 
Como não se cansam as pedras do caminho?




Nem mesmo o sol consegue

iluminar este corpo que sangra sombra.

 
Dias cobertos de pó

têm feições de velhos.

 
Mariposas queimam

subindo a escada do sono.

 
A cinza, princesa,

toma assento e recebe as honras.

 
O míssil, rei,

arrasta a cauda

sobre os corpos dos súbditos.

 
Será a vida um erro

que a matança corrige?

 
Onde está a cova aberta para acolher as lágrimas?

e o buraco que acolherá a alma?

 
A coisa elimina a coisa.

 
Não terá outro seio´

este céu?

 
Esta rosa, de onde lhe vem tanta obstinação?

Está sempre lendo seu amor.

 
O dia tem medo do dia

e a noite se esconde da noite.

 
Agradeço

ao pó que se mistura com a fumaça e a abranda,

ao intervalo entre uma bomba e outra,

ao piso que sempre aguenta meus passos,

agradeço às pedras que ensinam a paciência.

 
Apagou-se a luz.

vou acender a estrela dos meus sonhos.

 
Leva-me, amor,

e me mantém trancado.

 


GUIA PARA VIAJAR PELAS FLORESTAS DO SENTIDO

                                                                      (fragmento)

 

 

O que é a árvore?
           lagoa verde cujas ondas são o vento.

 

O que é o vento?
            alma que não quer
            habitar o corpo.

       

 

O que é a onda?
           imagens em movimento
           na tela do mar.

 

O que é a praia?
           travesseiro para descanso da onda.

 

O que é o negrume?
             útero grávido de sol.

 

O que é a lágrima?
            guerra perdida pelo corpo.

 

O que é o leito?
           noite dentro da noite.

 

O que é o absoluto?
            mênstruo na cabeça.

 

O que é a história?
            cego a tocar tambor.

 
O que é a criação?

           selo na mão da coincidência.

 

O que é o abraço?
           terceiro de dois.