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quinta-feira, 17 de março de 2011

OS CANÁRIOS DE CHERNOBYL/ homenagem a Anthony Quinn


Anthony Quinn foi grande emissário  dos «zês» na Terra: de zampanò a zorba. Por isso criei este papel para ele. 

OS CANÁRIOS DE CHERNOBYL
Naquele Inverno, via-os quase diariamente no ferry. Os dois cegos mais o filho, um rapaz de doze, treze, anos que os guiava. Faziam a ronda dos passageiros pelas cabinas e depois, mesmo que o céu estivesse carregado de nuvens, quedavam-se lá fora, entre a última fila de carros e o castelo da proa, conversando com gestos largos, acenos, numa sarabanda.
Já reparara neles, mas nunca a curiosidade me fizera levantar do lugar para os ir ouvir, apesar da evidente teatralidade que os rodeava. Não no momento de pedir. Aí, como Agatão, o padre do deserto, bochechavam pedras na boca no fito de inibirem a mais curta sílaba, e era o rapaz quem instigava à esmola. Mas, assim que se isolavam, o seu laconismo volvia loquacidade e mesmo à distância era nítido que conversavam bastante, o que a mímica sublinhava.
Nos olhos da senhora, uma quarentona, loura, de uma palidez marmórea, e vagamente parecida com a Faye Dunaway, uma membrana branca velava as íris, que à transparência lembravam luas novas. Os olhos do homem ofereciam pelo seu lado um vislumbre infernal, a varicela que lhe esburacara as faces estendera-se às escleróticas: pareciam bicadas por canários. Por seu turno, o filho, via perfeitamente; era o “canito” deles, como alguém me disse ter ouvido o pai referir-se-lhe.

Naquele dia chovia a potes e o rio esbracejava em vagas largas, que faziam o ferry inclinar-se, ensombrando os olhares. A chuva impedira-os de se isolarem, lá fora. Haviam descido à cabina da popa, que ficava ao nível da água, onde, por isso, se sente com menor incómodo o bater da água no casco.
O homem estava, apesar da cabina estar à pinha, particularmente falador e elevava a sua voz sem embaraços. Dizia ao filho:
- Esta parte do navio é como o rabo grande de uma preta, sente menos os golpes do vento.
- Não há nenhuma preta, por aqui… - Perguntava receosa a mãe, ao filho.
- Não, mãe.
E riam.
- O pai, já viu o rabo de uma preta? - Volveu o rapaz.
- Já apalpei.
Em redor, os risos começaram a ser sufocados.
- Aldra… - Dizia a mãe.
- Então não tenho aquele filho em Angola?
- Dizem, nunca vi
- É natural… - Replicava ele, com bonomia.
A boa disposição alastrava aos restantes passageiros. Atrás de mim, duas velhotas comentavam:
- É bonito ver a boa disposição desta gente!
- Ó mulher, pois não somos todos filhos de Deus?
- Se me contassem não acreditava!
- Hei-de dar-lhes esmola, ainda há bocado passou-me!
Os cegos voltavam à carga:
- Chove mesmo! - Exclamou o homem.
- Eu bem te disse para trazeres a boina.
- Também, a boina, de que é que me servia? Assim livro-me da piolhada!
- Olha o que dizes… - Censurava ela, incomodada.
- Quê, e o miúdo não é ranhoso, não? Então, por que andamos a pedir?
A cabina já ria, solta.
- Acha que volte a estender a lata? – Perguntou o filho.
- Olha, à beira do fim do mundo quem quer ficar com as moedinhas que tem? Vai lá, filho.
Uma nova vaga sacudiu o ferry e encheu de respingos as janelas. As pessoas mantinham-se numa circunspecção que apenas o espectáculo dos cegos amenizava. A colheita foi generosa.
- Vês miúdo… - Dizia o pai, abanando a lata – como nem todas as tempestades são ruins? – E sugeriu, continuando a abanar a lata - Olha filho, dança!
Chocalhava a lata e o miúdo agitava-se numa simulação de sapateado, que a mãe acompanhava com as mãos.
- Isso filho… - Instigava o pai – que foi a última coisa que vi, um filme com o Fred Astaire.
O navio abrandou e começou a procurar a corrente favorável à atracagem. E as pessoas recolheram ao silêncio, na expectativa da chegada.
Uma senhora levantou do chão um saco de papel grande, de oferta, que colocou entre as pernas e neste acto o saco rangeu.
- Vi sacos destes em Guimarães… - Disse o homem, perguntando ao miúdo – É da Zara?
- É sim, pai?
- E de que cor é? Verde?
O miúdo olhou o saco vermelho e respondeu:
- É amarelo! 
 
A Primavera chegou. Estive um mês em Milão, numa reportagem que me fez perceber como na estranja opulenta há bolsas sujeitas a muito açoite, nos desvãos da miséria. E voltei a frequentar o ferry.
Saía combalido da casa de banho do navio para onde me atirara a açorda de marisco da véspera, e procurava poiso quando os vi, pela janela: os cegos dobravam uma carrinha diesel rumo ao seu poiso habitual, esgotada a ronda. O incómodo das tripas não me puxava a sentar-me e acicatado pela curiosidade resolvi aproximar-me deles, seguir-lhes o fio da conversa.
O céu estava limpo, mas o ar soltava-se em rajadas que fustigava os cabelos. Suportavam-nas como se estivessem na primeira fila de uma peça de teatro que há anos desejassem assistir.
- Este vento está frio… - Queixava-se ela.
- Enrija… - Dizia o homem.
- O teu pai sempre gostou do vento? – Explica ela, ao filho.
- É verdade filho, sabes porquê, são os canários de Chernobyl…
- Que é isso, pai?
- Espera… que vem ali à esquerda? - Apontava para lá da proa, para um grande petroleiro que avança ronceiro, a 30 metros do ferry.
- É um cargueiro.
- Tens a certeza?
- Sim… - Repetia o rapaz.
- Está pintado de quê, vermelho?
O petroleiro tinha uma banda vermelha ao longo do casco, como se fosse um cinto.
- É azul…- Garantia o adolescente, dirigindo-me um sorriso matreiro – Mas porquê canários de Chernobyl?
- Daquele desastre nuclear lá na Rússia, não te lembras? Na central nuclear. Todos os canários da região perderam a voz, desde aí só sopram.
- Aldra! – Retorquia o rapaz.
- Estou-te a dizer filho! 
- O pai diz sempre essas coisas!
- Um pai nunca mente a um filho.
- Isso é, se não for cego!
- Ninguém é cego filho, não há aqui ninguém cego!
- Pois não! – Repetia sardónico o rapaz.
- Pois não… - Sublinhava o Pai – simplesmente, nós vivemos num mundo em que Deus não olhas as coisas como são mas como eram. Por isso é que para Deus é sempre Verão.
- O teu pai sabe… - Reforçava a mãe.
A sirene do petroleiro vermelho troou, quebrando o crocito das gaivotas.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A CARGA DO CASTING LIGEIRO/Walter Matthau

Escrevi alguns contos ligando-os a alguns dos meus actores favoritos, gozando o prato enquanto os imaginava a protagonizar a acção. Aqui vai o primeiro: uma elegia para Walter Matthau, o actor que eu gostaria de ter sido. 

HÉRCULE VOLTOU
para a Susana Sousa Dias e o Ansgar

Lembra-se: os seios dela estenderam as suas pálpebras até ele, mirando-o, numa langue intersecção inteligente. Numa esplanada do Rossio, em Lisboa, onde se encontravam os dois em turismo.
As mãos tremem-lhe ao lembrar-se. Pode ser de não ter tomado o comprimido para a tensão. Mas naquele momento sente nas palmas a tepidez dos seios. O sinal no pescoço veio depois. O torção nos lábios, quando os seus dentes puxavam, foi depois. E o modo de enrolar as frases, de as tornar sonolentas idem. Até a dizer sim na igreja fez do éme uma onda que não cessava de rebentar.

Raoul gosta de estar assim no alpendre, a lembrar-se, como quem recorda, os hábitos são assim mesmo. O silêncio de Hércule fá-lo levantar-se. Está praticamente cego, de olhos opacos, desprendidos, o cão, e agora deu-lhe para ficar mudo. Volta a chamá-lo. O animal mantém-se na sombra, escarvado o focinho no silêncio. Merda. Já foi uma boa companhia. Hércule, repete. Hércule, barata velha, anda cá. Levanta-se do cadeirão. Há um contorno, um arco que se desfaz noutro, a curva do dorso e a cauda, inerte. Pontapeia-o, meigamente, num aceno. O cão não desmancha a simetria. Está morto.

É uma visão estranha, a cabeça do cão a sair da gola da samarra do seu filho, que morreu de escarlatina. Há mais de trinta anos que aquilo criava mofo, dentro do baú. Tinha o miúdo nove anos, quando tropeçou no safanão final. A mãe nunca mais recuperou, vinte anos de electrocussão no pranto. Até que de tanto cismar no escuro se fundiu a lâmpada.
Pensando bem, nunca foi grande mulher. Nunca à altura dos seios, risonhos, enfeitiçados. Isso e a dicção eram coisas à parte do corpo, dos olhos, tristonhos. Levou anos intrigado, sem perceber porque é que os seios dela e o corpo não eram um. Mas veio o miúdo e a ternura dela ajudou-o a esquecer que ela se entregava ao prazer como quem distribui cabides num guarda-fato. Um dia apagou-se, cinco anos antes de Raoul aplicar as economias na compra daquela moradia, num condomínio privado. O Hércule (foi ela quem lhe deu o nome) foi a última coisa a que se devotou, entre os chás de camomila e os bolinhos de canela. 
O casaco de samarra ao menos volta a aquecer um corpo, mesmo que frio como a acha de lenha a que chegou neve. Ou até por isso. E o Artur havia de ter gostado do Hércule, havia de preferir esse destino para a sua samarra ao da traça e da naftalina.

Meteu o cadáver dentro dum saco de cabedal, correu o fecho éclair. Foi à garagem buscar uma pá. Ofegou duas vezes quando pegou na ferramenta. Raoul estava num desses períodos em que a energia se coagula de cima para baixo e incha os pés e não estava disposto a uma grande caminhada. Havia só que encontrar uma árvore. As árvores. Que pena não ladrarem. Mas algumas têm sombras iracundas, estremes, aflitivas. Tinha que pensar em que tipo de sombra enterrar Hércule.

Dez minutos depois de sair de casa, estacou e olhou em volta, perplexo: não havia árvores no condomínio em que vivia. Nunca tinha dado conta. Ou não lembrava. Moitas sim, arbustos vários, árvores nenhuma. A cabeça arrepia-se com as coisas a que não prestou atenção. Anos e anos de desatenção não tornam a vida irrelevante? Raoul saiu do condomínio de olhos desorbitados para dentro.
Apanhou o autocarro para o parque Municipal. Um mês antes dela se apagar, participaram duma marcha no parque e dum piquenique com centenas de sexagenários. Raoul recorda como chegou a casa enjoado com tanta face enrugada, como se tivesse navegado no alto mar. Nunca mais voltou.

O parque parece-lhe agora maior que antes. Podem as coisas na velhice aumentar e encolher como na infância? Estranhamente, o saco já não lhe pesa, desde que franqueou o portão, como se na última morada as coisas perdessem o peso.
Sem dar-se conta galgou as alamedas do parque, infiltrou-se na mata, o corpo animado pelo ruge-ruge das folhas. É Outono e as árvores parecem-lhe todas esgarçadas, pouco acolhedoras. Árvores de cabelo em pé. A meio do trajecto vem-lhe à cabeça a espinha que o veterinário extraíra da garganta de Hércule e a sua rudeza com a vizinha, viúva, quando ela se queixou de que o cão entrava pela janela e ia comer os peixes ao aquário da sua sala. Os três impropérios mal medidos esburgaram as esperanças que ele entrevira no sorriso dela, na festa do Clube, o maldito cão condenara-o à solidão. Quem ia adivinhar que o cão gostava de peixe? O melhor era enterrá-lo em qualquer árvore.

Que árvore seria aquela ao lado do banco? Era ideal, abria o buraco e depois podia sentar-se. Mas que árvore era aquela? Olhou em volta, atenta, demoradamente. Apercebe-se que não sabe nomear nenhuma das árvores, não conhece o nome de nenhuma delas. Aponta-as e à frente do dedo estendem-se clareiras. Depois da sua morte nem o nome delas terá para as recordar. Santo Deus, ainda há pouco lhe pareciam tão diferentes, no porte, no recorte, tão distintas umas das outras, é da sua vista ou agora assemelham-se todas? Senta-se no banco. Esfrega de novo os olhos. Já soube o nome dalgumas daquelas árvores, tudo lhe foge. Não demorará muito esfregará os olhos e olhará depois as mãos espantado, interrogando-se de quem serão aquelas mãos. Anos e anos de desatenção não tornam a vida irrelevante? Cai-lhe o pranto, como uma cortina. Chora, sentado no banco, a cabeça entre as mãos, deixando de ver, as lágrimas a debulharem anos e anos de catadura e má-disposição, o saco de cabedal ao seu lado. Horas a fio.

Quem é o homem que se senta ao seu lado, lhe mete a mão no ombro, em consolo, e lhe dirige palavras brandas, reconfortadoras? Um homem ainda novo, que lhe empresta um lenço, um rosto límpido. O que ele diz, Raoul nem escuta bem, a compulsão das lágrimas deixou-o meio surdo. Raoul vai deixando que as lágrimas se enxuguem no seu peito, no seu nariz ranhoso, nas comissuras dos lábios, quase afogadas no choro. A pouco e pouco, o peso daquela mão de dedos compridos, raniculosos, no seu ombro alivia-o. Num último suspiro, Raoul pensa, Hei-de pagar-lhe um cafezinho.

Espere… - as palavras de Raoul perdem-se na humidade da tarde ao ver o homem afastar-se em corrida, com o saco de cabedal. O homem de rosto bondoso era um ladrão. Nem sobrou tempo para lhe dizer que só leva o cadáver de um cão e uma samarra coçada. A carcaça dum cão meio sarnento e tão meigo que nunca ladrou a malandro. De alguma forma, as palavras embargadas de Raoul, estupefactas pela ocorrência, sentem que o cão morto e o ladrão estão bem um para o outro, que melhor sepultura para o Hércule não podia haver que a de ser restituído à vida como objecto de cobiça. A ideia sorri-lhe, Raoul ri com gosto, pensando na cara do ladrão quando abrir o saco.

A noite estendia o seu lençol no leito do mundo, quando Raoul franqueou o portão do condomínio.
Vinha com um copito e trauteava uma melodia. Que boa ideia ter resolvido entrar num bar e beber uma aguardente para dissipar a tensão daquele dia verdadeiramente amotinado. Sentar-se ao lado da juke-box foi um condão. Há quantos anos não tocava em álcool? As três aguardentes penetraram como raízes a motor.
Olhou a moita anichada ao muro da primeira moradia. Parecia um urso. Quantas vezes teria Hércule erguido a patita e urinado no urso? Nem precisou de reflectir. Abriu a braguilha, sacou o membro para fora, ergueu uma perna como faria Hércule e mijou na moita. Uns olhos piscos de velha, abriram a boca atrás dos cortinados. Raoul, de pénis desfraldado, rindo como o rato Félix, passou à moita seguinte, ergueu de novo a perna num ângulo de 25º e emitiu o seu jacto. Tinha os olhos franzidos de riso mas divisou uma dúzia de arbustos e moitas até chegar a casa. Havia muito trabalho a fazer. Hércule estava de volta.