Anthony Quinn foi grande emissário dos «zês» na Terra: de zampanò a zorba. Por isso criei este papel para ele.
OS CANÁRIOS DE CHERNOBYL
Naquele Inverno, via-os quase diariamente no ferry. Os dois cegos mais o filho, um rapaz de doze, treze, anos que os guiava. Faziam a ronda dos passageiros pelas cabinas e depois, mesmo que o céu estivesse carregado de nuvens, quedavam-se lá fora, entre a última fila de carros e o castelo da proa, conversando com gestos largos, acenos, numa sarabanda.
Já reparara neles, mas nunca a curiosidade me fizera levantar do lugar para os ir ouvir, apesar da evidente teatralidade que os rodeava. Não no momento de pedir. Aí, como Agatão, o padre do deserto, bochechavam pedras na boca no fito de inibirem a mais curta sílaba, e era o rapaz quem instigava à esmola. Mas, assim que se isolavam, o seu laconismo volvia loquacidade e mesmo à distância era nítido que conversavam bastante, o que a mímica sublinhava.
Nos olhos da senhora, uma quarentona, loura, de uma palidez marmórea, e vagamente parecida com a Faye Dunaway, uma membrana branca velava as íris, que à transparência lembravam luas novas. Os olhos do homem ofereciam pelo seu lado um vislumbre infernal, a varicela que lhe esburacara as faces estendera-se às escleróticas: pareciam bicadas por canários. Por seu turno, o filho, via perfeitamente; era o “canito” deles, como alguém me disse ter ouvido o pai referir-se-lhe.
Naquele dia chovia a potes e o rio esbracejava em vagas largas, que faziam o ferry inclinar-se, ensombrando os olhares. A chuva impedira-os de se isolarem, lá fora. Haviam descido à cabina da popa, que ficava ao nível da água, onde, por isso, se sente com menor incómodo o bater da água no casco.
O homem estava, apesar da cabina estar à pinha, particularmente falador e elevava a sua voz sem embaraços. Dizia ao filho:
- Esta parte do navio é como o rabo grande de uma preta, sente menos os golpes do vento.
- Não há nenhuma preta, por aqui… - Perguntava receosa a mãe, ao filho.
- Não, mãe.
E riam.
- O pai, já viu o rabo de uma preta? - Volveu o rapaz.
- Já apalpei.
Em redor, os risos começaram a ser sufocados.
- Aldra… - Dizia a mãe.
- Então não tenho aquele filho em Angola?
- Dizem, nunca vi…
- É natural… - Replicava ele, com bonomia.
A boa disposição alastrava aos restantes passageiros. Atrás de mim, duas velhotas comentavam:
- É bonito ver a boa disposição desta gente!
- Ó mulher, pois não somos todos filhos de Deus?
- Se me contassem não acreditava!
- Hei-de dar-lhes esmola, ainda há bocado passou-me!
Os cegos voltavam à carga:
- Chove mesmo! - Exclamou o homem.
- Eu bem te disse para trazeres a boina.
- Também, a boina, de que é que me servia? Assim livro-me da piolhada!
- Olha o que dizes… - Censurava ela, incomodada.
- Quê, e o miúdo não é ranhoso, não? Então, por que andamos a pedir?
A cabina já ria, solta.
- Acha que volte a estender a lata? – Perguntou o filho.
- Olha, à beira do fim do mundo quem quer ficar com as moedinhas que tem? Vai lá, filho.
Uma nova vaga sacudiu o ferry e encheu de respingos as janelas. As pessoas mantinham-se numa circunspecção que apenas o espectáculo dos cegos amenizava. A colheita foi generosa.
- Vês miúdo… - Dizia o pai, abanando a lata – como nem todas as tempestades são ruins? – E sugeriu, continuando a abanar a lata - Olha filho, dança!
Chocalhava a lata e o miúdo agitava-se numa simulação de sapateado, que a mãe acompanhava com as mãos.
- Isso filho… - Instigava o pai – que foi a última coisa que vi, um filme com o Fred Astaire.
O navio abrandou e começou a procurar a corrente favorável à atracagem. E as pessoas recolheram ao silêncio, na expectativa da chegada.
Uma senhora levantou do chão um saco de papel grande, de oferta, que colocou entre as pernas e neste acto o saco rangeu.
- Vi sacos destes em Guimarães… - Disse o homem, perguntando ao miúdo – É da Zara?
- É sim, pai?
- E de que cor é? Verde?
O miúdo olhou o saco vermelho e respondeu:
- É amarelo!
A Primavera chegou. Estive um mês em Milão, numa reportagem que me fez perceber como na estranja opulenta há bolsas sujeitas a muito açoite, nos desvãos da miséria. E voltei a frequentar o ferry.
Saía combalido da casa de banho do navio para onde me atirara a açorda de marisco da véspera, e procurava poiso quando os vi, pela janela: os cegos dobravam uma carrinha diesel rumo ao seu poiso habitual, esgotada a ronda. O incómodo das tripas não me puxava a sentar-me e acicatado pela curiosidade resolvi aproximar-me deles, seguir-lhes o fio da conversa.
O céu estava limpo, mas o ar soltava-se em rajadas que fustigava os cabelos. Suportavam-nas como se estivessem na primeira fila de uma peça de teatro que há anos desejassem assistir.
- Este vento está frio… - Queixava-se ela.
- Enrija… - Dizia o homem.
- O teu pai sempre gostou do vento? – Explica ela, ao filho.
- É verdade filho, sabes porquê, são os canários de Chernobyl…
- Que é isso, pai?
- Espera… que vem ali à esquerda? - Apontava para lá da proa, para um grande petroleiro que avança ronceiro, a 30 metros do ferry.
- É um cargueiro.
- Tens a certeza?
- Sim… - Repetia o rapaz.
- Está pintado de quê, vermelho?
O petroleiro tinha uma banda vermelha ao longo do casco, como se fosse um cinto.
- É azul…- Garantia o adolescente, dirigindo-me um sorriso matreiro – Mas porquê canários de Chernobyl?
- Daquele desastre nuclear lá na Rússia, não te lembras? Na central nuclear. Todos os canários da região perderam a voz, desde aí só sopram.
- Aldra! – Retorquia o rapaz.
- Estou-te a dizer filho!
- O pai diz sempre essas coisas!
- Um pai nunca mente a um filho.
- Isso é, se não for cego!
- Ninguém é cego filho, não há aqui ninguém cego!
- Pois não! – Repetia sardónico o rapaz.
- Pois não… - Sublinhava o Pai – simplesmente, nós vivemos num mundo em que Deus não olhas as coisas como são mas como eram. Por isso é que para Deus é sempre Verão.
- O teu pai sabe… - Reforçava a mãe.
A sirene do petroleiro vermelho troou, quebrando o crocito das gaivotas.