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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

O RELOJOEIRO CONTORCIONISTA: Um Conto de Valério Romão

Como não gosto de publicidade enganosa, aqui vos deixo um conto de Valério Romão. Foi o último conto dele que consegui publicar, em 2006, na Revista Magma, da ilha do Pico, no seu número 2, que eu coordenei, a pedido do Carlos Alberto Machado e da Sara Santos.

O relojoeiro contorcionista

A dificuldade é microscópica. A luz não ajuda.
Os clientes dizem-me que a loja está cada vez mais suja, que não é possível trabalhar com rolos de cotão deambulando pelas mesas como gatinhos, os clientes que só se mantêm fiéis porque a minha tabela de preços é tão an­tiga quanto eles o são. Não posso ter uma empregada de limpeza – replico – não posso ter uma senhora de plumas de avestruz na mão a estragar-me meses de trabalho com uma espanadela ruminada à pressa.
A dificuldade é antiga.
O meu pai ensinou-me tudo o que sabia. O meu avô tinha mãos de cirur­gião e olhos de pombo. Eu carrego alguns genes bondosos e medo de fazer outra coisa. O trabalho é como um par de tamancos que se lega de mãe pa­ra filha: por mais desconfortável que seja, não há coragem para mostrar as feridas nos pés. Um cambalear ocasional que se atribui à diferença de ta­manho entre dois membros rigorosamente idênticos é o único indício de descontentamento. Ainda assim, não há corpos perfeitos e a mentira pas­sa de barriga em barriga.
Não desgosto os relógios. Fascina-me saber que há coisas que, quando me­xem para a esquerda, obrigam outras coisas a mexerem-se para a direita e estas últimas forçam pequenos gravetos de metal a percorrer distâncias milimétricas numa cadência monocórdica de barítono deprimido. Aprendi a amar alguns tipos de metais, algumas marcas específicas de engrenagens, aprendi a soldar e a desviar átomos com a ponta da pinça. Todo a minha vi­da está prenhe de rolamentos minúsculos e cheiro de cobre. Não tenho fi­lhos, nem mulher. Quando morrer serei enterrado com uns tamancos cor-­de-caixão. Ninguém verá as chagas nos pés.
A dificuldade é parar.
Quando se é relojoeiro parece que o tempo dá para tudo. É um manto cin­zento, estendido, que se prolonga espaço fora e que salpica tudo de tique­taques sincronizados. Quando se é relojoeiro tem que se cumprir os pra­zos. Ninguém confia num relojoeiro que se atrasa, independentemente do valor da desculpa ofertada. A mãe pode estar a galgar a linha da meta, o pai ou sobrinho podem ter tido um acidente grave. O que importa é que haja alguém cuja função seja a de compor uma sinfonia pela qual todos os passos possam ser dados com segurança. É preciso um maestro. Um alqui­mista da simultaneidade. Eu.
Um relojoeiro não se cansa, um relojoeiro não se desconcentra. Um relojoeiro é um apêndice do tempo e desde logo está fora dele. Contempla-o, encaixa as suas peças como se brincasse com Legos e devolve às pessoas a possibilidade de falhar um compromisso. Caso eu não existisse, não haveria atrasos, nem ocasião. Somente a visão do sol e das rugas faciais para saber que a vida não tem buracos e que, quando os tem, não tem vida. Eu sou o alicerce.             
Quando morrer e 1evar comigo os tamancos serei homenageado com uma estátua ou uma rua com o meu nome. Quando eu morrer todas as coisas serão engolidas no silêncio dos relógios coma­tosos. Deixará de haver emprego, leis, férias. Tudo será um único bolo confuso de noite e de dia se revezando.
O problema é sincrónico.
À noite cumpro o meu ritual privado. Desço as escadas, bebo meio copo de leite morno e começo a dar corda aos bichos. Cada um dos relógios - de parede, de pulso, de bolso — tem um grunhido diferente. Tento compor o ramalhete. Paro todos os relógios. Menos um. Depois tento acertá-los mentalmente, com as engrenagens bloqueadas, para que, quando for hora, conseguir que todos batam os segundos no mesmo instante. São centenas de músicos aspirantes a solistas. Mas eu quero uma orquestra, uma filar­mónica de Cronos que esteja em sincronia com o meu espaço interior, que cumpra as regras do bater do meu coração.
Todas as noites dou voltas pelas bancadas, esgueiro-me por debaixo das ca­deiras e penduro-me no escadote para que sinta, uma única vez apenas, a simultaneidade original. O meu avô disse-me quando eu tinha tempo, antes de saber que o tinha, que Deus não criou o mundo em sete dias, que toda a história da génese originária era um paliativo para mentes preguiçosas. Deus criou tudo no mesmo instante, como se todos os relógios do mundo houvessem batido o pé ao mesmo tempo, e desse estrondo instantâneo brotaram todas as coi­sas vivas.
O pecado original, outra farsa para imberbes – dizia o meu avô -, foi o desrespeito pelo ritmo do mundo. O primeiro homem e a primeira mulher zangaram-se porque um deles se atrasou. Não porque houvesse comido uma maçã ou um bolo-rei, e sublinhava bolo-rei com um cinismo impróprio para curas, não porque houvesse desejo de saber mais ou ser igual a Ele. O tempo foi desrespeitado, pura e simplesmente nunca me disse se houvera sido o homem ou a mulher a atrasar-se e todas as coisas perderam o lastro de pureza e a sincronia. O meu avô que lia a bíblia à luz da teoria do atraso metafísico nutriu sempre o sonho de ser ele a restaurar o tempo em que as coisas eram como deviam ser. Eu herdei as suas mãos e a sua paranóia. A dificuldade é sempre o tempo.
Um noite qualquer, uma noite sem sol igual às outras, uma noite fria e de­sacompanhada de carne, depois de cinquenta anos passados a pular para cima de cadeiras, a abrir e a fechar gavetas teimosamente iguais, dou por mim com um estranho formigueiro nos dedos.
Nessa noite fiz tudo com precisão. Parei os relógios. Todos. Pus a mão no coração e escutei. Não com os ouvidos. Escutei pela mão, escutei o ritmo todo do meu corpo, a pressão que o sangue exerce sobre as paredes das ar­térias, os impulsos micro-eléctricos de neurónio a neurónio, as células da pele a caírem no chão, ribombando como fanfarras de bombeiros. Com a mão no coração e os olhos cerrados porque se ouve muito melhor com os olhos cerrados dirigi-me a cada relógio e acertei-os de acordo com o que ouvia sentia e sei que entre um e outro decorria uma batida cardíaca apenas. Dentro dessa batida cardíaca morriam civilizações inteiras porque uma estrela ha­via engordado de luz e fogo, dentro dessa batida havia choros de bebés cujas caras me eram absolutamente incompreensíveis mas todos os bebés choram dentro dessa batida travavam-se guerras, amavam-se pessoas e coisas, den­tro dessa batida todo o espaço me era revelado como só Deus o poderia ver.
Enquanto acertei os relógios
com calma, com segurança
vi tudo o que o universo oferece e esconde. Não somente o que há, mas tu­do o que poderia ter havido, que se multiplica em cada segundo que passa pelas possibilidades deixadas para trás. Era como se, de repente, tudo es­tivesse despudoradamente nu. Vi a nudez do meu pai, do meu avô-metafí­sico, vi a minha mãe que poderia ter casado com outro qualquer e tido outros filhos quaisquer ou ter morrido à nascença ou dois anos depois vi os filhos que nunca tive e que poderia ter tido, vi a mulher que deveria ter amado, vi todas as mulheres que nunca deveria ter visto e sentei-me, pesado. O universo e seus irmãos passaram por mim, sincopados, de ba­tida em batida, e deixaram-me sozinho com todos os mundo ao colo a lu­tar por atenção.
Pendurei os tamancos. Parei os relógios todos. Disse aos clientes que pre­cisava de férias. Nunca mais voltei. Tenho ainda em mim a gritaria selva­gem do começo e do fim de tudo.
O problema é esquecer.