O Minie morreu. O hamster das minhas filhas. Tão feio e estúpido como um pingo de sorvete de chocolate numa camisa vermelha. Elas ficam num pranto diante daquela carcaça de pernitas cruzadas, que parece ter descoberto a oração. Está bizarramente espalmado o bicho, é caso para perguntar se lhe extraíram a caixa torácica, viro-o de um lado e de outro à procura de um furo. Nada. Um enigma que talvez justificasse uma autópsia.
Há duas horas estava vivo, lacrimeja
a Jade. Há uma hora estava vivo, reforça a Luna. Estava vivo há meia-hora,
confirma a empregada e acentua, até vi que não tinha água.
Agora está embutido, as patitas em
prece, o hamster das minhas filhas, que nunca viu Bruges como o hamster de Hugo
Claus, mas que era mais mexidinho que os céus de Hans Memling e agora é o hirto
selo de uma carta que ninguém quis escrever.
Coube-me enterrá-lo. Peguei numa
folha onde a Jade havia desenhado um barco à vela e fiz dela uma mortalha.
Acomodou-se no bolso do casaco. Saí.
Hoje vou de tchopela, o Minie merece
a deferência, pensei, antes de, num impulso me atirar para dentro de um chapa.
Com o que poupo bebo cinco copos de cerveja em sua homenagem…
Cá estou na Garajinha com os amigos, na verdade vim buscar um toner na loja de informática do prédio ao lado mas aproveito para cavaquear um pouco com aquela trupe de homens curtidos pela febre e o álcool e uma gama de sonhos represos. E talvez aparelhar o barco à vela com um corpo embutido no porão, pois o Zé Tomás é capitão da marinha. É o que me dá pretexto para abrir o sudário e depositar “o presente” a meio da mesa - o que desencadeia comentários e risos.
Foda-se! – clama um deles – Este gajo
é louco!
Explico que é o Minie, o seu fermento
no humor das crianças, e faço-lhe a
crónica biográfica:
O gajo mais cagão que vi na vida,
assim que ia para a mão delas, era um ver se te avias, bolinhas pequeninas,
felizmente inodoras…
O da minha filha, ela deixou-o cair
da janela do nono andar, duas horas depois de o ter recebido… - atalhou o Tucha.
Não consigo sentir nada diante de um
rato morto… - atira o Zé Cabral, com um ademane que endereça ao bicho defunto.
Nem asco dá… - retorquiu o Rui.
Também não é preciso exagerar...- ameniza o Cabral - isto é
uma escória, nem chega a ser um rato a sério… Lembram-se daquele conto muito
bonito da Carson MacCullers, «Uma Pedra, uma Árvore, uma Nuvem»? Lindíssimo na
literatura, nunca fui capaz de amar uma pedra… nem um rato. Nunca cheguei aí,
fico-me pelas pessoas…
É como eu… - reiteira o Zé Tomás -
Razão tinha o Kok quando dizia que preferia fazer retratos a paisagens porque
uma nuvem não ri…
Até onde nos leva um rato morto… - diz o Rui, divertido, enquanto a palma da sua mão desenha espirais ascendentes.
Hum, emenda o Cabral, é só por causa das tuas filhas,
para mim um rato morto é igual a outro rato morto, isto é nada… ainda por cima
este era feiote, nem para decoração servia…
Também um rato não é um abajour...- contrapõe o Tucha.
Também um rato não é um abajour...- contrapõe o Tucha.
No respeito pela morte pago uma rodada, fazemos uma libação, batemos os copos e brindamos em uníssono:
Ressuscita, cabrão!
Porém, o rato que, com o transe embutido,
pela primeira vez saiu à rua, permanece impávido, determinado.
Mesmo à distância ouvimos o pranto
das miúdas e todos eles, à vez, lhes telefonam com palavras de circunstância,
as únicas que conseguem cerzir os mantos rotos da emoção.
O Rui quer sacudir-lhes a tristeza
com uma piada de ocasião e diz:
Olha, olha… um canito a rir e um
elefante a chorar… - alusões que as ofendem. Teremos agora de marcar uma
cerimónia de reconciliação com o tio.
E bebemos mais uma em silêncio, a
mirar a estranha simetria daquelas patitas em prece.
Já chega, não? – casquina o Cabral,
antes de se levantar, pegando no cadáver – Dá cá esta merda… - encaminha-se para
a casa de banho e enfia-o pela banda móvel do caixote de alumínio que se dispõe
debaixo da bacia, ao lado da porta.
Assim não… - protesto, quando ele se
volta a sentar…
Que queres tu, queres embrulhá-lo de
novo no papel e que escrevamos Minie adoro-te, antes de assinarmos todos? Ainda
não bebi o suficiente para tanta ternura… - reage o Cabral.
Isso não… mas podíamos ao menos
depositar uma flor… - sugiro, vendo pela montra que se aproxima um vendedor de
rosas.
Isso resolve-se… - diz o Zé Tomás que
vai imediatamente lá fora comprar uma rosa vermelha, que obriga o jovem
vendedor a borrifar - Estás-me a dever vinte paus… - atira quando entra,
encaminhando-se no acto para o caixote de alumínio, em cuja banda enfia a haste da
rosa… - Está bem assim?
É bonita a rosa, é grande… - anui o
Cabral.
Digna de um Alexandre Minie… - completa o Rui, sorrindo.
O Zé Tomás senta-se, dá um golo na
cerveja, antes de sentenciar:
A mim lembra-me uma couve…
A conversa inclina-se perigosamente
para a facilidade com que a vida põe um pé na pedra musgosa e cada um quer
atropelar o episódio de uma morte macaca com uma história ainda mais improvável,
numa galhofa a cujo pico naturalmente se sucede um momento de laconismo.
É aí que entra o pintas. O fato preto
às riscas cinzentas e uma camisa rosa choque, de colarinhos largos sob um
bigodinho aparado. Pede um café ao
balcão e vai para o espelho que adorna a parede da bacia aparar o cabelo,
acachapar arestas na cabeleira redonda, encarapinhada.
Toca o telefone e ele atende
enquanto, com os dedos molhados, amacia o bigode. Fala em voz alta, incapaz de
conter-se:
Minha dama, saudade… Ainda ontem
pensei em ti… Onde estou? Estou no job… Mas se a minha dama precisa, falo com o
chefe… nem preciso, o man sabe que sem mim nada anda… Nice… - alteia a voz –
nice, então daqui a meia-hora em tua casa… Darling…
Bebe o café num sorvo ao balcão, e é
então que repara na rosa. Paga o café e nem hesita, vai apanhar a rosa,
parte-lhe o pé num gesto e encaixa a rosa no bolso do lenço no casaco – o
sorriso tão fragrante como o vermelho contra o rosa. E sai triunfante, atirando-nos
uma langorosa Boa tarde.
O Zé pergunta, inquieto:
Vocês viram? Tinha uma gota de sangue
no espinho do caule…
Ficámos transidos, pois víramos todos.
Foi nessa altura que o Tucha nos
tirou aquela foto.