persona. I


Falamos de máscaras. Do rosto que se coloca sobre o rosto para sermos nós próprios. Os romanos chamavam persona às máscaras do teatro. Per sonare. Projectar a voz.

Todos nós temos em casa um armário cheio delas. Não saímos à rua sem os bolsos cheios. E raramente nos mostramos sem uma máscara, afivelada no rosto.

da cólera e outras paisagens


esta noite sonhei que sonhava contigo. e eu era um cão que te espiava pela janela entreaberta enquanto te despias na noite e eu cobiçava a tua pele branca. o pêlo eriçado. um rasto de saliva como um colar de diamantes. o sangue a latejar no teu pescoço como um batuque hipnótico. enlouquecedor. e sonhava com o cheiro feminino do teu corpo. uma erecção não sei se em mim se no cão que eu era incomodava-me de tão dolorosa. um telefone soou algures dentro da casa como um alarme e estremeci violentamente. apercebi-me então que tinha um pêlo comprido e áspero. atendeste o telefone e disseste o meu nome. tentei dizer-te que não era eu mas só falava línguas mortas. ou ladrava. não sei. uma cólera quente apoderou-se de mim. ou do cão. quis saltar e entrar pela janela. morder-te a carne. rasgá-la. lamber-te o sangue. as patas coladas ao chão não se moviam. gritei um uivo que me arrepiou no sonho. não ao cão mas a mim que sonhava. o uivo tornou-se grosso como uma corda e subi por ela. os dentes a puxarem com uma força que desconhecia. o cão a balouçar na ponta. a descrever um arco e soltar-se da corda. lançado no vazio como um aríete. o vidro estilhaça-se como num filme de acção. centenas de espelhos que reflectem mais espelhos como um ruído insuportável. aterro em silêncio. as patas num tapete vermelho e macio. estás mesmo à minha frente e não te mexes. lanço-me sobre ti num salto preciso de predador. na boca um trapo branco. leve. vazio. a tua camisa de dormir sem ti. percorro o quarto. a sala. a casa todo. vazia. o cão enfurecido esventra os sofás. destrói a mobília da casa. cansado enrola-se à volta da camisa de noite. adormeço. ou é o cão que adormece. mergulho depois num sono profundo. sem sonhos.
acordei com o corpo dorido. um fio de algodão preso entre os dentes…