Fotografia de Ian Britton
Apertou o blusão de cabedal preto e saiu do apartamento. Chovia. Na noite escura e mal iluminada por candeeiros de luz tremeluzente, a figura alta, esguia e vestida de negro de Luisa confundia-se com as sombras. Ao entrar no carro, pousou no banco do pendura o enorme saco que transportava na mão. Não se via vivalma na rua, mas à medida que foi avançando para o centro, a cidade ganhou cor com as lâmpadas coloridas que ornamentavam árvores e postes com os enfeites natalícios. O movimento era praticamente nulo, conduzia lenta e tranquilamente na direcção da casa da tia Magui, relembrando aquela primeira consoada, mesmo decorrida mais de uma década.
Tinha então 14 anos e mal conhecia a tia, que encontrara apenas esporadicamente em criança. Nesse ano, os pais tinham viajado em negócios para Nova Iorque e por lá tinham ficado, para evitar idas e vindas inúteis de avião. Sentia-se acabrunhada, não porque sentisse a falta deles – aliás, nunca celebravam o Natal conjuntamente, nem participava nas faustosas recepções que a mãe promovia, primeiro porque era pequenina, depois porque ia atrapalhar com as suas infantilidades, por último porque era desengonçada – mas porque preferia ter ficado sozinha no seu quarto, como de costume. “Mais vale só...”, repetia para si própria! Comemorar o quê?
Assim, quando Magui abriu a porta encontrou uma adolescente espigada e de cenho franzido, vestida de negro dos pés à cabeça, como se fosse uma carpideira em dia de funeral. Exibindo um sorriso, abraçara-a com emoção: “Há quanto tempo, Luisinha?!” O espanto da rapariga tornou-se evidente, não a reconhecia naquela mulher de aparência tão jovem, mais baixa e roliça do que recordava, envergando uma espécie de sari multicolor, com o cabelo liso e castanho a escorregar-lhe pelas costas. O seu casaco foi prontamente pendurado num bengaleiro sobrecarregado, enquanto era conduzida à sala onde se encontravam outros desconhecidos, que riam e conversavam como se se conhecessem há milénios. Consternada e arrastada pela tia entre os convivas, onde não faltava um gato listado que passarinhava entre todas as pernas, as apresentações sucediam-se, de passagem: “É a Isabel, a vizinha do lado, o primo Zé, a minha amiga Gracinda...” enquanto repetia “é a Luisinha!”. Ela acenava com a cabeça, meio tonta, com a certeza que não se lembraria de nenhum nome, tentando sorrir, vagamente ciente do contraste entre as duas irmãs.
No palacete raramente se ouviam vozes mais elevadas, mesmo em dias de festa - uma eventual casquinada de conveniência, de bom tom. A mãe tinha uma voz de gelo, metálica, mas quase inaudível, mesmo a tratar com a criadagem: “Maria, faça a mala e vá-se embora. Já!” Ou quando se dirigira a ela, ainda há poucos meses: “Uma vez que a menina não tem a mínima noção de cor, faça-me o favor de se vestir sempre de preto, sem ofender o bom gosto de ninguém!” Muito menos qualquer daqueles indivíduos seria convidado a pisar o hall de granito cinza, nem seria a mãe a cozinhar aquele jantar simples mas apetitoso - no cardápio dela só constavam receitas sofisticadas com pomposos títulos afrancesados. Quase conseguia vislumbrar o seu ar de horror e o comentário viperino que se seguiria, na sua voz gélida: “Que fauna... digna de um Zoo!”
À meia-noite, Magui sentou-se no chão junto ao galho prateado que fazia as vezes de árvore de Natal e começou a distribuir os embrulhos que se encontravam debaixo, enquanto chamava um por um todos os presentes, que os abriam com alegria e agradeciam simpaticamente, mesmo desconhecendo o dador. Luisinha ultrapassou o tédio de receber mais uma Barbie de colecção (longe de alguma vez ter brincado com bonecas), mas rebuçados, bombons, bolachinhas e compotas não faltaram, a par de um quadro, um livro e uma camisola de malha vermelha, sem referir as pegas de cozinha em crochet que couberam a todos, supostamente da lavra da vizinha velhota. Só regressou ao palacete vazio no dia seguinte, carregando consigo esses “tesouros”, mas o que guardou na memória foi o Natal mais feliz de sempre!
Agora, tanto tempo volvido, sabia onde a magia do Natal acontecia e onde nunca deixara de voltar. Ao tocar a campainha, o sorriso alegre de Magui já não a surpreendia, nem que a chamasse de Luisinha e o abraço foi inteiramente correspondido. Após pousar o saco no chão, despiu o blusão preto e, exibindo uma camisola vermelha, retirou do bolso um barrete condizente, que pendurou no cocuruto, declarando: “Este ano, o Pai Natal sou eu!” E riram-se ambas, enquanto entravam na sala de braço dado, onde os amigos de sempre as aguardavam...
Foi com este conto que participei no desafio/concurso da
Licas, que conseguiu angariar 10 participantes, e que obteve um brilhante 7º lugar. Brilhante?! Sim! Não votei em mim própria, nem pedi a ninguém para o fazer, ahahah!
BOM FIM DE SEMANA PARA TODOS!!!