Não sou especialista, nem crítico e muito menos possuo erudição
suficiente para analisar com profundidade o estilo ou a técnica do autor, nem
para identificar referências ou comparações com outros escritores. O que posso
fazer é comentar a experiência do ponto de vista de um leitor que gosta de
aventuras e de um escritor que busca se aprimorar para um dia, quem sabe, se
Deus ajudar, escrever um livro tão bom como esse.
Os Invernos da Ilha - Rodrigo Duarte Garcia
O livro convida desde a capa. A bonita ilustração do Gustavo Garcia (acho que é
irmão do autor) remete imediatamente ao apaixonante universo dos barcos, das ilhas,
dos mares; remete também à solidão do inverno, à reflexão. Mar, frio, ilha e –
descubro na quarta capa – mosteiro e tesouro pirata. Pronto!
No primeiro capítulo, a descrição da chegada do nosso amigo Florian ao
Mosteiro da Santa Cruz prende como um anzol. Em poucas páginas o leitor já está
capturado como o protagonista ficaria pouco tempo depois... – está difícil
segurar os spoilers, mas prometo me controlar.
Os capítulos seguem curtos, sempre contando mais um pouco, descrevendo
um cenário real. Os personagens vão se revelando nos atos e os diálogos e monólogos contam
a história de um protagonista muitíssimo interessante, com um passado
inicialmente nublado como o céu da Ilha de Sant’Anna Afuera naquele inverno. A
cada página é possível prever que a próxima vai trazer algum acontecimento
importante. E traz! Sempre traz, abrindo novas e ricas possibilidades,
daquelas que fazem um curioso atrasar seu compromisso para ler mais
um pouco. O livro é assim o tempo todo. É possível enxergar a
ilha e reconhecer os personagens. Eles existem. Eles pensam, agem e falam como
pessoas reais, mesmo que o leitor nunca tenha conhecido alguém parecido. Até as
chatices de um sujeito são quase palpáveis. As personalidades se desenvolvem a
cada página, e o leitor fica hospedado na Ilha, conhecendo pouco a pouco o
ambiente do mosteiro, o povoado e seus habitantes, no mesmo instante em que
compartilha das suas descobertas e lembranças.
Os personagens circulam e conversam em um cenário colorido, rico de
detalhes que complementam e dão verossimilhança à trama: a cruz de madeira, os
ciprestes e carvalhos, o Farol de Pastene, os objetos curiosos. Tudo
devidamente encaixado em uma narrativa de fôlego, que prende a leitura e
desenrola uma aventura surpreendente, sem precipitações e sem devaneios
desnecessários. O livro tem silêncio, memórias culpadas, doces lembranças, mas nada
disso faz o tempo parar. Nem a dureza do frio. A trama corre avançando e
recuando, por vezes com a pressa das ondas que batem nas encostas, outras com a
calma de quem olha a fumaça azulada de cigarro se dissipando no vento gelado.
Mas nem só de frio vivem Florian, Cecília, Rousseau & Cia. Para quem
quer ação, a narrativa é recheada de eventos extraordinários, daqueles que
merecem ser contados. As aventuras se desenvolvem em paralelo, uma na “ilha-refúgio”,
outra no diário de Oliver van Noort, o corsário – e poeta enigmático. São
colinas, florestas, animais selvagens, navios, batalhas, corredeiras e até um
vulcão. Na busca pela “glória que brilha do Bom Jesus”, o que não falta é ação.
Sob a onipresença do sal, do clima e de suas paisagens, os sentidos são
todos aguçados. Do frio congelante do Rio Dumin, e do cheiro molhado da caverna
ao som de Rachmaninoff ou à carne de coelho do dom Alphonse. O
leitor “sente” a história, e tem acesso a tudo: cores, sabores, cheiros e sons.
Os sentimentos não são narrados diretamente, mas são percebidos pelo
leitor em cada movimento dos personagens. Culpa, saudade, raiva, ansiedade,
vaidade e redenção. Tem de tudo um pouco. Sem falar do jogo da sedução, da
atração proibida, dos cabelos arrepiados ou dos olhos verdes brilhantes...
Como na Carretera Circular que percorre a Ilha, as memórias giram juntas
aos planos cada vez mais incertos do narrador. O passado e o futuro imaginado
pelo protagonista se completam, instáveis e intrigantes, fazendo avançar a
compreensão não apenas de Florian, mas de seus interlocutores e da própria
narrativa – confesso que não sei como ele faz isso tão bem!
O trato da linguagem também é invejável. Rodrigo consegue a façanha de
alcançar a precisão vocabular combinando erudição e “musicalidade” sem ser
pedante. Manuseia com sabedoria os jargões e as expressões populares. Seja em
latim ou holandês, com um hilário francês arrogante ou com a intrigante língua
mapuche, nada fica sobrando.
Concluindo, o livro é muito mais do que uma aventura extraordinária: bem escrito e editado, conta uma estória maravilhosa, tem personagens, tem
conflito, tem um fundo emotivo de densidade e um profundo senso de certo e
errado, com ação, suspense e tudo que um bom livro precisa ter. Excelente! Indico a todos
os leitores e amigos.
Leiam!