quinta-feira, 31 de agosto de 2006

Terá Mussolini sido fascista?

Durante as férias, acompanhei nos jornais a polémica, entre Vítor Dias e Vasco Pulido Valente, sobre qual terá sido o fascismo mais autêntico e mais verdadeiro. Conhecendo a blogo-esfera e os seus revisionistas, imagino que a polémica terá sido interessante por aqui: já vi de tudo, desde «Salazar não era fascista» até «o fascismo é de esquerda», passando por «o único fascista foi Mussolini» e «Salazar era antifascista», incluindo «a mocidade portuguesa não era fascista» enquanto «fascismo é proibir que se fume em maternidades e berçários». Só falta mesmo dizerem que Franco era anticlerical e que Salazar era um homem de esquerda, mas conhecendo a blogo-esfera e a deriva genética de alguns dos blogues de direita, lá chegaremos (ou talvez já lá tenham chegado, mas não tenciono ir à procura...).
Concretamente, sei que a «teoria política» nunca é aplicada perfeitamente. E que portanto nem sequer Mussolini terá conseguido instaurar um regime plenamente fascista. Mas, nos anos 30, independentemente do número de mortos provocados pelo regime (que depende dos acidentes históricos), ou do expansionismo (que é desnecessário quando se herda um império), havia o campo dos «socialismos» e o campo dos «fascismos». Cada um com as suas idiossincrasias nacionais e especificidades circunstanciais, claro (deixo de lado as democracias que ambos ameaçavam). Mas Salazar sabia de que lado estava. Não foi o lado da República que ele apoiou na guerra civil de Espanha. E foi junto do exército nazi que ele enviou observadores na campanha russa. Prudentemente, porque era um professor universitário católico e não um militar excitado como Franco. Mas separá-lo dos regimes que ele apoiava na medida das suas parcas possibilidades (e em que se inspirou), é artificial.

Os de cá e os de lá

O dilema em que a esquerda não totalitária que foi contra a guerra do Iraque deve reflectir:
  • «Just as the antifascists had to embrace communists during the 1920s and 1930s, just as anticommunist liberals found themselves helpless in drawing boundaries against McCarthyism or against Vietnam hawks, today’s antitotalitarians face a similar dilemma: how to stand their ground against those on the left who wantonly minimize or deny the danger of terrorism and Islamist fundamentalism without at the same time falling into line with the failed neoconservatives whose vision of pax Americana has come to a very bad end

quarta-feira, 30 de agosto de 2006

Salman Rushdie: «Terror is glamour»

«(...)

Rushdie: There are many reasons, and many different reasons, for the worldwide phenomenon of terrorism. In Kashmir, some people are joining the so-called resistance movements because they give them warm clothes and a meal. In London, last year's attacks were still carried out by young Muslim men whose integration into society appeared to have failed. But now we are dealing with would-be terrorists from the middle of society. Young Muslims who have even enjoyed many aspects of the freedom that Western society offers them. It seems as though social discrimination no longer plays any role -- it's as though anyone could turn into a terrorist.


###

SPIEGEL: Leading British Muslims have written a letter to British Prime Minister Tony Blair claiming that the growing willingness to engage in terrorism is due to Bush's and Blair's policies in Iraq and in Lebanon. Are they completely wrong? Don't the atrocities of Abu Ghraib and the cynicism of Guantanamo contribute to extremism?

Rushdie: I'm no friend of Tony Blair's and I consider the Middle East policies of the United States and the UK fatal. There are always reasons for criticism, also for outrage. But there's one thing we must all be clear about: terrorism is not the pursuit of legitimate goals by some sort of illegitimate means. Whatever the murderers may be trying to achieve, creating a better world certainly isn't one of their goals. Instead they are out to murder innocent people. If the conflict between Israelis and Palestinians, for example, were to be miraculously solved from one day to the next, I believe we wouldn't see any fewer attacks.

SPIEGEL: And yet there must be reasons, or at least triggers, for this terrible willingness to wipe out the lives of others -- and of oneself.

Rushdie: Lenin once described terrorism as bourgeois adventurism. I think there, for once, he got things right: That's exactly it. One must not negate the basic tenet of all morality -- that individuals are themselves responsible for their actions. And the triggers seem to be individual too. Upbringing certainly plays a major role there, imparting a misconceived sense of mission which pushes people towards "actions." Added to that there is a herd mentality once you have become integrated in a group and everyone continues to drive everyone else on and on into a forced situation. There's the type of person who believes his action will make mankind listen to him and turn him into a historic figure. Then there's the type who simply feels attracted to violence. And yes, I think glamour plays a role too.

SPIEGEL: Do you seriously mean that terrorism is glamorous?

Rushdie: Yes. Terror is glamour -- not only, but also. I am firmly convinced that there's something like a fascination with death among suicide bombers. Many are influenced by the misdirected image of a kind of magic that is inherent in these insane acts. The suicide bomber's imagination leads him to believe in a brilliant act of heroism, when in fact he is simply blowing himself up pointlessly and taking other peoples lives. There's one thing you mustn't forget here: the victims terrorized by radical Muslims are mostly other Muslims.

(...)

Rushdie: Fundamentalists of all faiths are the fundamental evil of our time. Almost all my friends are atheists -- I don't feel as though I'm an exception. If you take a look at history, you will find that the understanding of what is good and evil has always existed before the individual religions. The religions were only invented by people afterwards, in order to express this idea. I for one don't need a supreme "sacred" arbiter in order to be a moral being.

SPIEGEL: Perhaps not, but many people seem to need a god. Religions worldwide are experiencing a comeback. Striving for spirituality is more pronounced than ever. Is this a negative development in your opinion?

Rushdie: Yes.

SPIEGEL: That's a clear answer. But also offensive to many people.

Rushdie: In my opinion the word "spiritual" ought to be put on an index and banned from being used for say 50 years. The things that are put about as being "spiritual" -- it's unbelievable. It even goes as far as a spiritual lap dog and a spiritual shampoo.

SPIEGEL: You yourself once wrote: "We need answers to the unanswerable. Is this life all there is? The soul needs explanations, not rational ones but ones for the heart."

Rushdie: Of course there are things beyond material needs, we all sense that. For me the answers are simply not in the religious, heavenly realm. But I don't dictate to anyone what to believe and what not to. And I don't want that to be dictated to me either.

(...)»

(Salman Rushdie em entrevista à Der Spiegel.)

segunda-feira, 28 de agosto de 2006

Giba Assis Brasil: «O último rei e o último padre»

«Quem for procurar no Google, e se contentar com a primeira página de resultados, vai descobrir que a frase "O mundo (ou o homem) só será livre (ou deixará de ser miserável) quando o último rei (ou déspota) for enforcado nas tripas do último padre" é de Diderot (ou Voltaire).

Mas a primeira página do Google é apenas um retrato da internet: uma babilônia de dados confusos, repetidos, contraditórios, inúteis e muitas vezes incorretos.
(...)
###
A frase original em francês sobre reis e padres é um pouco diferente, tão violenta quanto a que chegou aos nossos dias, mas de um ponto de vista individual e não vinculado a uma possível libertação da humanidade: "Eu gostaria, e este será o último e o mais ardente dos meus desejos, eu gostaria que o último rei fosse estrangulado com as tripas do último padre." ("Je voudrais, et ce sera le dernier et le plus ardent de mes souhaits, je voudrais que le dernier des rois fût étranglé avec les boyaux du dernier prêtre.")

E o mais surpreendente em torno dessa frase não é tanto o fato de ela ser anterior a Diderot, Voltaire e o enciclopedismo, mas que seu autor, na verdade, tenha sido um padre.

Jean Meslier (1664-1729), cura da aldeia de Étrépigny, passou seus últimos anos de vida rezando missas, celebrando batizados e matrimônios, enquanto, à noite, preparava uma tentativa de extrema unção do Estado católico francês: seu livro de memórias, de título quilométrico, geralmente reduzido para "Memória dos pensamentos e sentimentos do abade Jean Meslier", tratando dos "erros e abusos dos governos" e principalmente da "falsidade de todos os deuses e religiões do mundo". Foi neste livro que nasceu a frase, o "desejo mais ardente", as tripas de uns no pescoço dos outros.

Publicado postumamente, o livro do "padre ateu" Meslier tornou-o um dos precursores do iluminismo. Voltaire, então com 35 anos, foi seu primeiro editor, fazendo circular por toda a França suas idéias subversivas e anti-católicas numa versão reduzida, "Extrait des sentiments de Jean Meslier".
(...)»
(Giba Assis Brasil na revista Terra Hoje.)

A astronomia ao serviço da astrologia

Toda esta discussão sobre a revisão da definição de planeta promovida pela União Astronómica Internacional tem vindo a ocupar todos os espaços noticiosos, incluindo a blogosfera, nos últimos dias. É raro existirem assuntos científicos que sejam tão amplamente discutidos para lá das notas de rodapé e pequenos artículos dedicados especificamente à divulgação científica. Estamos no entanto acostumados a que os assuntos científicos chamem a atenção quase sempre pelos motivos humanos, não científicos, em que eventualmente se encontram envolvidos. Um exemplo típico é o caso recente da atribuição da Medalha Fields ao matemático russo Grigori Perelman pela sua prova da conjectura de Poincaré. Neste caso, três anos depois dos artigos importantes publicados por Perelman sobre o tema, os media se interessaram sobre o assunto somente a propósito das excentricidades do matemático russo, e em ocasião da sua premiação, tal como muito bem criticou o Filipe Moura neste post no O Avesso do Avesso no caso do The Guardian, que está longe no entanto de ser um caso isolado.

Mas este caso sendo muito mais comum é muito menos nocivo para a ciência, sua imagem pública e divulgação, que o caso da redefinição de planetas, pois esta última, sendo em grande parte convencional, ao ocupar tanto espaço nos media, inclusive a quase totalidade muitas vezes dos espaços dedicados à divulgação científica em meios não dedicados à ciência, termina por passar a imagem de que em ciência se perde, senão todo, a maior parte do tempo a discutir o sexo dos anjos. No final se teme que as pessoas em geral fiquem com a impressão não de que os astronómos se dedicaram a esta revisão convencional por obrigação criada pelos avanços na detecção de novos ("antigos") planetas (assunto que mereceria muito mais atenção do ponto de vista dos divulgadores científicos) e que levou a multiplicação dos mesmos, mas porque pura e simplemente a astronomia não é afinal assim tão diferente da astrologia e afins. "Muito palavreio inútil apenas neste caso com arrogância incrementada." Conclusão, para a ciência a coscuvilhice sobre os cientistas pode ser muito menos perigosa que a discussão excessiva sobre as suas reconhecidas convenções.

quarta-feira, 23 de agosto de 2006

Duas reformas necessárias

Anotar para a próxima revisão constitucional:
  1. O Presidente da República deve passar a poder demitir os executivos das autarquias;
  2. O Procurador Geral da República deve passar a ser eleito por sufrágio directo e universal.

segunda-feira, 21 de agosto de 2006

Mais sobre publicidade

Depois de escrever um artigo sobre a publicidade entendi que algumas pessoas não acreditam que o objectivo dos publicitários seja «enganar» os consumidores (no sentido de distorcer a racionalidade da sua decisão), ou até que, quando os publicitários o fazem são geralmente punidos pelos consumidores (ou o produtor é punido mais tarde ou mais cedo), pelo que os publicitários competentes não serão aqueles com maior capacidade de enganar, mas, quem sabe, até aqueles que se recusam a fazê-lo.

Existe um exemplo simples que mostra que isto não é assim.
Um exemplo que eu referi na caixa de comentários desse artigo, mas que, tal como lá escrevi, pretendo explicar com mais cuidado.



Vamos considerar duas marcas e modelos de automóveis: o Nissan X-PTO, e o Reanult n-sei-qts. São modelos de carros familiares, e vamos imaginar que são os únicos à venda num determinado mercado.

Nesse mercado nenhum dos vendedores faz qualquer anúncio.
Cada produtor tem uma determinada fatia de mercado, e vende o o seu modelo a um determinado preço.

Quando um consumidor quer comprar um automóvel, ele vai decidir entre esses dois modelos. Em que é que se baseia a sua decisão? Ele leva em conta o preço de cada um dos produtos, ele vê quais das características se adaptam mais às suas preferências. Se percebe pouco de automóveis, pode pedir a opinião a alguém que perceba mais. Percebendo ou não, pode dar uma vista de olhos nas revistas da especialidade.

No fim de tudo houve dois factores fundamentais que condicionaram a sua decisão: o preço do produto, e a sua qualidade (na óptica desse consumidor específico).

A motivação de cada um dos produtores acaba por se centrar em dois vectores: o aumento da qualidade e a redução dos custos. Quando um dos objectivos implica sacrificar o outro, opta-se pela solução que o mercado mais priviligia.


Depois surge a publicidade.
Uma das marcas (a Nisan, por exemplo) opta por lançar uma campanha publicitária para promover o seu produto.

Este produto mantém-se igual, mas devido aos custos da campanha publicitária, o seu custo aumentou. Os consumidores terão de pagar mais por este produto.
Seria de esperar que, sendo o produto igual, e o custo superior (sem que a margem de lucro do produtor aumente), as suas vendas diminuíssem.

Isso faria todo o sentido, mas se isso acontecesse dificilmente algum produtor apostaria na pubilicidade, visto que estaria a deitar dinheiro para o lixo.


Então vejamos com atenção: o Nissan X-PTO é o mesmo, mas mais caro. No entanto as vendas do Nissan X-PTO aumentaram. Pessoas que antes optavam pelo Renault n-sei-qts passaram a optar pelo Nissan.
Como a opção anterior era baseada no preço e na qualidade do produto (e ela foi alterada sem que a qualidade melhorasse, e tendo o preço piorado) isso mostra que a publicidade neste caso só pode ser eficiente caso tivesse condicionado a decisão do consumidor de forma irracional.
A publicidade só pode ter feito sentido se ENGANOU o consumidor.

É tão simples quanto isto: se a publicidade não tivesse enganado o consumidor, ela não teria sido paga. Não teria sido feita em primeiro lugar.


A guerra publicitária começa.
Obviamente o outro produtor não é tolo: não quer perder cota de mercado, e vai usar as mesmas armas.
Assim sendo, ambas as marcas vão começar a fazer publicidade.

Neste momento, ambos os produtos mantém a mesma qualidade, mas estão mais caros. São os consumidores que pagam pela publicidade pelo facto dos produtos ficarem todos mais caros.
O conjunto dos produtores não está a lucrar mais.

No entanto, algo está diferente na paisagem: enquanto que antes os produtores eram beneficiados apenas por terem produtos mais baratos e/ou melhores, agora são beneficiados por estes factores, mas também pela eficiência com que a equipa de publicitários respectivos engana os consumidores.


Conclusão:
Este exemplo não se aplica completamente a todos os produtos. Mas aplica-se a muitos.
Mas os fenómenos aqui descritos estão presentes na publicidade a qualquer produto, mesmo que não sejam os únicos em jogo.

Realmente muitos publicitários têm a noção (como dizia um comentador do artigo anterior) que o extremo da competência profissional é «vender um pente a um careca». Está na hora deles entenderem que isso é eticamente errado.
Está na hora das pessoas entenderem que são elas quem paga e sustenta a publicidade que sofrem, e que enquanto forem irracionalmente influenciadas por ela, pagarão mais por produtos piores, sem ganhar mais do que incómodos anúncios em troca.

terça-feira, 15 de agosto de 2006

Líbano e Irão

Seymour Hersh, excelente como sempre, aqui.

Abu Musab al-Zarqawi

De um documento encontrado no cofre da casa de Zarqawi, depois de ele ter sido morto pelas forças norte-americanas, a 7 de Junho passado. Na Harper’s de Setembro 2006, página 24:

“The best way to get out of this crisis is to entangle the American forces in a war against Iran. A war between the Americans and Iran will have many benefits in favor of the Sunni and the resistance, such as:

1. Freeing the Sunni people in Iraq, who are 30 percent of the population and under Shiite rule.

2. Drowning the Americans in another war that will engage many of their forces.

3. Acquiring new weapons from the Iranian side, either during the battles or after the fall of Iran.

4. Enticing Iran to help the resistance, because of its need for our help.

How to draw the Americans into fighting a war against Iran? It is necessary first to exaggerate the Iranian danger by doing the following:

1. Disseminating threatening messages attributed to the Iranian Shiites.

2. Kidnapping hostages and implicating the Shiite Iranian side.

3. Advertising that Iran has chemical and nuclear weapons and is threatening the West.

4. Executing bombings in the West and planting Iranian Shiite fingerprints and evidence.

5. Declaring the existence of a relationship between Iran and terrorist groups.

6. Disseminating bogus confessions showing that Iran is in possession of weapons of mass destruction or that there are attempts by Iranian intelligence to undertake terrorist operations in America and the West.

Let’s hope for success and for God’s help.

sexta-feira, 11 de agosto de 2006

Falácias da Ética Neo-Liberal VI - a herança

Na terra de Justila as 200 pessoas que lá habitam têm cada uma uma igual porção de terreno.

Em Justila, cada um vive do fruto do seu trabalho, e não existe qualquer espécie de impostos ou redistribuição. Se alguém não quer trabalhar a terra (ou prestar qualquer outro tipo de serviço valorizado pela comunidade), sofre as consequências da sua decisão e passa fome, a menos que alguém generoso, sem sofrer qualquer espécie de coerção, o queira ajudar.

Justila parece ser uma terra justa.
Há ricos e pobres, mas, em última análise, é porque o merecem.


Mas pior é o que acontece às gerações seguintes.
Joel decidiu vender a sua terra ao Abélio, em troca de um conjunto de couves, ovelhas e mel que lhe permitirão não ter de trabalhar mais até ao fim dos seus dias.
Enquanto o filho do Joel, após a morte deste, não herdará quase nada, o filho de Abélio herdará a terra que outrora pertencia a ambos.
O filho do Joel vai sofrer as consequências de uma decisão que não foi sua: agora não tem terra, e está em desvantagem perante o filho do Abélio, para quem trabalhará obtendo menos do que aquilo que obteria se fosse proprietário das terras que outrora eram do seu pai.

O filho de Abélio terá cada vez mais facilidade em comprar terras alheias, pois não conta apenas com os frutos do seu trabalho para as comprar.
Assim sendo, não é de estranhar que em Justila a propriedade se vá concentrando cada vez mais na mão de uma minoria.

Eventualmente chegará ao ponto em que essa minoria pode fazer exigências desumanas em relação à mão de obra de que dispõe, pois a propriedade, de alguma forma, tornou-se um bem escasso (os proprietários têm «poder de mercado»).
Os filhos dos proprietários terão direito a uma vida melhor que os filhos dos sem terra, mas isso não aconteceu por nada que estes tenham feito ou merecido. Aqueles que nascem sem propriedade terão uma vida pior, não por algum erro que tenham cometido, mas por decisões que os seus ascendentes tomaram, às quais foram alheios.


Justila não é uma terra justa.
Numa terra justa as pessoas sofrem as consequências dos seus actos.
Numa terra justa, pode haver ricos e pobres, mas é garantido que qualquer um tem oportunidades. O sistema de Justila não pode garanti-lo. De todo.

Falácias da Ética Neo-Liberal V - a Justiça

Há advogados que cobram mais e advogados que cobram menos.
O que explica estas disparidades?

A razão mais natural é a seguinte: há advogados mais competentes (seja por experiência, capacidade inata, etc...) que outros, e os que são mais compententes tendem a cobrar mais do que os outros.

Mas o que é a competência de um advogado, do ponto de vista do cliente?
Suponho que pode ser facilmente definida da seguinte forma: é mais competente o advogado que, perante as mesmas circusntâncias, maximiza a probabilidade de que o juíz (ou jurados) decida a seu favor.

Atente-se nesta situação: nas mesmas circustancias um rico terá maior probabilidade de que o juíz decida a seu favor. Este fenónemo pode ser conhecido de todos, mas em geral é associado à corrupção ou ilegalidade. Mas não, o favorecimento dos ricos, na justiça, acontece sem que ocorra qualquer ilegalidade: é algo inerente ao sistema actual.

E é algo que não pode deixar de ser visto senão como injusto.
Como é possível que, sem corrupção, sem qualquer ilegalidade, um rico tenha nas mesmas circustâncias, maior probabilidade de ser favorecido pela justiça do que um pobre?


Devo dizer que não proponho nenhuma forma alternativa de funcionamento da justiça onde isto não ocorresse. Quer dizer: o ideal seria que os juízes e jurados fossem tão pouco influenciados pela competência dos advogados (e mais pelas circustâncias, provas, etc...) que as diferenças de preços entre advogados deixassem de ser muito significativas.

Onde eu quero chegar é que existe aqui uma situação em que não é possível deixar de ter um olhar crítico, e entender que as relações comerciais livremente assumidas pelas pessoas podem muitas vezes pôr em causa imperativos básicos de justiça. Interessa manter isso sempre em mente.

Falácias da Ética Neo-Liberal IV - a publicidade

A publicidade é, na sua maioria, o negócio de enganar.
Sou da opinião que, na sua maioria, os publicitários deveriam ter vergonha de o serem.

A publicidade é algo completamente patético do ponto de vista do bem comum.

A actividade profissional dos publicitários consiste em conhecer a psicologia dos consumidores, para melhor poder distorcer e controlar a sua tomada de decisão quando está indeciso entre marcas diferentes, ou entre comprar e não comprar um produto.
Assim sendo, o consumidor não será influenciado apenas pela qualidade e pelo preço de um produto, mas também por toda uma série de mensagens com o intuíto expresso de condicionar e distorcer a racionalidade da sua decisão.

O que é curioso nisto tudo é que acaba por ser o consumidor a pagar pela publicidade de que é alvo, visto que os custos desta se reflectem no valor do produto final. O consumidor é que está a pagar para que a sua escolha seja distorcida pela influência de uma série de mensagens incómodas que disputaram a sua atenção ao longo do dia.

É curioso pensar em todo o mal que os publicitários fazem às pessoas:

1- Nos recursos que consomem, ao longo de toda a sua activade (e que são uma parte significativa dos recursos das sociedades desenvolvidas)

2- No espaço da atenção que disputam, sendo mais e mais invasivos à medida que as pessoas vão começando a ignorar os meios tradicionais através dos quais vão repetindo as suas mensagens

3- Na forma como distorcem as decisões dos consumidores prejudicando as empresas com artigos de melhor qualidade ou preço, em prol daquelas que enganam os consumidores com maior eficiência


A esmagadora maioria da actividade profissional dos publicitários é, do ponto de vista ético, extremamente condenável.
Estes podem não se aperceber, mas estão a fazer o mal.

Falácias da Ética Neo-Liberal III - entre a competência e os escrúpulos

Será interessante analisar o exemplo de um gestor de uma empresa, e equacionar a ética das decisões que toma.


À partida, qualquer um de nós imagina que a competência profissional será algo eticamente louvável. Mas nem sempre é assim.

Em muitos casos um gestor competente sê-lo-á por tomar decisões que favorecem a comunidade com um todo: quer por ter ideias acerca de como tornar processos mais eficientes, e implementar essas ideias; quer por procurar activamente quais as necessidades da comunidade; etc...

No entanto, existem muitos casos em que a competência profissional de um gestor está na sua capacidade de tomar decisões eticamente condenáveis. Os casos mais emblemáticos quando se fala neste tema são os esquemas criativos para fugir aos impostos, ou uma frieza de pedra na altura de fazer restruturações delicadas... Mas esta questão coloca-se mesmo a níveis muito mais prosaicos.

A editora Filipim Lda tem os direitos de um romance. A edição de cada livro custa 5 moedas, e o livro é vendido a 6 moedas. Há 750 compradores.
Assim sendo, a empresa tem um lucro de 750 moedas (a amarelo), e presta aos vários leitores um serviço que pode ser estimado em 2250 moedas (a verde), pois muitos leitores estariam dispostos a pagar mais do que 6 moedas pelo livro.



Neste momento, o gestor decide tomar uma decisão: subir o preço do livro para 10 moedas. Perderá imediatamente 250 clientes, mas os lucros duplicarão.
A empresa passa a ter um lucro de 1500 moedas, embora agora apenas preste aos consumidores um serviço que vale 1000 moedas.



Este ponto deve ser observado com atenção: a decisão do gestor que revelará competência profissional é a mesma que prejudicará a comunidade como um todo, e que é, por isso, eticamente condenável.

Ou seja, aqueles que não são capazes de tomar decisões flagrantemente anti-éticas, não podem ser muitíssimo competentes enquanto gestores.

Falácias da Ética Neo-Liberal II - direito de propriedade e saúde

Imaginemos uma cena passada na pré-história.

Um caçador foi capaz de apanhar um javali, sozinho. A caminho da sua caverna adormece.
Um outro homem passa por lá, e decide levar o javali morto.

O que este homem fez é condenável?

Eu creio que sim.
Mas a questão que me parece mesmo importante é: porquê?


A resposta mais simples, influenciada pela intuição irreflectida, ou por ensinamentos religiosos rígidos e interiorizados, é que a acção constitui roubo. O qual é condenável.

Se for dada esta resposta, sem mais, o direito de propriedade torna-se totalmente sagrado e inviolável. O que pode resultar em situações bem bizarras.


Imaginemos agora que o homem que passou por lá, por alguma razão que agora não vou explicar, precisaria desse javali para poder salvar a vida de 7 elementos da sua tribo. Imaginemos que ele sabe que o caçadaor nunca acederá caso ele peça o javali, mesmo que faça inúmeras promessas de pagamento futuro.
Parece óbvio que "roubar" se torna a decisão eticamente correcta.


Assim sendo, se roubar pode ser a decisão eticamente correcta ou eticamente errada, porque é que às vezes é a decisão correcta e outras vezes é a decisão errada?


A resposta está nas consequências. O roubo, em geral, é errado porque as suas consequências são nefastas do ponto de vista do bem comum: as pessoas são menos incentivadas a produzir bens, e existirá um gasto desnecessário de esforço e recursos a proteger os nossos bens de terceiros. Isto para não falar nas questões da violência, das mortes, etc...

Mas é exactamente este o critério de acordo com o qual a propriedade privada deve ser defendida: o bem comum. E não nenhuma sacralização injustificada.
E assim sendo, torna-se natural que em muitas situações a defesa do bem comum não passe pela defesa da propriedade privada.

O exemplo do roubo do javali para salvar vidas pode parecer disparatado à primeira vista. Mas é uma forte razão para defender o serviço nacional de saúde. Imaginemos que se estima que a esperança média de vida, mantendo o SNS, é superior em um ano àquela que se verificaria se o sistema de saúde fosse inteiramente privado. Em média isso seria o equivalente a dizer que em cada 100 pessoas a vida de 3 tinha sido salva pelo facto do SNS ser público.
Portanto, não se coloca apenas a questão de saber se os impostos são "um roubo", mas também a de saber se não são "um roubo que salva vidas".

Falácias da Ética Neo-Liberal I - a questão

A palavra «liberal» é uma palavra confusa.

Dependendo dos contextos, pode designar qualquer posição tendencialmente libertária, pode designar qualquer posição favorável a uma menor intervenção do estado na economia, pode designar ambas estas posições, e ainda pode designar qualquer posição de esquerda (nos EUA, por exemplo).

Quando falo em «ética neo-liberal» uso esta última palavra para evitar estas confusões. Refiro-me à posição segundo a qual a coerção e a violência são condenáveis, a menos que sejam usadas para evitar coerção e violência; que o direito à propriedade é tendencialmente inviolável; e de que as relações ou contratos livres entre as pessoas apenas a estas dizem respeito e não devem poder ser limitados por nenhuma entidade exterior.
Como consequência prática destes princípios, o estado deve ser muito pouco interventivo em todos os domínios da vida económica e social, devendo tendencialmente limitar-se a pouco mais que a administração da justiça.


Existem fundamentalmente dois tipos de neo-liberais.

O primeiro é aboslutamente minoritário, mesmo entre os neo-liberais: é um genuíno amante da Liberdade. Acredita que uma sociedade contruída desta forma será uma sociedade onde as pessoas vivem melhor, que é uma sociedade mais justa, pois qualquer outro tipo de sociedade contém restrições à Liberdade que sempre considerará indesejáveis. Manifesta as suas posições tanto no plano económico como no plano social com igual convicção.

O segundo tipo está associado a algumas pessoas que tendem a confundir a posição eticamente correcta com a posição «tacticamente» correcta: o tipo de pessoas que numa espécie de cinismo adopta a «moral dos vencedores», que é uma posição pseudo-amoral segundo a qual merece admiração quem «triunfa», pouco importa como.
Para estas pessoas, que constituem a grande maioria da «opinião neo-liberal» publicada e ouvida, pouco importa que se demonstre como as suas opiniões conduziriam a um mundo pior. A partir do momento que estejam convencidas que os seus interesses pessoais fossem benefeciados com uma medida em concreto, tenderão sempre a defendê-la sem qualquer reserva.
E poucos lhes importará qualquer tipo de argumento em nome do «bem comum», pois, revendo-se nos outros, duvidam que quem quer que seja esteja genuinamente preocupado com o bem comum, tão bizarro lhes parecerá qualquer pensamento altruista.


Mas com os primeiros, o debate é possível.
É portanto para eles que dirijo os textos que se seguem, os quais procuram desmontar as falácias da ética que adoptaram.

segunda-feira, 7 de agosto de 2006

Petroguerras

Enquanto os israelitas destroem o Líbano porque sim (porque acreditam na vingança como um direito fundamental e porque os políticos têm de fazer alguma coisa perante uma situação sem solução: a promessa de um estado ao mesmo tempo democrático e judeu no meio de um Médio Oriente onde a demografia impossibilita completamente esta ideia) e os neo-cons americanos acham que se consegue amedrontar os fanáticos sanguinários que mandam no Irão com uma demonstração de força na região... o azedume da maioria dos árabes e da maioria dos mussulmanos contra os assassinos do Hezbolah vai-se esfumando!

Acho que já escrevi aqui (ou no Oeste Bravio) que vi uma reportagem de um jornalista turco sobre o Al-Qaeda em que ele contava que os bandoleiros com quem viveu só falavam das virgens que iam violar no céu quando os soldados americanos os matassem. E George Bush (e o seu fiel Tony Blair) acreditam que se pode amedrontar esta gente com bombas e com tiros.

Entertanto, hoje ouvi uma entrevista com Juan Cole que fazia imenso sentido.

domingo, 6 de agosto de 2006

A paz derrotada

Passado um mês desde o início do conflicto a rivalidade interna, ainda que sutil, da coligação no poder em Israel já se faz sentir e mostra como em boa parte as origens deste conflicto se explicam do lado israelita por razões políticas. Enquanto o primeiro-ministro, Ehud Olmert, anuncia repetidamente uma vitória virtual sobre Hezbollah preparando o terreno político em casa para o cessar-fogo que se adivinha, o seu ministro de Defesa e cabeça dos laboristas israelitas, Amir Peretz, apressa-se em aproveitar os últimos momentos de conflicto para provar para o eleitorado israelita que sabe ser mais guerreiro que ninguém, publicitando suas intenções de emular a invasão de 1982 e ocupar o sul do Líbano até às margens do rio Litani a 32 km da fromnteira com Israel. (A verdade no entanto é que pelo menos quinta-feira à noite, porta-vozes militares israelitas apenas asseguravam ter o controle sobre uma área que ia de um a sete quilómetros dentro das fronteiras libanesas, ao mesmo tempo, que situavam a meta oficial assumida como estando em 15 quilômetros.) À necessidade de Olmert de provar para Israel que era realmente o herdeiro político de Sharon, necessidade que pelo menos em parte o terá levado a esta guerra, parece suceder-se uma competição entre laboristas e kadimistas por saber quem dos dois é mais Sharon. Podemos pensar que quer por parte de Olmert como de Peretz o discurso militarista intransigente actual seja apenas para consumo interno, mas além deste discurso entretanto terminar por obrigar a uma militarização que o credibilize, servirá também à valorização das posturas israelitas conservadoras na oposição e em contra de qualquer nova retirada unilateral de territórios ocupados.
###Estamos falando da deriva radical das duas únicas alas políticas importantes que desde Israel poderiam contribuir ao processo de paz. Um mês atrás o único contributo importante disponível para o processo de paz entre Israel e Palestina se encontrava precisamente no plano unilateral iniciado por Sharon de retirada do exército e desmantelamento unilateral dos colonatos israelitas em Gaza, e cuja continuação na Cisjordânia, já anunciada inicialmente por Sharon enquanto estava no poder, era defendida por Olmert e fez parte do seu compromisso eleitoral. Este plano foi em grande parte o responsável por que Europa, e também os países árabes moderados, se juntassem a Estados Unidos na pressão sobre a Autoridade Palestina e o Hamas na necessidade de estes darem passos credíveis de moderação e conciliação com Israel, o que permitiu chegar ao compromisso parcial de reconhecimento do Estado de Israel que o Hamas finalmente assinou nas vésperas de toda esta crise, a qual tão pouco é alheia. Agora este plano unilateral de retirada israelita parece estar em perigo. Se Olmert em uma entrevista recente confirmou que acreditava que a "vitória" de Israel no Líbano contribuiria para a renovação do projecto de retirada unilateral da Cisjordânia, depois das críticas que lhe choveram em seguida por parte da direita israelita e em particular, é claro, dos colonos, se viu obrigado a negar o que antes havia dito. Se a radicalização do eleitorado israelita, que parece estar acompanhando este conflicto no Líbano, fecha as portas a qualquer passo em direcção à paz por parte de Israel, as negociações com os palestinos estarão definitivamente perdidas durante os próximos anos, já que do lado árabe e palestino é dificíl pensar que a actual situação contribua em qualquer bom sentido.

A deriva radical se faz notar não só na desproporcionalidade do ataque israelita mas também no discurso das autoridades israelitas, e isso é tão perigoso como o outro pois demonstra que a sociedade israelita ao não escandalizar-se com o que se vai dizendo está preparada, e pior, talvez desejosa deste radicalismo. Quando o chefe das forças armadas, Dan Ahlutz, diz que vai fazer retroceder o Líbano 20 anos atrás, sem que haja reacções importantes nem sequer por parte dos moderados israelitas, assistimos à triste perda do capital moral que Israel possuia se comparado com os seus inimigos antes do conflicto. Na verdade este tipo de declarações apenas difere em grau das declarações de destruição do Estado de Israel realizadas pelo Hamas, o Hezbollah ou Irão. E não se trata de algo isolado. Antes de ontem um porta voz do governo israelita terá afirmado a propósito da morte de três cidadãos israelitas por um foguete katiusha lançado por Hezbollah que, "se confirmaram três mortos: um druso e dois árabes-israelitas. É sexta-feira [dia sagrado dos muçulmanos], um bom dia para morrer." Só faltou que chamasse os dois israelitas mortos de "arabushim"...

Estamos assistindo à transformação explícita do executivo israelita em tudo que Israel sempre afirmou odiar, e a oportunidade do Hezbollah apresentar-se realmente como uma força de defesa nacional, o que junto significa uma dupla vitória para os radicais islâmicos. As pressões desde fora, e principalmente desde Europa, sempre significaram pouco ou nada para Israel, assim que será importante que os moderados israelitas desde dentro de Israel acordem do seu sono confuso rapidamente para bem do sentido de dignidade do seu país.

quinta-feira, 3 de agosto de 2006

Hezbollah 200 - Israel 5

Depois de mais de 20 dias do inicio da ofensiva israelita a guerrilha xiita libanesa do Hezbollah lançou ontem mais de 200 foguetes contra Israel, o que se trata de um recorde. No mesmo dia Israel lançava uma operação ambiciosa envolvendo vários comandos apoiados por helicópteros e aviões de combates, invadindo um hospital financiado pelo governo iraniano na cidade libanesa de Baalbek, vale de Bekaa próximo da fronteira com Síria. O objectivo seguramente seria o de sequestrar líderes do Hezbolla, o resultado final da operação foi no entanto o sequestro de 5 integrantes sem importância da milícia xiita. O caso é para dizer que a montanha pariu um rato mas o chefe do Estado Maior de Israel, Dan Halutz, insistiu que a operação de mais de quatro horas de duração havia sido um êxito e que todos os seus soldados haviam retornado sãos e salvos, e que o seu exército havia deixado claro que era capaz de golpear o inimigo em qualquer lugar do Líbano. No entanto há mais de 10 anos, em 1994, Israel já havia deixado claro do que era capaz, pois sem uma campanha de ataques aéreos massivos prévios, e em uma operação semelhante e na mesma zona, o exército israelita havia sido capaz de levar-se a um dos líderes do Hezbollah que dez anos depois seria utilizado em uma troca de prisioneiros. A operação de ontem eventualmente o que realmente terá demontrado então, uma vez mais neste conflicto, é que as coisas já não são as mesmas nem para o exército de Israel.
###Soa estranhamente falso ouvir Olmert dizer, também ontem, que acredita que o Hezbollah foi já desarmado e 700 de seus postos eliminados, no mesmo dia em que o Hezbollah alcançava o seu recorde numérico e de distância no lançamento de foguetes contra alvos israelitas. Neste mesmo dia por outro lado o seu braço militar afirmava pela boca do já citado Dan Halutz, que apenas cerca de 300 terão sido realmente eliminados. As confusões acumulam-se. O mesmo Dan Halutz, dia 27 de Julho, teria afirmado que "não há solução militar para este conflicto", para uma semana e meia depois voltar a insistir que "nada pode deter Israel até que este alcance os seus objectivos". Israel parece desorientado, ou a querer aparentar que está desorientado, com a sucessiva apresentação de vitórias mais que dúbias (exemplo maior os vários anúncios de conquista de Bint Yebel correspondentemente desmentidos pelo continuar dos combates) ou a encenação de grandes vitórias a propósito de conquistas de pequenas aldeias. Para colmo se contabilizam em um centenar de milhões de dólares as perdas econômicas diárias de Israel geradas pelo conflicto, e em particular, pela paralização do norte de Israel, onde só Haifa representa de 20% a 25% dos sectores do comércio, serviços e indústria do país. Se além disso somamos a facilidade com que as cifras da ordem de centenas de mortos entre militantes do Hezbollah (mas poucos mortos ou prisioneiros entre os seus líderes) serão substituídas em um futuro Líbano econômicamente destroçado, e onde o ódio a Israel se terá multiplicado milhares de vezes, é dificíl desde um ponto de vista realista, não aceitar que esta aventura militar do executivo Israelita figurará seguramente como um dos maiores falhanços da história do seu país. Para isso nem precisamos incluir o impacto que todo o conflicto tem para a diplomacia israelita e para o agravamento dos ódios que Israel acumula no mundo árabe vizinho. De qualquer forma tal como uma vez terá dito Kissinger: Israel não possui política exterior... mas digo eu que o problema é que tem exterior, com política ou sem política para ele.

O resultado global deste conflicto dificilmente é de festejar seja por quem seja, a não ser pelos inimigos da paz. E tudo provavelmente pela insegurança de um executivo israelita sem medalhas militares no peito para escudar a cautela perante os sequestros de soldados, e havendo-se visto cercado pelo que parece realmente ter sido uma mostra de força relativa dos radicais, que pelo menos influenciados por interesses iranianos e sírios, realizaram simultâneas operações de sequestros de soldados em ambas frentes palestina e libanesa, respectivamente organizadas pelo Hamas e Hezbollah. E provavelmente também por pressão dos falcões militares israelitas que há bastante tempo alertavam para o real fortalecimento da milícia xiita libanesa. Dada a fragilidade política interna de Olmert em Israel naquele momento, tudo parece se ter conjurado para que o seu executivo não soubesse ver claro o suficiente e evitar assim os danos futuros e imediatos de uma acção militar em que finalmente e infelizmente se terminou por meter.

Para cúmulo de tudo isso um Estados Unidos da América liderado pelo pior chefe político da sua história recente, não soube perceber a importância, inclusive do próprio ponto de vista dos interesses norte-americanos na zona, de (nem que seja ao nível das aparências, já que em política o que parece também é) manter um mínimo distanciamento em relação à política israelita, tal como o seu antecessor Clinton e até mesmo o Bush pai souberam fazer, com o fim de poder assim ser considerado como interveniente minímamente aceitável por parte do mundo árabe com credencial de freio de Israel. Imagino que por todo o mundo Árabe, com felicidade ou com tristeza, de Irão à Árabia Saudita, se está tomando nota de tudo isso neste momento, e seria importante que algo fizesse com que estas notas fossem revistas. Para Israel, e em boa verdade também para todo o Médio Oriente e o mundo, o que pode surgir de aí é particularmente perigoso. Se Estados Unidos deixa que seja Israel a decidir a sua política para o Oriente Médio não está a criar uma potência regional com capacidade de influência, Israel nuna poderá vir a ser tal coisa, apenas cria vazio que alguns dos actores mais ou menos radicais da zona procurará desesperadamente preencher. Entretanto Irão já se colocou por agora como primeiro da fila, mesmo que por sua ascendência xiita tenha poucas chances de o lograr de forma completa.

Nestes dias pudemos ouvir dizer o chefe de tropas israelitas Dan Halutz textualmente a barbaridade de que por cada Katiusha lançado contra Israel, Israel bombardearia 10 edificíos dos bairros xiitas, e que faria retroceder o Líbano 20 anos, provando mais tarde que é cumpridor de suas promessas. O principal problema da barbaridade israelita se revelará como sendo a sua ineficiência. Nos gostaria acreditar nas informações sobre uma vitória sobre o Hezbollah para bem de Israel e de Líbano, mas o nosso cepticismo nos proibe tal coisa. E fica então só a barbárie sem desculpas que não seja a incopetência que é pouca desculpa. Atrás do resultado de alhos e bugalhos que dá titúlo a este post se esconde o resultado ainda temporal muito mais desagradável de pelo menos 177* crianças contabilizadas mortas só no Líbano desde o ínicio do conflicto até hoje. O problema é que por detrás deste número de três digitos estão realmente crianças. Mortas. Mas como não queremos terminar este post assim, e tentando ser construtivos em meio de tanta porcaria, e já que não podemos desejar por cépticos que o Hezbollah tenha realmente sido desarmado tal como nos querem fazer acreditar as altas instâncias israelitas, nos falta desejar que no futuro próximo Israel tenha mais sorte com os seus líderes e que estes tenham mais felicidade nas suas decisões, para bem da sempre insegura segurança nesta zona do mundo. E já agora que os americanos saibam escolher melhor os seus mais altos representantes no futuro, para bem da segurança no mundo inteiro. E me perguntam sobre Palestina, Líbano, Irão, etc, etc: não queres desejar que saibam também eles escolher melhor os seus líderes? Sobre estes não vale a pena fazer depender demasiadas ilusões e esperanças por agora, e agora mesmo por "culpa nossa" ainda menos. Que sejamos mais responsáveis, apesar da irresponsabilidade de outros, será no final de grande ajuda para que os outros consigam também vir a ser-lo.

*Entretanto as cifras totais aproximadas avançadas pelo primeiro-ministro libanês, Fuad Siniora, diz que seriam em realidade 900 o número de mortos libaneses desde o inicio do conflicto, um terço dos quais com menos de 12 anos, além dos 3000 feridos e um milhão de deslocados. Do lado israelita as fontes públicas deste país somam para o lado de Israel 27 mortos civis e 39 baixas militares. Se temos em conta que o primeiro-ministro cifra em 700 o número de militantes do Hezbollah mortos nos ataques e combates, parece que apenas quereria deixar de fora as crianças, e não todas... Um caso mais para o compêndio histórico de hipocrisias que se escondem por detrás das contabilidades macabras das guerras.

O que não está nas fotos

Em um post de leitura quase impossível pelo peso das inúmeras imagens de alta definição apresentadas, Daniel Oliveira insiste pelo menos duas vezes no relato da sua viagem pela Síria que a ligação deste país com Irão é apenas estratégica e não religiosa, e no entanto isso não é de todo verdade, nem muito menos. Os alawitas, a que pertence a família Assad no poder sírio, são na práctica uma seita xiita, tal como estes acreditando na tese fundamental de que Ali (de onde vem o nome alawita), primo e genro do Profeta, viu a sua herança de poder roubada pelos três califas, em oposição clara aos sunitas.
###Também, se bem que oficialmente não se admita, os alawitas ocupam posições de poder no governo, no exército, etc, desproporcionais com relação à sua demografia relativa: pouco mais que 10% da população síria. Os alawitas sírios possuem um largo historial de conflicto com a maioria sunita do país. Ajudaram os franceses no mandato destes útlimos a reprimir a insurgência sunita no país. E já com Assad no poder a revolta islâmica contra a ditadura elegeu os alawitas como um dos alvos preferenciais. Por outra parte é verdade que os Assad demonstraram grande sabedoria ao longo dos tempos recentes na gestão do problema, nunca fazendo alarde da sua identidade religiosa específica e incorporando vários sunitas em posições de poder neste país, onde são a grande maioria, claramente em oposição a política por exemplo seguida por Saddam no Iraque, de repressão e humilhação sistemática da maioria xiita. Essa sabedoria é a grande responsável pelo facto de que a eternamente esperada (por israelitas e americanos, mas não só) guerra civil síria até agora não tenha chegado. De qualquer forma a afiliação dos Assad aos xiitas por via alawita não pode ser desprezada assim tão levianamente quando queremos compreender a relação íntima entre os governos sírio e iraniano, e também a cooperação total que ambos partilham com o Hezbolah libanês, também xiita.

Estes factos muito importantes para entender tanta coisa sobre o Médio Oriente não aparecem na foto-viagem do Daniel (que tem por outro lado muitas coisas, entre fotos e descrições de lugares, que a mim me gostaria conhecer de perto já que do mundo islâmico ainda não fui, para muita pena minha, mais além de Marrocos, Tunisia e Turquia, e tal como no seu caso, imagino, eu também sinto muito maior interesse pelos países árabes que por conhecer mais Europa) mas podem ser encontrados, quase tal qual como as apresento admito, no muito interessante livro de Robert Fisk: The Great War for Civilisation: The Conquest of the Middle East. Imaginando provavelmente ser mais sensível que o Daniel Oliveira à algumas, apesar de tudo poucas, parcialidades do jornalista de guerra inglês, sei que ele também aconselhou a leitura do livro no programa de televisão em que participa, e entendo que no entanto não o tenha lido inteiro, ou então que não se recorde de tudo. Ninguém o poderia já que falamos de um verdadeiro "calhamaço" de mais de mil páginas. Um conselho portanto, se ainda não o fizeram e quiserem, comprem, mas deixem para ler depois de Agosto e depois das praias...