segunda-feira, 29 de outubro de 2012

tudo comme il faut?

ao reler A Morte de Ivan Ilitch - grande escritor, Tolstói! - deparo-me com a questão do tédio. Ivan Ilitch desejava a rotina e tudo comme il faut. mas depressa a sentia insuportável. e tanto tanto que inventou uma dor. uma à qual deu o poder de se tornar real e fatal. é esta insatisfação radical humana assim tão incontornável? a rotina deste Ivan era uma rotina confortável - assim no-la descreve o escritor. era daquelas onde não faltava o conforto e a ilusão de ter alcançado o mais ambicioso projecto. ainda que oco e falso. sim será preciso existir completamente alienado na busca de alguma coisa e não ter tempo de sobra para pensar mais profundamente. pois será preciso tudo isso para escapar à mais cruel consciência. essa mesma que promete estragar todos os nossos devaneios.
o tédio pode ser perigoso. é do spleen que vem toda a espécie de artimanhas. provavelmente virão igualmente dele os grandes feitos humanos. e as grandes reflexões. como a de Ilitch perante a morte e a sua tão humana fragilidade.
mas enquanto o tédio nos domina e nos leva a mergulhar mais ou menos profundamente na voracidade do ser... enquanto isso há outros que instalados na rotina sem queixume dão continuidade ao seu plácido decurso. e assim conquistam os melhores lugares. Ivan Ilitch caiu no erro de querer ir mais além... para viver (e bem!) é preciso ficar à superfície. exactamente aí onde tudo permanece comme il faut.

domingo, 28 de outubro de 2012

colorir...



melancolia

    
Albrecht Dürer, Melancolia I (detalhe) - 1514

Como são as coisas. E aquilo que as guia: um nada. Li um dia esta frase, e agora penso nela. E afinal: somos nós que procuramos ou somos procurados? Também isto carece de reflexão. (...) Ando de um lado para o outro, à toa, demoro-me no bistrot até ele fechar, depois levanto-me e caminho.  
O médico disse-me: você é o exemplo clássico do homo melancholicus. Mas Dürer desenhou a melancolia sentada, objectei, a melancolia não dispensa uma cadeira. A sua melancolia é diferente, sentenciou, é uma melancolia móvel. E receitou-me exercícios motores. 
Antonio Tabucchi, Está a fazer-se cada vez mais tarde

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

ah Camilo!

É meia-noite e um quarto no relógio da Lapa.
(...) Os poetas, que amam em verso, são uns puros desinfectantes da pútrida impureza. Se todos fizéssemos versos, e nos amássemos em oitava rima, eu lhes asseguro que este globo era um viveiro de anjos. A teoria de Hobbes seria uma calúnia, e a de Malthus um absurdo. Não andaríamos travados em permanente luta, nem a exuberância da propagação assustaria os economistas. Havia só o risco de nos matar a fome; mas cada cisne teria um canto derradeiro com que esforçar a guerra à prosa que inventou os cereais, o boi cozido, as acções do banco, e a troca de um romance por quinhentos réis.
Isto ocorreu naturalmente da castidade da lua. 
Era, pois, meia-noite e um quarto no relógio da Lapa, e fazia luar como de dia.
 
Camilo Castelo Branco, O Que Fazem Mulheres

a bela música que afirma Pereira



sábado, 20 de outubro de 2012

Manuel António Pina [1943-2012]


NA BIBLIOTECA

O que não pode ser dito
guarda um silêncio
feito de primeiras palavras
diante do poema, que chega sempre demasiadamente tarde,

quando já a incerteza
e o medo se consomem
em metros alexandrinos.
Na biblioteca, em cada livro,

em cada página sobre si
recolhida, às horas mortas em que
a casa se recolheu também
virada para o lado de dentro,

as palavras dormem talvez,
sílaba a sílaba,
o sono cego que dormiram as coisas
antes da chegada dos deuses.

Aí, onde não alcançam nem o poeta
nem a leitura,
o poema está só.
‘E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.’

Manuel António Pina, in Poesia - Saudade da Prosa - uma antologia pessoal, Assírio & Alvim, 2011

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

mitos para o nosso tempo

Keith Haring, Untitled, 1982

Matar a Hidra foi o segundo dos 12 trabalhos de Hércules. A versão grega da história é, provavelmente, a mais conhecida. Confrontando-se com a monstruosa Hidra, uma serpente com muitas cabeças - entre nove e cem -, Hércules percebeu que assim que cortava uma delas, logo duas cresciam no seu lugar. Com a ajuda do seu sobrinho Iolau, aprendeu a manejar um tição para cauterizar o pescoço da besta. E assim mataram a Hidra. Hércules mergulhou as suas flechas no sangue da besta morta e o seu veneno deu-lhes o seu poder fatal. 

Peter Linebaugh e Marcus Rediker, A Hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos e a classe trabalhadora atlântica no século XVIII

domingo, 14 de outubro de 2012

romântico ou realista?


René Girard acerca de D. Quixote
 

povo (II)

Esforçarmo-nos por pôr em evidência comportamentos políticos «populares» supõe também admitirmos que o povo constitui um grupo identificável, suficientemente homogéneo apesar da sua diversidade social efectiva. Este grupo popular não poderá ser creditado de uma consciência de classe, cujo aparecimento é de resto inseparável da existência de uma ideologia claramente formulada e de organizações encarregadas de a transmitirem. Mas seguir-se-á daí que não tenha qualquer consciência política, ainda que muito sumária? E se a tiver, de onde provém ela? Entre os diferentes sentidos da palavra popular - aquilo que é manifestação própria do povo (movimentos populares), aquilo que o povo assimila e eventualmente transforma através dessa assimilação (a religião popular), aquilo que utiliza, consome e aprecia (a literatura popular) -, será o primeiro sobretudo, e ocasionalmente o segundo, que reteremos. Através desta escolha, supomos - o que não é forçosamente evidente - que o conjunto de ideias e de representações, de formas de organização e de acção que os historiadores muitas vezes associaram ao povo, lhe pertencem como características próprias, não são nem o decalque de ideias oriundas das classes dirigentes, ou emanando mais precisamente de uma classe social - a classe operária, por exemplo -, nem enfim uma criação sui generis resultante do próprio processo político, ou correspondendo simplesmente a um aspecto de um fenómeno muito mais amplo, como a mobilização política, por exemplo. (...)
Admitir a existência de comportamentos políticos populares não conduz somente a uma melhor compreensão de uma fase determinante da história das nossas sociedades contemporâneas. Menos inactual do que se poderia crer, é uma operação que pode também, segundo cremos, conduzir a uma abordagem mais fina da política hoje.
Raymond Huard, Existirá uma «política popular»?

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

povo (I)

Qualquer interpretação do significado político da palavra «povo» tem de partir do facto singular de, nas línguas europeias modernas, ela designar sempre também os pobres, os deserdados, os excluídos. Uma mesma palavra nomeia, assim, tanto o sujeito político constitutivo como a classe que de facto, senão de direito,  está excluída da política. (...)
Hannah Arendt lembrou que «a própria definição do termo nasceu da compaixão e a palavra tornou-se sinónimo de má sorte e de infelicidade - o povo, os infelizes aplaudem-me, costumava dizer Robespierre; (...)».  (...)
Uma ambiguidade semântica tão difundida e tão constante não pode ser casual: deve reflectir uma ambiguidade inerente à natureza e à função do conceito de «povo» na política ocidental. Tudo se passa, pois, como se aquilo a que chamamos povo fosse na realidade não um sujeito unitário, mas uma oscilação dialéctica entre dois pólos opostos; por um lado, o conjunto Povo como corpo político integral, por outro, o subconjunto povo como multiplicidade fragmentária de corpos necessitados e excluídos; no primeiro caso, uma inclusão que se pretende sem restos, no segundo, uma exclusão que se sabe sem esperança; num extremo, o Estado total dos cidadãos integrados e soberanos, no outro, a coutada do bando - corte dos milagres ou campo - de miseráveis, de oprimidos, de vencidos.
Giorgio Agamben, O que é um povo?

sábado, 6 de outubro de 2012

que ponham as mãos na massa!



o dia 5 de Outubro de 2012, feriado nacional que considero dos mais importantes, e que está fadado a desaparecer do mapa enquanto tal, foi triste. um incidente algo caricato com o hastear da bandeira portuguesa deu origem a mais um longo e intenso capítulo do teatro político-social deste país. pois é de lamentar, é verdade. o acontecimento terá certamente uma explicação, e é bom que ela conheça a luz do dia e seja divulgada. por outro lado, o sucedido é insólito e suscita-me até uma certa curiosidade. mas é isso e talvez pouco mais. até podemos alimentar uma série de conjecturas sobre... mas não sei se valerá a pena.
grave, grave, e sintomático, isso, sim, é o facto de que um dia tão importante como o do aniversário da República, seja comemorado praticamente à "porta fechada". isto, sim, repito, é sinal grave e óbvio de que muita coisa não vai bem. e o que será? tanta coisa, sabemos. desde logo, uma inédita dissociação entre instituições e povo. não estou a dar nenhuma novidade. mas sinto ser meu dever dizê-lo. 
o diagnóstico do mal-estar desta civilização, parafraseando o velho Freud, está feito: há problemas com o capital. e todos dependemos dele, de uma ou de outra forma. os críticos do sistema capitalista - como eu, nas horas vagas - deveriam assumir que estão plenamente mergulhados nele e que não há soluções milagrosas.
ora, mais do que alimentar e participar em bailinhos e romancezinhos político-ideológicos, o que importa, o que é preciso, é resolver os problemas concretos e reais das pessoas. descobrir soluções efectivas. e vejo poucos dedicados a isso. tenho ainda esperança que apareçam. porque sei existir gente capaz. serão tecnocráticos, aqueles a que me refiro? talvez. mas que sejam bons técnicos. dos bons! que tentem resolver os problemas reais. que "ponham as mão na massa". e que o façam com sentido de justiça e equidade. mas que saibam o que isso é e o que isso implica. que tenham coragem. não a de levar a fome e o desespero às pessoas, mas a de distribuir os escassos bens por todos, atendendo à premência das suas necessidades, e assegurando um mínimo de dignidade à existência dos mais desfavorecidos.
em dias de fome, não há muito tempo para elegantices argumentativas. o argumento de peso é matar a fome. que se unam os que sabem e os que podem para o fazer. o resto é bruáááá...

Regresso ao futuro

Muitas vezes, diz-se: nunca regresses a um lugar onde já foste feliz. Mas como não procurar todos os lugares que nos parecem compatíveis com...