Crônica incluída na 1ª Antologia de Crônicas Cariocas
Era bem fácil ser criança, em Cascadura, lá pelas bandas dos anos cinquenta. O futuro ficava bem depois das Ipanemas que, perdido entre piões, bolas de gude e cerol, nem sabia se existiam. Os dias eram enormes e a pobreza era disfarçada sob o manto da simplicidade, sem grifes nem crediários em atraso. Tudo simples como pão com manteiga e café com leite. Os dias começavam com galos estridentes e terminavam com os acordes finais de “Jerônimo, o herói do sertão”. Por vezes, driblava a vigilância da avó e conseguia saber alguma coisa do “Anjo”, que vinha logo depois e nada mais. Janete Clair, nem pensar! Não era coisa pra criança...
Aos sábados, brincava de gente grande passando o esfregão com palha de aço na sala ou lavando a cozinha pra poder escorregar no chão ensaboado. Nenhum Bush, nenhuma camada de ozônio, nenhum MST. As únicas balas perdidas eram as “Ruth” carimbadas, que não achava nunca. A vida era enredomada de céus azuis onde pipas coloriam a fantasia.
Os primeiros desenhos, os primeiros textos, os primeiros sonhos. Mas tudo escondido, porque ser poeta era coisa de maluco. “Filho de pobre tem que ser doutor”. Assim, minhas vidas secretas começavam sem que me desse conta. De dia, o moleque, o garoto que fugia do banho frio e que não limpava direito atrás da orelha. À noite, o irreverente, o sonhador entregando-se, no escuro, às primeiras letras. Era o despertar da clandestinidade.
O tempo fez a parte dele e eu, creio, a minha. Hoje, quando os arautos do ocaso, qual gaiteiros escoceses emergindo da névoa densa que chamei de vida desenham suas silhuetas aqui, ao meu lado, resgato aquele menino que foi, sem favores, um dos melhores de mim. O corpo desconhecia a dor das torturas e a alma, o calvário das paixões perdidas. O sorriso era franco, sem censuras, sem medos de esquinas e os amigos eram possíveis, tipo “pra sempre”.
Tudo funcionava numa rotina que não aprisionava, que descortinava experiências maravilhantes: as tranças da tia normalista, os vincos perfeitos que levavam o tio sacana para as noites de gafieira, o quiabo com linguiça e até a cama Drago, dobrável, que toda noite dava um jeito de beliscar minhas coxas no quarto de paredes repletas de flâmulas colecionadas.
Agora, me pego lembrando essas coisas, enquanto olho para mais um copo do velho uísque, suada e inútil válvula de escape de desilusões acumuladas, e rio. Rio muito sem me aperceber que sou observado por alguns curiosos parceiros de bar. E lembro que, naquele tempo saudoso, dentre os meus ritos secretos, havia um, ao menos intrigante: fazia xixi, todas as noites, quisesse ou não, pois minha avó assim ordenava. Na volta do banheiro, atravessando a cozinha, bebia um copo de água de moringa e ficava um tempão olhando para outro copo, onde minha saudosa vozinha depositava sua dentadura. Nunca entendi aquele estranho hábito dos adultos e confesso, na cabeça de menino sonhador, acreditava que minha avó ficava triste ao dormir.
Ficava imaginando se ela conseguia sonhar ou se suas noites eram uma sucessão ininterrupta de pesadelos. Afinal, seu sorriso estava ali, bem diante dos meus olhos, sem nenhuma serventia, mergulhado num copo d’água, privando aquela mulher dos últimos vestígios de vaidade...
Pensando bem, chega de bebidas por hoje. Copos roubam sorrisos.
Anderson Fabiano
Imagem: Google
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18/09/2010
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