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sábado, maio 02, 2009

press.

PONTO DE FUGA
o texto integral



1. Que projectos para breve?
Depois de um 2008 ocupado essencialmente com o projecto curatorial A Oportunidade do Espectador e a peça Espectáculo de Teatro, estou neste momento em fase de pesquisa e investigação para o projecto que se segue, a criação de um dispositivo virtual e interrelacional de educação trans-artística ao qual chamarei Universidade. Conto que o ano zero arranque lá para o fim de 2010. Até lá, tenho dois catálogos de projectos anteriores para editar, algumas reposições do Vou A Tua Casa (dentro e fora de portas) e ainda um filme sobre Amares, a minha terra natal.

2. O que interessa divulgar neste momento do seu trabalho?
A peça infantil que vou co-criar e interpretar a meias com a Sónia Baptista e o Miguel Bonneville, com base nas "Histórias em verso para meninos perversos", de Roald Dahl. Estreia no Teatro do Campo Alegre, no Porto, em Outubro.

3. Qual a banda sonora dos seus dias? Ou seja, que discos e temas anda a ouvir em casa, no carro, na rádio, no leitor mp3? E para que momentos?
Em loops infinitos, o novo dos Pet Shop Boys ("Yes"), que oiço em todo o lado enquanto sonho com férias de verão na Riviera Francesa. Em loops mais contidos, os novos da Peaches (na rua) e dos Grizzly Bear (na cama). Em loops normais, as 42 músicas do Festival Eurovisão da Canção 2009. E depois oiço sempre, e em todo o lado, dois dos meus mais insistentes guilty pleasures: Scooter e Jean-Michel Jarre (discografias completas, remisturas, b-sides, colaborações e raridades); uma aliança franco-germânica que é não só a banda sonora dos meus dias, mas também a cara chapada da minha persona criativa.

4. Qual o último filme a arrebatar-lhe os sentidos e porquê?
Não vou muito ao cinema. O último filme que me arrebatou os sentidos (entre outras coisas arrebatáveis) vi-o em casa e foi o "The 5 Obstructions", do Lars von Trier vs. Jørgen Leth. É de 2003, mas só o vi em 2007; desde então, a obsessão já me fez revê-lo umas boas 20 vezes.

5. A que político aconselharia? E porquê?
Honestamente, a nenhum. Os políticos (portugueses) já são exímios em desenvencilhar-se criativamente de obstáculos duros de roer. Mas aconselharia vivamente o filme a todos os soit disant "programadores culturais" (portugueses), que são mais "políticos" que os políticos todos juntos.

6. Que espectáculos de palco pensa ver? Porquê?
Sou daquelas pessoas velhas e execráveis que praticamente já só vê os espectáculos dos amigos e não tem paciência para os restantes. Estou em pulgas para me sentar na primeira fila do renovado S. Luiz para ver "Demo", o musical do Teatro Praga. Acho que é em Julho.

7. E quanto a literatura? Está a ler algum livro de momento? Se sim, qual e porquê? O que está a achar?
Deixei de ler poesia em 2002. Deixei de ler romances em 2005. E deixei de ler ensaios (sobretudo filosóficos) em 2008. Já só leio livros de cozinha, e leio-os como quem lê poesia, romance e ensaio. Basta-me. Recomendo o magnânime "A Day at elBulli", sobre e à volta do chef catalão Ferran Adrià, uma edição de luxo da Phaidon.

8. Qual o último livro que abandonou a meio? Porquê?
Que me lembre, nenhum. Sou um emo-conceptual insistente e de pendor assumidamente masoquista: vou até ao fim, mesmo quando não estou a gostar. Gostaria de ter a coragem de um dia poder abandonar a meio qualquer coisa que me estivesse a agradar imenso.

9. Qual a sua arte da fuga predilecta? (ou seja, quanto está de folga ou férias, disponível para ócio, o que prefere fazer na cidade?)
Prefiro a casa à cidade. Nesse sentido, a minha arte e a minha fuga encontram-se plasmadas aqui: www.vouatuamesa.blogspot.com. Sonho com o dia em que a cozinha será o meu ponto de fuga estruturante, e já não um mero amor das horas vagas.


[in "Actual", jornal EXPRESSO, por Bernardo Mendonça]


©Espectáculo do Teatro, 2008

sábado, maio 24, 2008

london diaries.

FINAL REVIEW



Paula Roush set up a new exhibition at the [SPACE]. This time for her project, she took on the role of a producer bringing together with co-curator Tiago Neves a selection of Portuguese performance artists to articulate ideas of transcription at the stage, which works as a platform for representation of scripted reality. The [SPACE] is re-constructed to form corridors leading to stages enclosed and enveloped for the act of deconstructing, reconstructing and constructing scripts that alarm us of the coming events. Yet this activity is found not in scripts and scenarios alone, but in post-scripts, supplements, which proliferate the hidden moments in the performance, hidden because of the secretivity of the performer, the carrier of knowledge, who knows the best how to lead the audience. Instead, these hidden moments in between lines are made prominent to provoke the audience to become part of the secretive metamorphosis alluding to the playful. In this reconstruction, space becomes multiplied in the form of a reception leading to the corridor, corridor leading to the stage, actors linked with the audience, mirrors reflecting actors, and performer going to peoples’ houses to link the public space with private homes. The long corridor through which an actress ("a bureaucratic secretary") leads you to the end of the L-shaped space and places you in front of computer, asking you to go through the application form to realize the Moment of Being. The performance based on Noël Coward's play starting with the bidding to choose which actor-actress should play whom. The distracted vision represented in mirrors and pulp fiction in the performance Obscurity. And instead of performing at the stage, coming to people's homes to perform for them in their kitchen, sitting room, or sometimes in their bedroom... These are the main features of this discursive project of deconstructive performance. An interesting moment is the choice to reconstruct not only the space but also the classical view of the performance, playing and being perceived as a player as it is today part of our days of global transformation. In Moments of Being by Beatriz Cantinho and Valério Romão, because of the proliferation of means and ideas, performativity itself became a provocative activity for one to realize as a strategy, and the confusion for another: "Why do you think I am a unique person. I am not really! I have to pay my mortgage and to go to work every day. Virginia Woolf of course is unique, since she was a creative individual”. Bringing peoples’ non-confidence into the stage displayed in a white cube at the end of the corridor and trying to link them to the self-productivity, it is supposed to release the pressure of this social disfunctioning, this silent performance literally clinical and critical at the same time. It carries a diagnosis like the medicine: you are unique and the symptom -you are unique- because you are not someone who is trapped in paying mortgages, but someone who can go beyond the conventions of this pressure, is imposed by the society of puritan conformability. The same message is read in the work of Rogério Nuno Costa, Going To Your Place. He is visiting people’s homes in order to perform for them. He appears on people’s doorsteps to ask not for the unpaid water bill, but politely articulating his own desire: I would like to perform for you! And you can get free access to my next performance! Again, his performance specifies elements of space articulated according to a private address, the telephone number, the doorbell, the number of the house, that become the index to his performance. The performance based on Noël Coward’s play Private Lives is astonishing for it's becoming a postscript to the contemporary holidaymaking some 50 years later of the original date of this play. Performed by the Teatro Praga it consists of six actors, but also involves the audience choosing the actors and actresses. The play starts with the bidding for an actor: like gamblers the audience throw the dice and the winning actors and actresses will go on to play the roles, while the losers stay on the side, reading the lines which are normally hidden away from the public. This kind of reading reveals what is missing from an experience of performing, namely the position of an author, the technical moments becoming inseparable part of the work. Obscurity holds our attention as a philosophical postscript to the encoding of popular vision: mirrors in the stage show something which you cannot follow: everything is distracted, although references made to very well known artistic, cinematic, musical, artistic and theatrical pieces joins us to suggest something which is known to us, yet posing the question: do we really know all this? This project continues an original relationship Paula Roush has been exercising in her previous exhibitions. Always engaging an audience without putting any pressure on them, Roush manages to visualize an attitude crucial to the understanding of contemporary art: that in a way or another audience provides enormous support, which by itself can be described as a postscript. It is during the live performance that the audience enters into the dialogue. It does not necessarily happen in the critical moment during the break or after the performance. It is expressed during the performance, when they laugh or cry, getting excited or simply falling asleep. This project is of course about the scripting of reality in its literal sense. Our daily reality is nothing else than performance, based upon the knowledge gathered by centuries of struggle to make these knowledge structures to work for us. In this sense this project can be described in terms of the Derridean statement representing any action as a text: there is nothing outside the text. Words referring to the web of texts and the world as wall-to-wall text made for being readable, performable and visible only because it coincides with our knowledge of culture, yet seen as postscript it creates the chance to elaborate missing dimensions of this knowledge.

sexta-feira, maio 16, 2008

london diaries.

PRESS RELEASED


Portugal is finally making itself heard these days as a powerful voice in live art and performance, as we've understood from recent visits from key groups such as Bomba Suicida. This intriguing programme at East London's SPACE triangle gallery compiles work by four lesser-known groups, and is a chance to get intimate; the pieces seem united by an attempt to involve the public and absorb their reactions into the work. For example Cantinho and Romão's Moments of Being depend on us filling in a questionnaire, which is subsequently analysed by a computer to determine "a moment of a singular experience that embodies a maximum revelation of our existence". Perhaps rather less complicated, Teatro Praga's production of Noel Coward's Private Lives requires the audience to decide which actors should play which roles. But perhaps the most instantly appealing is Rogério Nuno Costa's Going To Your Place. From this page here you have all you need to bring him over to your own place, whereupon he will perform in your living room. The connotations of the yellow pages dial-a-magician are too wonderful to resist — book now to avoid disappointment!

[London, November 2004 ]


terça-feira, novembro 13, 2007

press.

THE VERY BEST OF GERMANY
Ou deveria dizer Europa?

(conversa entre Armgard Seegers e Klaus Witzeling)


A tradução, nada livre, é minha:


Vou A Tua Casa, diz o actor e performer Rogério Nuno Costa. A convite e por 100 euros, o convidado constrói uma performance na sua sala de estar. Tudo por causa do Dancekiosk. Após uma marcação prévia, a jornalista Elisabeth Burchardt convidou o Português de 29 anos para o seu apartamento, não sem antes se ter preparado e pensado: O que oferecer? O que vestir? Klaus Witzeling esteve lá e debate agora o acontecimento artístico com a editora Armgard Seegers.

©Rogério Nuno Costa [Hamburgo, 2007]


ARMGARD SEEGERS — Klaus, tu estiveste com o performer, e porque qualquer pessoa pode convidá-lo, diz-me: o que é que ele faz?

KLAUS WITZELING — Ele tocou à porta, ficou no hall por uns tempos e depois começou a falar connosco.

SEEGERS — Portanto, trata-se de um daqueles espectáculos em que não se dança, fala-se?

WITZELING — Exacto. Mas ele propõe-nos outra coisa. Tanto quanto percebi, ele prefere chamar "conferências" às suas performances.

SEEGERS — Isso parece-me estranho. Porque razão há-de alguém, em sua casa, convidar um performer para um conferência?

WITZELING — É mais ao contrário. Ele apresenta-se como mediador entre o espectador e um outro conceito de arte, recolocando toda a atenção em ti como espectadora. Tu decides se queres ou não experienciar um momento artístico.

SEEGERS — Para isso prefiro convidar os meus amigos. 

WITZELING — Mas há uma diferença: quando convidas alguém que não conheces e que te propõe uma experiência teatral, artística, crias expectativas e preparas-te para o encontro de uma maneira completamente diferente. São situações muito distintas.

SEEGERS — OK, OK. Então alguém aparece, diz-se artista, senta-se e começa a falar comigo. Isso parece um daqueles programas de televisão com confissões de teor psicológico…

WITZELING — Ele faz mais do que isso. Tem um laptop com o qual te apresenta um curso de línguas, despoletando discussões à volta da ideia de comunicação, depois mostra-te imagens de Lisboa…

SEEGERS — De Lisboa?? Um slide-show turístico?

WITZELING — Ele segue o conceito de arte avançado por Beuys, que diz que todos somos artistas. Toda e qualquer ideia de arte existe já na realidade, em jeito de readymade. Ele quer que seja o espectador, com as suas expectativas, a construir essa ideia, e não ele.

SEEGERS — Isso desagrada-me à partida. Ter que contribuir? Eu quero é receber qualquer coisa!

WITZELING — É essa a questão! Ele dá-te um "nada", mas que ainda assim é "qualquer coisa".

SEEGERS — E o que é que isso tem a ver com arte? Isso é a minha vida!

WITZELING — Exacto. Ele não quer separar a arte e a vida. Tudo o que acontece acaba por ter um valor.

SEEGERS — De acordo com a minha ideia de arte, vejo esse tipo de jogo amador como uma traição à própria arte. Se eu convido um artista a vir a minha casa por 100 euros, espero ver algo especial. E para além dos postais ilustrados de Lisboa, quero poder dizer no fim: aconteceu algo artístico em minha casa.

WITZELING — E é esse o objectivo. A questão é ele estar perfeitamente treinado para algo, mas recusar-se a fazê-lo. Prefere usar a sua condição de estrangeiro e brincar com as tuas expectativas.

SEEGERS — Desculpa, mas isso não é arte, é charlatanismo: alguém que se diz artista recusar a própria arte. Eu não vi, mas julgo que ter-me-ia sentido defraudada.

WITZELING — Eu vi e não me senti defraudado. Achei muito interessante.

SEEGERS — Mas tu disseste-me que dormiste mal nessa noite. 

WITZELING — Acordei por volta das 6 da manhã. O que aconteceu intrigou-me. Seja como for, ele até concordaria contigo: se dizes "isto não é arte", então se calhar estás com ele.

SEEGERS — O não-evento intrigou-te? Parece que contigo a arte funciona em pequenas doses homeopáticas. Quanto a mim, preciso de algo mais. Temos definitivamente opiniões diferentes.

in Hamburger Abendblatt, 10.08.2007

terça-feira, julho 10, 2007

press.

UM AVC ZEITGEISTIANO



Quando para um actor a vida e arte são uma e a mesma coisa, o espectáculo teatral transforma-se em algo que prescinde do palco tradicional concreto – bastando para existir que o actor e o espectador acordem que o espectáculo vai acontecer entre eles. Mas, e onde se encontram? Muito simples: na casa do espectador, na do actor ou no caminho que vai de uma à outra. Ou seja, no meio da rua. Vou A Tua Casa é um projecto singularíssimo, que corta com os cânones preceituais da representação teatral como forma de pensar o mundo actual. Um projecto a muitos títulos ‘terrorista’, em que o lugar e os desejos do espectador são centrais, e onde tudo pode ser levado até às últimas consequências – tal como na vida.

Uma entrevista de Sarah Adamopoulos





Como é que chega ao teatro? Que percurso pessoal tem vindo a ser esse – e com que escolhas?

É impossível dissociar a minha história pessoal do teatro que faço. A minha ligação ao teatro e às artes performativas deve-se a uma série de circunstâncias, e não a escolhas predefinidas à partida. O meu percurso tem-se pautado por vários acasos. Nunca tomei nenhuma grande decisão de fundo. Não reconheço, no meu trajecto artístico, nenhum momento em que tenha decidido que ia fazer isto ou aquilo. Fui chegando às coisas por acaso, e fui-me apercebendo que essa minha maneira de estar no teatro era interessante, e discursiva — e que essa minha atitude, quase terrorista, chegava por vezes a certos lugares sem ter permissão para tal. E isso acabou por ditar muitas das coisas que eu gosto de dizer nos meus espectáculos — os meus statements, e consequentemente a forma que os espectáculos acabam por tomar. Vim parar a Lisboa porque não tinha feito o exame certo para poder ingressar o curso de Comunicação Social em Braga. E foi durante o tempo do curso que comecei a fazer teatro amador, no grupo do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP).

Começou sendo actor?

Sim. Nos primeiros tempos, esse grupo não fazia grande coisa, não havia dinheiro para nada, as pessoas faltavam… No 3.º ano de curso, porém, começámos a trabalhar com o actor João Cabral, com quem fizemos em 1999 uma peça muito experimental baseada em poemas do Mário Cesariny. No ano seguinte estreámos outra peça, com textos escritos pelos actores. Foram os meus primeiros espectáculos como actor, mas também como co-criador. A minha chegada ao teatro amador não começou da maneira mais tradicional, portanto. Aquilo que é comum acontecer é fazer-se os textos clássicos, as personagens, etc. Eu entrei no teatro pela porta de saída (risos). Comecei logo pela desconstrução, pelo distanciamento, pelo experimentalismo, pela interdisciplinaridade, pela performance. Eu estava a acabar o curso, e nunca houve até 2000 nenhuma vontade expressa de continuar a fazer teatro. Acabei o curso, e fiz o que toda a gente faz — enviar currículos para jornais, televisões, rádios...

Ia ser jornalista.

A única coisa que eu sabia, e mesmo assim não tinha a certeza, é que queria fazer algo próximo do jornalismo de investigação em torno de questões culturais. Mas nada disso aconteceu. A minha “profissionalização” no teatro foi feita aos tropeções. Em 2000, eu não fazia ideia de nada, não sabia quem eram as pessoas que faziam teatro em Portugal, não conhecia os nomes, ia muito pouco ao teatro. No grupo da faculdade, trabalhei com a Paula Sá Nogueira, a Mariana Sá Nogueira e o Marcello Urgeghe, do Cão Solteiro. Foram uma influência importantíssima. As pessoas com quem passei a manter contacto daí para a frente não tinham nada a ver com o teatro que eu tinha visto até então. A Mónica Calle, a Lúcia Sigalho, o João Garcia Miguel... Eu tinha uma ingenuidade enorme em relação a tudo, e fui-me aproveitando disso. Percebi que não valia muito a pena procurar mais, se o que estava a acontecer à minha volta, por afinidades diversas, era tão interessante. Preenchia-me em todos os sentidos estéticos e filosóficos. Depois de acabar o curso, em 2000, fui parar, também por acaso (ou melhor, por "arrasto"), a uma audição da Lúcia Sigalho. Eu não sabia quem era a Lúcia, nunca tinha visto um único espectáculo dela. Quando cheguei, fiquei cheio de medo porque reconheci muitos "profissionais" muito mais experientes que eu. Mas fiz a audição, e fiquei. Percebi imediatamente que era aquilo que eu queria fazer. As coisas que a Lúcia fazia nessa altura eram incríveis. Era um teatro muito físico, até um bocado extremista na exploração dos limites do corpo e da voz. Muito a-narrativo, não-linear, caótico, profundamente pós-moderno. Na altura, não havia mais ninguém a fazer aquilo. Era uma coisa do aqui e do agora, muito assente na busca de uma verdade, de uma presença em palco verdadeira, real. 

E em permanente partilha com os espectadores.

Exactamente. Promovia uma convocação permanente do olhar do espectador para dentro do próprio espectáculo. Acabei por não fazer esse espectáculo (Dedicatórias) enquanto actor, mas fiz assistência geral, nomeadamente à encenação. Foi a minha escola. Aprendi tudo o que precisava aprender em 3 meses de trabalho. Tenho por isso um respeito profundo pelo trabalho da Lúcia, e pelas coisas que ela me deu. Fiz depois mais três espectáculos com ela, já como actor, o último dos quais (Capricho!) em 2003.

O teatro da Lúcia Sigalho faz constantemente essa ponte com a vida, ou assenta mesmo nisso, na vida, no que acontece nos dias das pessoas. 

Ainda hoje faço muitas vezes esse exercício de tentar chegar ao teatro sem ser através do "teatro" — tentar não escolher textos que tenham em si uma carga teatral, tentar chegar a uma teatralidade qualquer que não se inspire nos cânones tradicionais do teatro. Os cânones da representação teatral não me interessam muito, inspiro-me mais na vida, no quotidiano, no meu passado…

Na sua própria vida – que talvez seja o que contemporaneamente faz sentido…

É o que eu conheço melhor, é o que está mais próximo de mim. Mas às vezes apetece-me ser mais investigador, e interesso-me por aquilo que os outros estão a fazer. Mas depois acho tudo muito desinteressante... É muito mais produtivo quando me deixo “perder” por coisas que à partida não parecem informantes para os meus espectáculos. 

Coisas como por exemplo o quê?

As minhas mudanças de casa, por exemplo. E isso acaba por ser tanto ou mais importante do que os conceitos e as teorias e as coisas que leio. Faço um esforço permanente por me deixar surpreender pela vida, ao ponto de ser ela a mudar o curso do trabalho. O sentido mais clássico do trabalho do actor ou do encenador é o oposto disso — "dar a vida" pelo teatro, o grande actor que é capaz de deixar tudo pela "profissão"... Faço o jogo ao contrário, ou seja, deixo que seja a vida a influenciar, e por vezes a decidir. Há um projecto que lancei em paralelo com o Vou A Tua Casa que se chama FUI, que é paradigmático disso mesmo. Fiz 7 experiências com esse projecto, onde a abordagem foi a de perceber de que forma eu podia anular-me como criador, como ser pensante que é capaz de concretizar ideias, ao ponto de deixar que a simples vontade que um espectáculo aconteça seja suficiente para que ele aconteça. De facto. Decido por exemplo que vou fazer um espectáculo na Casa Conveniente, e acordo com a Mónica Calle que dia 17 é a estreia do espectáculo. Eu não vou nunca pensar no que vou fazer nesse espectáculo. Durante o tempo que tenho para o preparar, as coisas vão inevitavelmente acontecer. Eu vou viver, há coisas que vão acontecer na minha vida durante esse tempo, mesmo que eu fique em casa. E se eu ficar em casa porque adoeci, por exemplo, se calhar é isso que vou devolver no dia do espectáculo. E pergunto: de que maneira é que isto continua a ser teatro? – teatro enquanto reflexão sobre tempo, sobre espaço, sobre a tríade Peter Brookiana actor/espectador/contexto comum? E nessa medida, o que acontece durante o espectáculo acaba por ser o menos relevante, porque o que interessa é essa troca entre duas entidades e o que as une num determinado espaço e tempo. Ou seja, você acorda comigo que eu vou fazer um espectáculo para si. E por isso é que o que acontece a seguir é um espectáculo — e apenas por isso. Isto é válido em todas as situações performativas, claro; no contexto do meu trabalho, é mesmo só isto. Não há mais nada.

O Vou A Tua Casa é um projecto teatral terrorista?

O Vou A Tua Casa foi a minha primeira grande investida num território que quero continuar a pesquisar, a explorar, e sobre o qual quero também continuar a teorizar. Aprendi que a teorização traz com ela uma prática, tem uma forma. Eu não gosto de começar pela forma. Basta que haja esse compromisso de que falava há pouco. Se eu perguntar a estas pessoas que estão aqui neste restaurante se isto é um espectáculo de teatro, elas vão dizer que não. Mas se nós acordarmos que é, então é. Pelo menos para nós (risos). Luto por uma abordagem à arte em geral que seja muito pouco – ou mesmo nada – formalista. Infelizmente, a maior parte dos críticos, dos investigadores e de muitos teóricos, continua a procurar isso no teatro. A espectacularidade formal é mais importante que a ideia ou o conceito. E mesmo quando as obras já nem sequer oferecem isso, eles continuam a validar o que vêem pela película formal...

Por vezes dir-se-ia que nem os próprios textos contam. Como se uma peça não pudesse existir pelo texto. Investe-se por vezes absurdamente nos cenários, e nas cabeças de cartaz, e nos efeitos especiais…

Note que não encontro na arte qualquer sentido social ou político à partida. Explicando-me melhor: falar-se em arte como algo do regime do social e do político é para mim um dado adquirido. Não existe arte mais ou menos social, mais ou menos política, a menos que nos aproximemos dela tematicamente, o que me parece muito redutor, para não dizer leviano. A arte é uma forma de pensar o mundo que deve por isso ser autónoma, tal como o pensamento filosófico, o matemático, o científico, etc... Quando a arte começa a ser outras coisas, quando quer concretamente fazer intervenção política, ou quando se institucionaliza, por exemplo, deixa de ser interessante. O Vou A Tua Casa começou por ser uma provocação, sim, mas não havia nisso nenhum sentido político. Quando em 2003 eu decido fazer espectáculos nas casas das pessoas, isso não correspondeu a uma vontade minha de ir contra a convenção. E também não decidi fazer assim por me faltarem os meios para fazer de outra forma, ou por ser para mim difícil ser programado nas salas de teatro convencionais. Há pessoas que acham que eu faço isto porque tenho que me "desenrascar" (risos). Não tem nada a ver com isso... Trata-se de um pressuposto especificamente artístico, logo conceptual. Eu até gosto dos palcos convencionais... (risos)

É também a expressão de uma insatisfação?

Claro. Uma insatisfação em relação ao que eu fazia antes disso. Estava farto de ser "actor". Queria muito convocar o espectador para além do que já estava a fazer a Lúcia Sigalho, entre outros. Essa convocação era induzida, de forma artificial, mas não era levada até uma consequência qualquer que eu queria experimentar.

Uma procura de últimas consequências?

Também. Se eu vou fazer isto para si, então por que é que não nos encontramos e falamos sobre o assunto? Se é tão importante eu saber que você está aqui comigo, então vamos tornar isso realmente importante. E nesse caso eu quero mesmo conhecê-la! Fazia-me imensa confusão não saber quem eram as pessoas que estavam na sala a ver o espectáculo. Eu sei, porque também sou espectador, que há pessoas que estão ali sentadas mas cheias de vontade de ir embora, outras que estão cheias de vontade de saltar para cima do palco porque estão a adorar o que está a acontecer, outras com dores de cabeça, outras a pensar noutras coisas... E tudo isto é para mim muito mais interessante do que o próprio espectáculo! Eu quero saber de que forma é que as expectativas das pessoas podem mudar o espectáculo. E eu queria saber estas coisas, pesquisando sobre elas, mas também testando, quase em jeito de laboratório científico. O Vou A Tua Casa nasce dessa minha vontade de estar o mais perto possível das pessoas — mesmo que isso implique uma proximidade física e real, e a invasão da sua intimidade/privacidade. E porque se trata de uma experiência com muitos riscos e erros associados, o espectador transforma-se aqui numa espécie de cobaia, embora consciente que é "cobaia" (risos). É evidente que aqui a questão da "interactividade" já nem sequer se coloca, porque se trata de um trabalho de total participação/colaboração. Não é só aceitar que o espectador contribua para aquele momento, é pôr o espectador a participar da minha proposta, desde a sua concepção meramente teórica à sua finalização tornada pública. E por isso é que eu digo que o Vou A Tua Casa não começa quando eu entro em casa das pessoas. O espectáculo começa muito antes disso, quando o espectador recebe a ideia e decide fazer parte (telefona, manda e-mail, etc.). A partir desse instante em que a pessoa toma conhecimento e decide que quer fazer, inicia-se um processo. O que está aqui em causa é uma ideia de compromisso: eu apresento-lhe uma ideia e você deixa-se atravessar por ela, e como espectadora resolve-a dentro de si.

Quantas pessoas estavam na casa do espectador-anfitrião do Vou A Tua Casa e quanto custava?

Quando comecei o projecto, tentei impor coisas que fazem parte de uma certa convenção teatral: a bilheteira, por exemplo. Chegou a haver alguém que tocava à campainha, entrava antes de mim, tratava dos bilhetes... Essa pessoa depois ia-se embora e eu entrava. Foi uma profunda ingenuidade minha, que comprometeu uma boa dezena de espectáculos. Quando comecei a aperceber-me que essas coisas eram contraditórias em relação ao projecto, fui eliminando-as. Quando começo a fazer a parte do projecto que acontece num espaço público (No Caminho), já não há bilheteira. E é aqui, em 2005, que o projecto começa a confrontar-se com a sua dimensão estritamente política. Como é que eu sustentava, sem bilheteira, um espectáculo que não tinha quaisquer apoios? 

Como?

Eu não podia cobrar bilhetes ao espectador, não fazia sentido nenhum... Se o plano era o da indissociação plena entre a arte e a vida, se eu pretendia promover um encontro "real", eu tinha que poder resolver isso de outra forma, pois eu não cobro bilhetes aos amigos com quem me encontro para tomar café! (risos)

Mas e como resolveu a parte prática (gerar receitas)?

Tive que esperar até ter apoios (do Estado, de organismos privados, de Festivais...), que acabaram por chegar, em 2006. Seja como for, a vertente filosófica não se perdeu, intensificou-se. Quando avancei para a terceira versão do projecto (Lado C), na minha própria casa, eram os espectadores que decidiam o que queriam fazer, e de que forma queriam existir enquanto espectadores, logo, também, se queriam ou não pagar.

E o que é que as pessoas queriam ver, e ser?

As pessoas esperam quase sempre duas coisas deste espectáculo. A primeira é essa ideia mais clássica da interacção, que como já disse me desinteressa bastante. Não quero que o espectador seja apenas aquele que dá uma deixa, ou que segura no meu casaco. O Vou A Tua Casa é uma experiência, e exige do espectador que este decida o que quer que eu faça para ele. Há depois uma outra coisa que interessa muito as pessoas, que é serem tocadas emocionalmente (risos). Nem sempre acontece... Porque também não é coisa que me interesse muito. O projecto dá-lhes isso, às vezes, ainda que de forma não necessariamente premeditada, diria que subliminar. O que o Vou A Tua Casa propõe está muito próximo de uma vivência que não é, de todo, a que tradicionalmente acontece quando vamos ao teatro. Há um momento no Lado C em que troco contactos com as pessoas. É evidente que também há pessoas que acabam de ver o espectáculo e não querem mais pensar nele, ou manter contacto comigo. Mas há uma grande percentagem de espectadores que querem manter esse contacto comigo. Querem ser meus amigos (risos). Isto é possível em qualquer contexto teatral (mais ou menos convencional), claro, mas no Vou A Tua Casa essa relação não é uma mera casualidade; ela é, na verdade, a raison d'être de toda a experiência. O espectáculo só existe porque existe uma relação.

Disse-me uma vez que houve pessoas que choraram. As pessoas que choram fazem-no porque se sentem tocadas por algo que é dito, ou feito, ou porque você as choca?

Não creio ter alguma vez chocado as pessoas. Aquilo que as pessoas mais referem é a singularidade do momento. É aquilo estar a acontecer para elas. É ser um presente que está a ser-lhes dado, só para elas. Amanhã, noutra casa, será completamente diferente.

As pessoas são sensíveis a essa dádiva.

Bastante. No início eu não tinha consciência disso. Hoje, passados três anos, há pessoas que ainda têm nas paredes papéis que eu lá deixei, no sítio exacto onde os deixei. 

Tem na memória algum momento decisivo, ou algo que tenha sido dito durante um desses espectáculos em casa das pessoas?

Um dos momentos mais incríveis do Vou A Tua Casa foi quando eu me apaixonei por uma pessoa durante o espectáculo. Vivemos juntos 2 anos! (risos) Mas, à partida, o projecto não é uma coisa vertiginosa, não é algo que eu faça para "sentir coisas". É até um objecto muito técnico! Um projecto que começou por consolidar a minha renúncia ao virtuosismo do actor (colocar bem a voz, ter a fisicalidade certa, a presença certa, a interioridade certa, o ritmo, a personagem...), acabou curiosamente por me devolver um modus operandi que me parece em si "virtuoso", mas a um outro nível muito próximo de algo que podemos apelidar de "grau zero da interpretação". Repare: a pior coisa que se pode pedir a um actor é que não faça nada. Ou que esteja ali como quando está em casa. Ou que fale com o espectador como fala com os amigos quando está no café. Eu desenvolvi um seminário na ESAD [Escola Superior de Artes e Design], nas Caldas da Rainha, com os alunos do curso de Teatro, em que a premissa era justamente essa: não fazer nada, não provocar nada, não antecipar nada, não pensar nada, apenas estar no palco e esperar que o tempo tome conta do "recado"... (risos). Foi impossível! Passados 5 minutos estavam a fazer tudo, já inundavam aquele espaço de artificialismos que não faziam parte original dele. Já tinham personagens, já tinham nomes para elas, já estavam em acção/enredo. Todos nós, actores e não só, estamos programados para fazer, para ser uma coisa qualquer, para fazer o papel de. Há um pânico da realidade. O Vou A Tua Casa não só abraça esse pânico, sem medos, como se propõe a concretizar um dispositivo muito mais "revelatório", e menos de criação. Pode parecer que não, mas isto também impõe uma qualquer tecnicidade. E não é nada fácil de fazer! (risos)

Mas as pessoas não procuram no teatro a espectacularidade do artifício? Os figurinos, as luzes, os efeitos, a fantasia? Não é nisso também que tradicionalmente a crítica se sustenta?

Talvez. Mas não procuram (ou não devem procurar) só isso... Os críticos em Portugal são na grande generalidade pessoas que tinham uma ou outra afinidade com o universo artístico (porque foram actores, ou porque foram jornalistas na área da cultura). E essas pessoas limitam-se a fazer jornalismo de opinião. Para mim um crítico é alguém que deve pensar os espectáculos criativamente. A crítica não pode ser um serviço. A responsabilidade de um crítico é enorme, mas isso não faz do seu métier um serviço. O mal da crítica em Portugal é ser lamentavelmente infértil. Não produz pensamento. Justamente porque resiste a ser pessoal. Eu não vejo nenhum problema em sermos "pessoais" e "subjectivos" e "parciais" quando nos propomos a analisar um espectáculo (risos). O contrário é utópico e contra-natura. Não é sequer possível. Qualquer tentativa nesse sentido é frustrada.

O teatro pode ou não ser uma exposição de ideias?

Só pode ser. O teatro é isso. Toda a arte, aliás, é uma exposição de ideias. É também um acto comunicacional, logo, uma partilha.

Qual é o lugar do texto no seu teatro?

O teatro é uma coisa, o texto dramático é outra. Continuar a querer fazer coincidir essas duas coisas é para mim doentio (mais um dos problemas graves da crítica em Portugal, por exemplo). Nas minhas criações, o texto tem importância idêntica à de qualquer outro elemento que convoco para a materialização da ideia que quero comunicar. Não é mais nem menos importante que as roupas que vou vestir, a música que vou usar, ou o texto da folha de sala que vou entregar às pessoas antes de entrarem, por exemplo...

Mas é ou não sensível a um bom texto para teatro?

Nem por isso... Não sei o que é isso: um "bom texto para teatro". Sei o que pode ser um bom espectáculo de teatro feito a partir de um texto. Lá está! (risos) Mas repare: eu uso textos! Fiz em Braga um espectáculo chamado A Leitura Encenada É Um Género Que Não Faz O Meu Género. Fiz outro, em Lisboa, no Taborda, chamado Saudades Do Tempo Em Que Se Dizia Texto. E fiz depois no CCB um outro chamado ACTOR. Todos estes espectáculos têm como premissa a minha relação pessoal com um texto. Mas lá está, o texto é só um utensílio, entre dezenas de outros. Não lhe dou essa centralidade num projecto meu.

Antevisões para o seu teatro, e também para o dos outros.

Em relação ao meu trabalho, penso que a dimensão teórica e de reflexão está a impor-se cada vez mais, e é seguramente um caminho. Ou seja, pensar sobre e documentar os meus projectos, comprometer-me ainda mais com o meu tempo, conhecer outros artistas, dar aulas (que adoro!), afunilar o meu discurso, mas permitir ao mesmo tempo que ele se perca e conheça outros pontos de fuga. Adoro a bipolaridade discursiva! (risos) Continuar a acreditar no poder do efémero, claro... Adoro a fragmentação, adoro a rapidez, adoro o excesso de informação. Adoro a renúncia, adoro a apologia, adoro a resistência. E adoro a passagem do tempo. Adoro rir-me das coisas que fazia há 3 anos atrás...

Nesse sentido, o seu trabalho é uma espécie de celebração, senão mesmo de anunciação do espírito do tempo. 

E esse espírito diz-me que não faz sentido acreditar-se que ainda é possível inventar formas novas! Quero continuar a defender uma arte enquanto conceito, que só é operacional porque se permite a ser pensada e re-pensada ad nauseum e ad aeternum...

Nunca o acusaram de fazer algo demasiado auto-centrado? Ou de se expor demasiado? Ou de usar os espectadores para as suas experiências (Rogério e os seus ratos brancos)?

Isso tudo, e mais coisas más... (risos)

Qual poderá ser o seu lugar no espaço teatral português? Quais são objectivamente as suas aspirações para o dia de amanhã?

Não gosto muito de pensar nas coisas que faço sob essa perspectiva... Não sei que lugar é que ocupo, se é que de facto ocupo algum lugar... Se calhar só ocupo tempo! (risos) É isso, ocupo o tempo teatral português! (risos) Quanto a aspirações... Bom, estou muito empenhado em iniciar o meu próximo projecto, que se chama A Oportunidade do Espectador, uma continuação lógica, também em formato trilogia, do Vou A Tua Casa.

Que projecto é esse?

Convidei algumas pessoas, escolhidas durante workshops que fiz sobre o Vou A Tua Casa, para fazerem o projecto como elas achavam que podia ser feito. Se fosse o espectador a fazer, como seria? Várias pessoas de várias áreas do pensamento (filosofia, curadoria, história da arte, etc.) são agora observadores e teóricos convidados. O objectivo é reunir um conjunto de possibilidades performativas da inteira e exclusiva responsabilidade dos espectadores. É uma oportunidade para as pessoas, que já foram espectadoras do Vou A Tua Casa, colocarem as suas questões.

Até onde acha que é possível levar um projecto tão inovador e complexo como o seu, num país em que o teatro ainda é maioritariamente encarado como uma exibição de virtuosismos formais?

Não sei. O meu trabalho ainda é visto como uma coisa alienígena, e acho que será assim sempre. (risos) Há um grande preconceito, mas eu até aceito que ele faça sentido. Já aprendi a lidar com ele, a tirar partido dele... Eu não procuro ser original, ou singular. Tratam-se de assunções que morreram com as primeiras vanguardas do século XX. Há 100 anos! Não sei o que são, mesmo... Eu não ando à procura da next big thing, que é infelizmente o que se faz muito: procurar o actor do momento, o melhor dramaturgo do momento… Não sei se o meu projecto é inovador, mas sei que está neste momento a encaminhar-se para um modus operandi que é cada vez mais especializado, intelectualizado, logo, críptico. Não sei se se aguentará muito tempo em Portugal...

Não se sente por vezes muito incompreendido? Muito só nessa sua abordagem ao teatro?

Não. Sinto-me até muito acompanhado, pelas pessoas que vão ver o meu trabalho, pelos artistas (alguns, poucos) que me apoiam... Não me sinto de todo sozinho. Mas sinto outras coisas menos boas, claro... O meu trabalho é muito difícil de programar, por exemplo. Não respeita a grande maioria dos convencionalismos necessários para ser apresentado num Festival. E isso às vezes deixa-me frustrado, não porque seja para mim importante ir aos Festivais, ou fazer parte do so-called "circuito", mas porque há contextos que são necessários e vitais para a manutenção de um projecto na sua relação com a comunidade. Não consigo fazer tudo sozinho, é impossível. Mas quando o espectáculo e a vida coincidem, o fracasso é sempre uma possibilidade. O fracasso é tão importante como o sucesso. E isto é venenoso aos olhos de um programador... O fracasso não é programável.

[Lisboa, 2007]

segunda-feira, junho 04, 2007

referring.

Between drama and dramaturgy, or what is (really) changing in portuguese contemporary theatre, or should we say the performing arts?

by Paulo Eduardo Carvalho



(...) A quite different practice has been the one developed by a Lisbon theatre company, Cão Solteiro — in English "a dog that is single" — in collaboration with the director Nuno Carinhas in the exploration of poetic notions closer at the same to the universe of the visual arts and the theatre. The production inspired by the work and the writings of the Mexican painter Frida Kahlo, called in portuguese "Aguantar" — a wordplay on a verb that means something like "to hold on" —, is a remarkable example of the traditional means of theatre being used for an exercise that is out of all the constrictions of narrative and dialogue, simultaneously capable of drawing on the more contemporary logic of the "installation" or of the performative act. A very good example among us of the "deconstructive" tendency I mentioned a bit earlier would be the work of a theatre company created in 1995 under the name of Teatro Praga, which is intended to mean "plague": the productions they have presented between 2002 and 2003, based on Noel Coward’s "Private Lives" or Turgueniev’s "A Month in the Country" still revealed the massive influence of the Belgian company Tg Stan, but they also very eloquently introduced in the Portuguese scene a much needed playful questioning of the formulae, models and conventions of theatrical representation. In their best works, again, it's the ensemble and the variety of the frequently surprising stage actions that shows itself capable of building a dramaturgy full of new perceptions on the fictional realities they both bring on to the stage and subvert. A totally different situation, quite new in the Portuguese scene, is the powerful work developed by Circolando, another young company that has been trying to merge the different techniques of the circus and of puppetry with those of the traditional theatre. In this recent work, "Cavaterra" — something like "digging the earth" — inspired by the hard life of old Portuguese miners, words are not even used to convey to us lyrical expressions of both the hardship and the daily companionship of this ancient activity. Like it happens in dance, dramaturgy here is particularly important, because there are no words to give us more stable indications of the emotions and experiences at stake. This is an extraordinary example of scenic poetry at its most expressive possibilities. A last and more problematic example is the one offered by a young actor, Rogério Nuno Costa, who has been exploring a project called "Going To Your Place": as the title clearly suggests, it’s him who brings "theatre" to someone’s home, invading the privacy of his audience and inviting that same necessarily reduced audience to follow a given set of procedures. This is theatre as a performative act, using some of the concepts and strategies of site-specific art, and exploring the unpredictable nature of his audiences’ surroundings to interact with. Again, what we have in here is a plan based on the subversion of the conventional models of representation. Again, it all comes back to the way experiences are organized and the way we look at them. Let’s just hope we’ll be able to open the door to them, even if cautiously, instead of simply peering through the hole…

Paulo Eduardo Carvalho
International Association of Theatre Critics
[extraordinary congress in celebration of its 50th anniversary]
Seoul, Korea, October 21-25, 2006

In association with the Seoul International Performing Arts Festival
(Colloquium 2: Papers on Europe, 23 October, 9:30-13:00)

domingo, março 11, 2007

press release.

VOU A TUA CASA
Isto não é teatro ao domicílio!


por Vera Moutinho


Uma casa em Torres Vedras, Lisboa ou Londres. Um bar de alterne, uma igreja, um museu, uma estátua. O espectáculo chama-se Vou A Tua Casa. O actor Rogério Nuno Costa. Já foi a casa dos espectadores, já se encontrou com eles num espaço público e agora vai ficar à espera, na sua própria casa, que o espectador toque à campainha e diga "É para ti". Uma trilogia teatral perto do fim. Ou do princípio.


É uma rua movimentada de Lisboa, num fim de tarde de Fevereiro. À porta do n.º 14 da Rua Castilho, ao pé da estátua, o Diogo espera pelo seu espectáculo, que está atrasado. Lembra-se de que escolheu aquele local porque uma vez ficou lá muito tempo à espera com pessoas que mal conhecia, porque gosta de prédios de escritórios, porque a estátua é muito feia e porque fica perto da Cinemateca. Quando o "espectáculo" chegou, apresentaram-se. (...) Na mão, um leitor de CD's, uma planta e pedras de vaso. A performance começava e à volta a vida continuava. (...) Uma "aventura artística" em que a óbvia questão dos limites do teatro é acessória porque o que lhe interessa são "as pessoas, as casas e o facto de ir ter com elas". (...) Para Tiago Bartolomeu Costa, produtor e investigador de história da produção de teatro, "a proposta do Rogério (...) insere-se numa linha de utilização de espaços não-convencionais, que é uma das linhas fortes de um conjunto de novas propostas que começaram a aparecer sobretudo na segunda metade da década de 90, e que convocam outras disciplinas e questionam o lugar e responsabilidade do espectador na construção de um objecto". (...) O espectáculo foi algumas vezes referido como teatro ao domicílio, sendo mesmo comparado à proposta do actor brasileiro Raul de Orofino, conhecido por fazer peças de teatro em locais pouco habituais (...). "(...) mas para a proposta do Raul era indiferente a coisa passar-se numa casa, num hotel ou num avião", explica Tiago Bartolomeu Costa. "E mais: tinha de ser feita para um mínimo de 20 pessoas. Era alguém que chegava a uma casa e se instalava, fazendo ali o seu teatro. No Vou A Tua Casa isso não acontece. Aquilo é feito para o espectador. No momento". (...) No caderno de bolso electrónico, Rogério desabafa: "Disse aos jornalistas todos que não era teatro ao domicílio. Quando muito seria teatro no domicílio, ou para o domicílio. Poucos compreenderam e entretanto eu fui ficando com um autocolante preso à testa. Às vezes dá jeito. Às vezes não". Diogo Correia (...) diz que No Caminho é como "estar num espectáculo teatral muito próximo da vida; (...) é algo laboratorial e muito vivencial". E confessa que ficou amigo do Rogério, apesar de nunca mais terem falado um com o outro. "Depois da performance parece-me que não consigo deixar de sentir um carinho especial por ele; para além do mais foi muito pessoal". (...) Seguiram-se cafés, museus, igrejas, um bar de alterne, jardins. Espectáculos que duraram horas, espectáculos que duraram minutos. (...) Percebe-se que a linha que separa a ilusão da verdade é aqui muito frágil. (...) A dimensão biográfica do espectáculo ajuda a percebê-lo. Rogério não é de Lisboa. As raízes estão em Amares, Braga. Quando chegou à capital, teve de viver numa nova casa, com novas pessoas. E a ideia para esta proposta nasceu exactamente da vontade de questionar a cidade, as suas relações, os seus espaços. Questionar o "estar em casa de alguém". A ideia evoluiu depois para a trilogia "de modo a dar um ar performável ao resto do percurso", explica Rogério. (...) Aquilo a que o autor chama as "sessões experimentais" do Lado C decorreram entre Maio e Agosto [de 2005], altura em que tiveram início as "sessões oficiais", que têm remate anunciado para o final do ano. (...) Tudo tem a aparência de ser espontâneo, verdadeiro, real. (...) Mas o mais importante é que agora o espectador é o actor. "Vão ser intervenientes directos nas performances em minha casa", explica Rogério. "Serão quase totalmente produzidas, pensadas, ensaiadas e executadas pelo público, com a ajuda do criador". (...) À disposição do espectador estão textos, fotografias, vídeos, objectos, músicas, que poderá utilizar para construir o seu espectáculo. "Se a pessoa quiser ficar em minha casa a dormir, pode ficar!", remata Rogério. Rogério diz muitas vezes que nas suas viagens de comboio para Braga "faz parte" da vida da pessoa que viaja ao seu lado. Infiltra-se no seu espírito, no seu sono, nos seus livros. Tal como invadiu a casa das pessoas depois de pedir licença para entrar. (...) O objectivo parece ser sempre o mesmo: pertencer ao mundo de alguém, fazendo do teatro um momento da vida, que não a interrompe. "Uma coisa que me fez sempre confusão foi trabalhar como actor e não ficar amigo das pessoas", confessa. Nas escadas do n.º 14 ainda estão o Rogério e o Diogo. Não falam, escrevem. "Realmente, aqui está muito frio. A esta hora as pessoas começam a sair dos escritórios e vão para casa", escreve o Diogo. Rogério levanta-se num ímpeto, escreve uma última frase num papel e deixa-o caído na árvore mais próxima. Desaparece. Diogo levanta-se, lê o papel: "I will love you, unconditionally".

in 8.ª Colina, Escola Superior de Comunicação Social
n.º 1, Outubro 2005

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

press release.

NOTAS DISPERSAS
2003/2004


  • "Vou A Tua Casa é uma proposta performativa em que o actor espera intervir na realidade quotidiana em que as pessoas vivem. A ideia de trabalhar na intimidade, levar alguma coisa a casa de alguém. Isto prende-se com o pressuposto de que cada casa onde o actor irá intrometer-se dirá muito sobre a personalidade da(s) pessoa(s) que nela habita(m). (...) O actor não leva um produto, ele é o próprio produto; como se ele fosse bidimensional e estivesse colado à força à realidade das pessoas." [Maria Sousa Veloso, Euronotícias, 25 de Julho de 2003]

  • “'É como se fosse a encomenda de um retrato, uma obra que assino e dou às pessoas'. (...) O actor considera estar a aprender a lidar com o inesperado e a questionar as noções de palco e plateia. (...) Os textos falam sobre a importância do amor na intimidade e o actor adapta-os aos lugares e às pessoas que visita. 'Gosto de explorar a arquitectura de cada lugar e o modo como cada pessoa ocupa o espaço e se coloca perante a peça'. O primeiro impacto, quando entra numa casa, é o momento mais importante: 'É aí que ganho consciência das ferramentas que posso usar e da disponibilidade das pessoas'. (...) “Não tenho qualquer intenção de provocar as pessoas. Quero que se sintam livres para fazer a leitura que quiserem das cenas'. Até porque lhes está dar um presente especial, pois cada momento é feito à medida dos lugares e das pessoas. Único e irrepetível, portanto." [Sara Gomes, Público, 22 de Janeiro de 2004]

  • "A ideia do Vou A Tua Casa é, segundo o autor e intérprete, mais do que montar o palco na sala de estar do espectador, transportar o teatro para perto do público e longe das ruas agressivas da cidade. Sem texto definido, horários marcados ou locais fixos na casa para a acção decorrer, actor e espectador têm liberdade para percorrer as divisões, mexer nos objectos e contar uma história sobre a cidade e as casas." [Liliana Peixoto, Tal&Qual, 27 de Fevereiro de 2004]


sexta-feira, setembro 08, 2006

press.

ARTE (U)TÓPICA
escalas e intensidades


Cláudia Madeira
in Sinais de Cena, n.º 4, APCT, Dezembro de 2005 


« (...) esta tentativa de reconciliar arte e vida, erudição e massas, tem as suas origens tanto na utopia wagneriana da "obra de arte total", como na transgressão utópica das fronteiras artísticas e na vontade de mudar o mundo anunciada pelas vanguardas do início do século XX. Sabemos que os futuristas russos chegaram a promover os seus espectáculos instantâneos no interior de fábricas; os próprios dadaístas dirigiram as suas famosas excursões artísticas a operários. E se podemos identificar a emergência desta tendência com Duchamp ou com Cage, a verdade é que só a partir da década de sessenta ganharia consistência como movimento, nomeadamente com os contributos sucessivos da arte minimalista, da arte conceptual, da performance, da body-art e, de um modo geral, da arte que designamos como sendo site-specific. Esta última tem como protagonista a figura do "artista etnógrafo", responsável por duas transformações importantes no sistema artístico: 1) o lugar da arte deixou de poder ser descrito apenas em termos espaciais, passando a incorporar uma rede discursiva de diferentes práticas e instituições, de subjectividades e comunidades alternativas; 2) o observador de arte deixou de se poder delimitar apenas em termos fenomenológicos, passando também a ser um sujeito social, definido na linguagem e marcado pela diferença (económica, étnica, sexual, etc.). A perspectiva de uma reconciliação entre arte e vida difere hoje do que propunham as vanguardas, pois assistimos à substituição do ideal da "obra de arte total" por uma utopia pós-modernista do quotidiano, parcial, feita de vizinhanças e de sobreimpressões.

(...) a arte pública configura (...) um laboratório social para a reactualização dos propósitos cívicos e universalistas originalmente reclamados pelo anfiteatro grego. No entanto, a observação empírica deste universo é reveladora do paradoxo em que alguma arte pública persiste. A um uso do conceito de arte pública não equivale sempre um público in socio. O público pode muito bem permanecer apenas in site, mantendo-se a homologia estrutural entre criação e recepção que se verificaria numa galeria, museu ou sala de espectáculos (...). Nestes casos, a ideia de uma arte pública feita para "audiências" e não para "instituições culturais" cai por terra, transformando a utopia em ideologia. (...) A arte efémera deveria incluir uma qualquer forma de documentação, capaz de lhe garantir durabilidade e autonomia como objecto de troca e exposição, bem como a capacidade de existir enquanto obra artística dentro de um sistema de criação-recepção, diferido em relação ao próprio acontecimento. Isto é tão mais verdade quanto é esse público que verdadeiramente legitima a obra enquanto arte (...). O que está em causa não é tanto o acontecimento em si, mas o tipo de relação com o social (...). O evento de arte pública poderia assim (a) apresentar um guião estruturado e pré-definido, assumindo o real como cenário ou matéria plástica para ser usada, (b) apresentar um guião aberto à interacção e integração do público, procurando fazer ligações com a realidade social, para alterar e desdobrar a realidade no sentido da arte.

(...) num registo aproximado, temos espectáculos que utilizam um dispositivo ficcional para "chegar à realidade", criando uma espécie de arte personalizada, atenta a contextos e a objectos pessoais. (...) Com os espectáculos Vou A Tua Casa, No Caminho e Lado C, Rogério Nuno Costa pretendeu criar uma trilogia teatral em forma de "mapa percurso", com o objectivo de abalar as convenções que regulam a relação entre criador e espectador. Em casa do espectador, o criador seguiu no primeiro espectáculo um guião pré-estabelecido, que depois adaptou à história e/ou espaço do seu hospedeiro, procedendo assim à "partilha de momentos" e a uma certa marcação do espaço privado. No segundo projecto, o espectador escolhia o espaço público onde pretendia que se estabelecesse o encontro-espectáculo, logo instalado em estações de comboio, parques, jardins, pontes, bares e esplanadas. Neste caso, o guião manteve-se aberto e o seu controlo foi partilhado com o espectador, numa situação quase quotidiana de encontro com um desconhecido (em conversa mantida com Rogério Nuno Costa, em Junho de 2005, este diria a propósito de No Caminho: "Cada performance foi também um pedaço da minha vida"). No terceiro espectáculo, Lado C, o guião é atribuído ao próprio espectador: este inicia e termina o espectáculo, ao entrar e sair da casa do criador, que assim vê o seu espaço e o seu quotidiano afectados pela presença do espectador [primeira fase do projecto, decorrida durante o ano de 2005, e que não corresponde à versão apresentada este ano no Festival Alkantara].

(...) pelo que venho ilustrando, torna-se claro que a capacidade de uma obra in site ter a sua realização ideal no in socio depende da ligação "com" a população e não meramente o facto de ser feita "para" a população. Uma arte pública é sempre algo mais do que uma mudança de cenário, pois esta mudança não garante, por si só, que o ímpeto público sobreviva à integração (e à anulação) paisagística, portanto, à sua desaparição crítica. A topografia pública continua a precisar da sua utopia... »




domingo, agosto 13, 2006

press.

ROGÉRIO
por Mónica Guerreiro


Agenda LX, Outubro 2005


Venham a minha casa!, diz o jovem autor e performer que vive na capital há nove anos e conhece mais do seu interior do que a maioria dos aqui nascidos e criados. À boleia do espectáculo por si concebido, Vou A Tua Casa, visitou muitos domicílios particulares e deixou perceber a sua leitura de Lisboa: sensível, perturbadora e intensa, porque dentro das casas se sente a vibração da cidade.

Esta casa em que mora agora, para a qual convida os espectadores da terceira versão do projecto Vou A Tua Casa, é já a décima que habita. Mas Rogério Nuno Costa conhece muitas mais casas do que aquelas que constituem a sua diáspora privada — que começou em Amares, e tem última paragem (para já) na Rua Amadeo de Souza Cardoso, em Alcântara ("Eu escrevo assim, como ele escrevia, e não como vem nas placas, Amadeu de Sousa."). Porque, na primeira fase de uma ideia que depois veio a crescer e se tornou trilogia, o espectáculo acontecia na casa de cada espectador que o queria ver. Agora, o projecto virou-se do avesso e é o Rogério quem abre as portas da sua casa. Concede ao espectador a possibilidade de, com alguma ajuda e muita disponibilidade, construir teatralmente uma situação de que ambos são cúmplices. A casa — a sua arquitectura, a sua respiração, os objectos privados que lá se encontram — é a inspiração primeira. Entre a primeira fase e esta, existiu outra, chamada No Caminho: um encontro "casual" marcado num espaço da cidade, à escolha do espectador. Para uma redescoberta do que se passa cá fora. Veio parar a Lisboa, diz, por quase nada: alimentava o desejo de cursar Comunicação Social e, em Braga, era exigida uma disciplina específica que não tinha feito. "Meti na cabeça que para ser jornalista o que era preciso era falar muitas línguas: fiz as línguas todas, não fiz filosofia." O Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas foi a alternativa, em Outubro de 1996. E depois surgiu o teatro, logo no grupo da faculdade, com João Cabral. "O meu primeiro projecto semi-profissional foi com a irmã do João, a Rosa Coutinho Cabral. E nos últimos meses do curso fiz uma audição e comecei a trabalhar com a Lúcia Sigalho." Tornou-se um caso sério, o teatro. Outras colaborações se seguiram até que, um ano depois, se aventurou na estrada sozinho.

"Quase todas aquelas experiências me deixaram insatisfeito, não pelas pessoas ou pelo trabalho em si, mas por haver uma parte de mim que dizia 'Isto que estás a fazer não é teu'." Faltava contudo a formação académica (e prática) na área artística. "Vim sempre parar às coisas um bocado aos tropeções, por arrasto, sem ser propriamente uma decisão. E tive de ir aprendendo como se faz. Como se monta um espectáculo, como se produz, como se promove, como se dirige pessoas, como se dá ordens a uma equipa técnica que está à espera que o faças...". Daí ao projecto Vou A Tua Casa, de sua autoria, foi um pulinho. Em Lisboa, Torres Vedras e Londres, onde já o apresentou, esteve em mais de 40 casas particulares, em tantas sessões de um projecto cujo embrião foi, "sem dúvida, a minha reacção física a esta cidade, as sensações que Lisboa me provoca. As coincidências que me trouxeram até cá, e que fizeram com que tivesse ficado. Isso tornou-se o meu objecto de estudo. O Vou A Tua Casa diz muito sobre a maneira como eu estou nesta cidade, como a vejo. Aí começa a minha fuga para o interior dos edifícios". E a investigação estava só a começar. "Mas o projecto também diz muito sobre a maneira como os lisboetas vêem espectáculos". Conta exemplos de espectadores que "vestem a roupa de 'ir ao teatro', afastam os móveis e limpam a casa de propósito, encenam a sua casa de maneira a transformá-la num teatro: na maioria das vezes, não encontrei pessoas no seu quotidiano, mas sim um quotidiano encenado para receber um espectáculo". Em Londres, por exemplo, sentiu diferenças: "Não houve uma pré-concepção daquilo que ia acontecer, recebiam-me como um convidado como os outros. Até me ofereciam algo para tomar". Agora, quando vamos à casa dele, há chá e bolinhos. Para marcar um espectáculo (até ao fim do ano), visite-se o bloco de notas virtual que mantém em: www.vouatuacasa.blogspot.com

terça-feira, julho 18, 2006

press.

VER DE PERTO
[notas de um espectador]


João Carneiro
Expresso, 24 de Junho de 2006


Nesta última semana, Rogério Nuno Costa apresentou, integrado no Festival Alkantara, a terceira parte do seu projecto Vou A Tua Casa: o Lado C. Depois de ir ele a casa das pessoas (Lado A), depois de se encontrar com elas a meio caminho (Lado B), vão agora as pessoas a casa do artista. Tomam uma refeição em conjunto e as coisas passam-se, em grande parte, num grupo em que o público não ultrapassa o número de quatro. O início é, assim, o de uma reunião social à volta da mesa, e depois as coisas desenrolam-se a partir de um dossiê, de informações sobre o artista e de considerações sobre o espectáculo. O que há aqui de novo, de diferente, ou de inesperado? O lugar? O tom autobiográfico? O conteúdo dos discursos? É possível, assim como é possível esvaziar alguma da surpresa tomando tudo aquilo como uma modalidade mais ou menos inesperada de conceber ficções sob a forma de espectáculo. A um certo momento, o autor refere uma apresentação durante a qual um espectador terá concluído que aquela maneira de fazer teatro se deve a um desejo de ver as pessoas de perto. Parece-me uma boa razão, talvez mesmo a melhor de todas para podermos gostar de todo aquele tempo em que muito do que nos é dito nem sequer nos interessa muito, mas a que não ficamos indiferentes. Mas quem é que quer ver as pessoas de perto? Os outros espectadores? O autor? Todos? É curioso. Trata-se de um espectáculo em que qualquer coisa mudou na repartição de papéis que habitualmente são conferidos a espectadores e a artistas, a actores e a público. Pode ser que o autor esteja, neste espectáculo, a assistir tanto como nós. Mas a quê? Como?



[crítica de João Carneiro ao Lado A aqui]

sábado, julho 15, 2006

pensar-teatro.

LADO C
3.ª parte da trilogia Vou A Tua Casa


por Natacha Paulino, DIF, Outubro 2005


Como já aconteceu, é inevitável falar de Vou A Tua Casa sem recorrer à minha experiência (tão) pessoal. No entanto, e numa distância a esforço, Lado C permite-se ser analisável por conter o global deste projecto, tornando-se instintivo o balanço. Rogério Nuno Costa cria Vou A Tua Casa, um projecto em três fases, que não é mais do que a sua jornada criativa pessoal, a seu contento por cursos dúbios e nevoentos, a caminho e de frente para a dúvida. Definidas as fronteiras como fios de navalha, resta deslindar a “fórmula ideal” de dar contorno à grande dúvida: a vida (a sua) e o teatro (o de todos), ambos desconstruídos, onde se distinguem? O “autor” desmonta estas duas estruturas, e a braços com uma caranguejola desconexa, cola tudo num só quadro. Com muito pouca inocência, mas de facto inerente por definição aos dois conceitos, todos quantos se abeirem do criador, sujeitam-se a com ele tornarem-se personagens desta montagem. O equilíbrio necessário a esta tarefa traz consigo o imponderável das emoções, que por sua vez implica a consciência do risco. Neste Lado C, de uma forma mais incisiva, mas também mais flutuante, Rogério utiliza-as, como meio de comunicação tácito. O acto de abrir a sua casa ao público, torna-a em si o paradigma da sua vida. Acesso directo às emoções. Mas quais, as reais ou as encenadas? Se ambos, vida e teatro, as contêm, como destrinçá-los nesta casa? (fio da navalha) Como que num processo de aglutinação, Lado C exige de Rogério um poder de distanciamento muito mais acutilante derivado à conjuntura — o seu domínio. Separar-se do seu “eu-caseiro” e ser outro(?). Por sua vez, do público é urgente que saiba ser “público profissional” na tal destrinça. Ou quem sabe, todos estes sejam papéis e premissas equivocados. Pois aí talvez resida a mais premente questão: Rogério faz “teatro” ou faz “pensar-teatro”? No estranho papel de “público-profissional/ex-cobaia”, revisito Rogério “ele-mesmo/personagem”. Acompanham-me uma outra “ex-cobaia” e um “público”. Encontro-me num serão de novela, chá e bolo (faltaram-me as pantufas). Aguardo pela superação de Rogério (?!) ao poder alienatório da novela — falamos. Pensamos juntos. Nova incursão pela casa. E então sim, a estranheza do papel veste-me, quando me é possível escutar o outro lado do jogo. Desconcertante será em palavras e gestos o sentimento predominante, face a uma casa falante. Os pensamentos correm a mil. Sou súbita espia de dois lados, no meio de uma cadeia de uso/abuso-sem-autorização de “cobaias”. Apanhada na rede.


[texto de Natacha Paulino sobre No Caminho aqui.]