MSN — A HISTÓRIA COMPLETA
em 97 segundos
1 — O que é a "responsabilidade máxima do espectador"?
2 — Uma coisa de 2005. Queres mesmo saber?
1 — Quero.
2 — Não é um sinal de cena. É um sinal dos tempos em que não se dizia texto.
1 — Agora diz-se?
2 — Não.
1 — Então qual é a diferença?
2 — Nenhuma. Simplesmente continuam a existir muitos actores interessantes, que fazem muitas coisas interessantes, em muitas peças interessantes, montadas em muitos sítios interessantes, e que versam muitos temas interessantes. E eu achava que 3 anos era tempo suficiente para acabar com isso tudo. Enganei-me...
1 — Então qual é a diferença?
2 — Em 2005 havia esperança.
1 — Continua a ser importante?
2 — Continuo farto. Estou farto desde 2005, desde 2003, desde 2001, desde 1999, desde 1996, desde 1994, desde 1990, desde 1984, desde 1978.
1 — Estás farto de mim?
2 — Tu fazes o trabalho de casa. És pontual. Estudas a lição do dia. Participas na aula. És uma aluna crítica, opinativa, dinâmica, bem educada, informada, culta, criativa. És uma boa aluna. Tu vês. Não "vês". E "fazes" espectáculo. Tu não "dás" espectáculo.
1 — Mas eu só quero é divertir-me!
2 — Então pede à Câmara Municipal de Lisboa que reabra a Feira Popular.
1 — Dá trabalho. E nem sempre me apetece fazê-lo. Muito menos em casa. O teatro é o sítio onde se vai, não é o sítio onde se fica.
2 — Temos pena. Temos muita pena. Muita muita pena. Temos muita pena mesmo!
1 — Eu não quero ser "responsável".
2 — Então tu não queres nada. Não queres ver. Não queres fazer. Não queres ir. Não queres estar. Não queres! Não queres, reabre a Feira Popular. Fica em casa a jogar Trivial Pursuit. Abana as mamas.
1 — Demito-me.
2 — Pois demites.
1 — É por deixares que isto aconteça que tu falhas. É por isso que tu estás velho. É por isso que tu não prestas para nada. É por isso que tu te suicidas em público.
2 — É por isso, é.
1 — Está tudo mal. Isso está tudo mal. Tu fazes tudo mal. Está tudo mal. Está tudo mal. Mal. Mal. Mal.
2 — Pois está.
1 — Então corrige.
2 — Não.
1 — Então desiste.
2 — Pois desisto. Nem
on, nem
off.
Out! Gratidão.
Terceira Via. Empate técnico.
1 — Porque fazes?
2 — Fizeste...
1 — Porque fizeste?
2 — Nostalgia. Folhas de papel escritas. Declarações de amor. Jogos sem fronteiras. Festivais da canção. Playbacks. Gincanas minhotas. Papas de sarrabulho. Material de escritório. Poemas conceptuais. Comunicação social. Fita-cola. Paredes. Objectos enferrujados. Pessoas de estimação. Casas. Portas. Transportes públicos. Comboios intercidades. Livros de cozinha. Muito amor. Cartas de tarot. Astro-psico-socio-filosofia. Meta-óptica. Semiótica. Se-me-amas...
1 — Porque nos chamas?
2 — Para vos conhecer melhor.
1 — Porquê?
2 — Para me lembrar da vossa cara em 2010, 2012, 2018, 2023, 2035...
1 — E se nós não quisermos?
2 — Ninguém quer, ninguém quis, desisto.
1 — E vais fazer o quê? O que vais fazer a seguir? Qual é o teu próximo espectáculo?
2 — Quero fazer um espectáculo cujo cenário é um tabuleiro de Trivial Pursuit, com luzes tecnotrónicas e muito electro-indie-pop-rock da modixa, várias cenas a acontecer ao mesmo tempo, caos, party people, actrizes a abanar as mamas e actores a abanar os caralhos, a história do teatro a passar em rodapé e a minha história a passar em rodacabeça, muitos confettis, máquinas de cena, coisas que sobem e descem, participações especiais, disc jockeys, artistas plásticos, antropólogos, cineastas, vozes off distorcidas, bombeiros voluntários, escuteiros, tunas académicas, ranchos folclóricos, inter-media, inter-actions, inter-galactic planetary planetary inter-galactic, beijos na boca, neve artificial, um prólogo, vários meios e um epílogo. Vai-se chamar "Bem-vindos ao mundo encantado dos brinquedos onde há reis, princesas, dragões, heróis de banda desenhada, muitos saltos e muitos trambolhões, o mundo dos brinquedos é no (nome do teatro onde o espectáculo será apresentado), onde tudo tem mais fantasia, brinquedos, brinquedos, eles são a nossa maior alegria!" e o cartaz são só os logotipos de todos os apoios, patrocínios, parcerias, co-produções, mecenas, residências e festivais, com o título, companhia e actores num rodapé pequenino, no fundo.
1 — Vais fazer audições?
2 — Claro. Quero um grupo coeso, mas heterogéneo, de intérpretes que dominem a arte de bem se digladiarem nos ensaios para conseguir boas cenas no fim.
1 — Eu não vou ao teu casting. Para competir, prefiro ficar em casa a jogar Trivial Pursuit.
1 — Eu pensava que tu não querias pessoas que cantem, que dancem, que esperneiem, que estrebuchem, que façam rir, que sejam giras e bem-dispostas, com um forte sentido de improvisação, intuitivas e carismáticas, físicas, loucas, pessoas loucas, pessoas giras e loucas... Eu pensava que tu querias pessoas que... Eu gostava tanto de ser uma...
2 — Cala-te! Só dizes disparates. Odeio-te.
1 — Eu também te odeio. Não és um artista, és um arpista, um artolas, um artimanhoso, um artpobre, um cromo!
2 — E tu não és uma espectadora. És uma espectaburra, uma espectaculosa, uma expecturada, uma croma!
1 — É tudo mentira. Tu nunca te foste embora. Tu nunca vais embora. Tu só enuncias. Tu não fazes. E nós só queremos que nos façam. E por isso nos rimos agora. Porque é sempre o espectador que ri por último. E quem ri por último, ri melhor.
2 — O melhor não é necessariamente bom. O que fazes não interessa pra nada; interessa como fazes o que fazes. Energy: yes! Quality: no!
1 — 2005!
2 — 2005.
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