sábado, 23 de dezembro de 2023

NATAL DOS SURDOS

 


   Houve um tempo remoto em que os pais Natal eram velhinhos discretos, entravam pelas chaminés enquanto dormíamos, deslocavam-se no breu das noites estreladas em trenós puxados por renas voadoras. Isso era dantes. E dantes é que era bom. Os pais Natal faziam-nos sonhar, passavam despercebidos, respeitavam o silêncio do sono e da reflexão. A gente sabia que eles existiam porque não os via, eles não se mostravam. É como Deus, que só existe porque o não vemos, ninguém logra puxar-lhe as barbas brancas para lhe dizer, cara a cara, és um Deus fake.
   Infelizmente, os tempos mudaram. Agora o pai Natal multiplica-se, desdobra-se como uma praga, é viral, em todas as ruas os vemos, às centenas, em todas as ruas os encontramos, aos milhares. O pai Natal é a décima primeira praga do Egipto, deixou de ser discreto, é um exibicionista que circula em bandos de motards, passeia-se pelas ruas à descarada, expõe-se nas montras como prostitutas no Red Light District.
   Quem visite Caldas da Rainha por estes dias, tome nota do aviso à população que aqui deixo: eles andam aí. Não me refiro aos pais de todos Natal, que esses, apesar de tudo, permanecem caladitos no seu tesão de barro. Falo, por assim dizer, da banda dos pais Natal, uma quadrilha armadilhada com instrumentos musicais que, naquelas mãos, se transformam em armas de destruição em massa da nossa saúde auditiva. Este bando de pais Natal metralha-nos os ouvidos à exaustão, persegue-nos com ruidosas e desafinadas cantorias. São gralhas atonais, cagarros em transe, orquestra de sopros e de bombos mais maltratados do que pianos martelados pelos cascos dum cavalo. Quando se aproximam, desejamos ser surdos. Quando se afastam, tememos ter ficado surdos.
   Ainda há dias me aconteceu, ia eu de passeio com a minha amiga Maria João, ter de fugir desta caco-fónica brigada de pais Natal anti-tímpanos. Já os tinha apanhado no Parque e desviei-me estrategicamente, para logo dar com eles na rua das montras. Para onde quer que vamos, eles perseguem-nos como o homem do chapéu de chuva no conto de Fernando Sorrentino. Fugi com a minha amiga para o Capristanos, dizendo-lhe que ali encontraríamos a paz e o sossego dos autocarros que chegam e que partem.
   Não vai o leitor acreditar, por certo julgará tratar-se de liberdade poética, uma hipérbole para apimentar a narrativa. Desengane-se. Estava eu a tentar degustar uma sandes de panado e uma cerveja, metendo conversa em dia com a minha amiga, quando eles entraram por ali adentro como um autocarro cantante a buzinar em chinfrineira desesperante um "a todos um bom NataááAHAHl, a todos um bom NATAÁAHAHAHAL...". Etc. Estes pais Natal perseguem-nos, roubam-nos o direito ao silêncio que devia estar consagrado na Constituição da República.
   Fugi da cidade, zarpei quanto antes, mas eles já não me largavam. Colaram-se-me ao tensor do tímpano tónico em estática tortura de zumbidos sem fim. Passei pela farmácia, comprei tampões de borracha para os ouvidos, tomei comprimidos para a dor de cabeça, desbravei caminho na direcção da paz e do sossego a que qualquer pessoa devia ter direito sem ter de auto-flagelar-se. Felizmente, dei com o quintal de um amigo, ali para os lados de Pombal, com cães e gatos e rolas e periquitos, música convalescente a que já não temos direito nos parques e nos jardins da cidade. Foram invadidos pelo ruído dos altifalantes, das colunas e das bandas de pais Natal. Sem o poder moral ou legal de um off.
   Em suma, protejam-se. Não há campanha de Prevenção da Saúde Auditiva que nos valha perante tal flagelo.

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