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sábado, 18 de março de 2023

UM POEMA DE NUNO F. SILVA

 


K.O.

para o Rui Costa

Talvez o soco do Mike Tyson
adormeça dez homens.

Muhammad Ali dançava
cheio de graça ao luar
antes de os apagar a todos.

Mas a precisão de um verso
faz-nos tombar acordados
na lona branca da insónia.

Há que continuar a dar uppercuts
na eternidade.

Nuno F. Silva, in Acorda com uma camélia na garganta, Debout Sur l'Oeuf, Fevereiro de 2023, p. 48.

terça-feira, 30 de março de 2021

LAB'BEL - 10 ANS (2010-2020)

 



A página (https://www.lab-bel.com/en/) informa que Lab’Bel é um laboratório artístico do Grupo Bel. O décimo aniversário foi comemorado com a publicação de um catálogo onde encontramos inventariadas as variadíssimas exposições e diversos eventos levados a cabo, pela Europa fora, mas com sede em França, no contexto da actividade do laboratório. Um dos projectos tem o nome de “Metaphoria” e esteve por cá quando Guimarães foi capital europeia da cultura. As palavras de dois amigos poetas, o Rui Costa e a Joana Serrado, eram parte integrante desse projecto, que entretanto também esteve em Atenas e Paris. Eu estive em Guimarães, e quis o acaso que me encontrasse por lá com o pai do Rui (António Costa, o bom). No regresso, escrevi umas coisas sobre o que vi. A Sílvia Guerra, Directora Artística do Lab’Bel desde 2010, pediu-me entretanto que voltasse ao tema. O resultado integra o dito catálogo. A versão rosa é em inglês, a amarela em francês. Chegou-me ontem, finalmente, com a permissão de uma pandemia que tudo atrasa. Deixo aqui o texto original, para o caso de terem interesse:

 

APARAS DE UMA VISITA A METAPHORIA

Guimarães, 22 de Outubro de 2012

 

 

1. Numa das entradas dos seus diários, Cesare Pavese escreve que A poesia começa quando um idiota diz, a respeito do mar: «Parece azeite.» Eis uma possível noção de poema, senão de toda a criação artística, enquanto discurso que se distancia do território da descrição para se arriscar no campo minado das semelhanças, das explosões de nexos, da teia de elos entre real e irreal. O poeta não estará tão interessado em comunicar como parece estar em desconstruir e subverter o processo comunicacional, fazendo incluir entre emissor e receptor um terceiro elemento, imaterial, invisível, mas sólido, ameaçador, dilacerante. A este terceiro elemento damos o nome de metáfora.

 

2. As metáforas têm vida própria. Os homens são meros veículos para a coisificação das metáforas. A relação que estabelecemos com a metáfora é inalienável da tentação para a submeter às leis do mundo, essa é a nossa fraqueza. Sempre que alguém diz “parece azeite” nós tentamos encontrar correspondência entre dois sujeitos no enunciado (um explícito, outro implícito), sendo difícil de aceitar a inexistência de uma correlação entre ambos. São estas as regras do jogo, como se o que parece não pudesse ser apenas e tão-somente uma aparência, uma sombra.

 

3. Além de poeta, Rui Costa foi romancista. No romance “A Resistência dos Materiais” (2008) ele subverteu a alegoria idealista de Platão para nos propor um universo onde entre verdade e sombras deixava de haver qualquer clivagem. “Nós é que somos a sombra do que as nossas sombras são”, diz. A esta subversão do sentido corresponde tanto uma desconfiança dos mecanismos racionais que levam à verdade como a necessidade de uma linguagem libertadora. O leitor de poesia sabe que a beleza, a força, a vivacidade das metáforas residem, precisamente, na capacidade que têm de oferecer uma outra dimensão, deslocando-nos de um campo semântico paradigmático, onde o leitor de poesia não faz questão de estar, para um campo semântico metafórico. Daí que as metáforas sejam libertadoras, desviam-nos da rota asfixiante do real, ampliam as coordenadas da lógica, libertando-nos das amarras do normal, levando-nos a saltar o muro que separa a ordem do caos.

 

4. O caos é ao mesmo tempo sedutor e ameaçador. Estamos sempre a tentar pôr ordem no caos. O mundo à nossa volta é caótico, o universo surge-nos caótico, o desconhecido é caótico, pelo que a grande tarefa humana tem sido descobrir leis que façam acreditar haver organização no caos. Esta dinâmica que leva do caos à ordem, até que a ordem se revele insuficiente para a explicação do caos, é um movimento incessante que só pela metáfora pode ser dito. Metáfora é movimento, é trânsito, é deslocação.

 

5. Desloquei-me a Guimarães, em Outubro de 2012, para ver a exposição com curadoria de Sílvia Guerra. Entreguei-me ao regaço de “Metaphoria” e deixei-me embalar pelos diferentes trabalhos onde pude reencontrar-me, também, com as metáforas de dois amigos poetas: o Rui Costa e a Joana Serrado. Partilho agora convosco o que então escrevi numa página dos meus diários (inéditos):

 

Hoje pinto largos contornos nas coisas que vejo, desenho-os como quem sente preguiça na elaboração de um pensamento delineado, de fronteiras quase invisíveis ou, pelo menos, indistintas. Rouault aflora ao pensamento, vá-se lá saber porquê, nos braços dos homens que trabalham nas obras, nas roupas tingidas de tinta e cimento, nas mulheres carregadas com sacos de plástico, nos rostos carregados das viúvas e nas crianças que transformam lixo em brinquedos, nos veículos freneticamente estacionados e nas lajes inscritas ao balcão dos cafés. Sempre que a temperatura muda, dá-me para isto. Regresso depois de mergulhar a cabeça num barril de metáforas. Debaixo de água ouviam-se vozes, música, poemas, viagem subaquática com pés na terra. Deve haver algo orgânico na linguagem das metáforas, nas sombras, deve haver algo de sublime neste corpo sem órgãos do pensamento. Invejo, por vezes, a subtileza dos acólitos da palavra para poder dizer, sem contornos nas palavras, o que penso e quanto vejo. Não sendo possível, limito-me a agarrar no que vejo com as mãos desajeitadas do discurso poético. Ainda bem que há pessoas de contornos finos, quase invisíveis, ainda bem que existem com mãos limpas e firmes, unhas exemplarmente arranjadas, dedos esguios, ainda bem que há pessoas sem calos nas mãos. Eu conspurco tudo aquilo em que toco. Se soubesse passar com as limas nas unhas dos dedos que vêem, se soubesse afastar o texto do pretexto e ficar a sós com os pés na terra, a cabeça debaixo de água a ouvir sombras, por certo não quedaria estático nesta incerteza. Vale a pena trazer à liça as palavras de Youcenar: “Nenhuma vista que não se apodera de todo o espírito é visão; nenhum pensamento, por válido que seja, é outra coisa que um fruto ou um subproduto passageiro, desprovido do sentido de eternidade no instante, de extensão ao interior de um ponto nem sequer fixo, que a intervalos muito longos a visão do espírito por vezes confere e se torna em alguns casos possível ressuscitar pela recordação.” Com que visão terão sido pintadas as coisas que vejo no regresso a casa? Com a visão do espírito, a visão dos olhos ou a visão total? Fixo a vista nas coisas para nelas encontrar o quê?

 

6. Passados estes anos, folheio o catálogo do que me foi dado ver reencontrando-me com o que então não vi. Se o mar parece azeite, talvez a lua possa ser uma lâmpada. Acesa na noite, a lâmpada-lua de Katie Paterson remete-me, na problematização que encena da luz, para a Visio intelectuallis referida por Yourcenar. Já não são apenas os olhos a participar da visão, a qual se nos apresenta tão limitada sempre que confrontamos o mesmo objecto a olho nu e a olho revestido por um qualquer instrumento que permita ver para lá do visível. Este instrumento não tem de ser físico, técnico. A metáfora é um instrumento que permite ver onde a vista não alcança, daí o arrebatamento que provoca. Podíamos citar o êxtase dos místicos e o delírio dos loucos, Margarida Maria Alacoque e Antonin Artaud.

 

7. Num belíssimo ensaio dedicado à poesia de Paul Celan, George Steiner refere a dificuldade sentida por mentes treinadas para a visão empírica quando colocadas perante a força de um discurso simbólico e metafórico. Não estranhamos tais dificuldades, ainda que julguemos estar a elas associado tanto de medo quanto de preguiça. Medo do desconhecido e preguiça para ir mais além. A metáfora desloca-nos, coloca-nos em trânsito, é, tal como os veículos pesados oportunamente fotografados por François Prodromidès, um meio de transporte entre dois pontos, sendo que apenas o ponto de partida surge óbvio e determinado. Desconhecemos o ponto de chegada.

 

8. Pascal Quignard dizia dos fragmentos que eram rasgões, interrupções na continuidade de um discurso, aparas, farrapos, um cancro que corrompe a unidade de um corpo, desagregando-o, exercendo sobre esse corpo uma violência que o transforma em “100 biliões de sóis”. Olhamos a noite estrelada e vemos em cada estrela um fragmento do mundo, contemplamos o deserto e aceitamos cada grão de areia como um fragmento do mundo. Partir, romper, despedaçar, deixar em pedaços, em pó, em migalhas, reduzir a nada, eis o significado etimológico de fragmen, fragmentum. “Em grego o fragmento é klasma, o apoklasma, o apospasma, o pedaço separado por fractura, o extracto, alguma coisa arrancada, violentamente puxada.” A metáfora tem esta função de fragmentar, interrompe o sentido, instaura a descontinuidade, para ampliar a linguagem estilhaçando-a. Num certo sentido, podemos dizer que toda a metáfora é fragmento.

 

9. Estas aparas sobre uma visita a Guimarães são metáforas de um pensamento em trânsito. A Terra move-se em torno de um sol que há-de um dia explodir, não tanto para morrer, como para interromper as fases da lua. O universo é uma imensa metáfora. Com o passar dos anos, uma mesma imagem inspira-nos sensações, reflexões, emoções diversos. Hoje em dia, os contentores e as nuvens de Prodromidès adquiririam uma simbólica porventura mais trágica e obscura do que a que tinham em 2012. Há toda uma metáfora da clandestinidade que está por fazer, para a qual contribuem com a própria vida refugiados e imigrantes deslocando-se sobre a terra como na metáfora se desloca o pensamento.

 

10. A História ainda não terminou.

 

Henrique Manuel Bento Fialho

29/05/2020

sábado, 26 de janeiro de 2019

COMO FOLHAS DE CAEIRO




Se o destino quisesse que eu me tivesse feito escritor,
teria posto a minha mão direita contemplando o impossível da
minha mão esquerda, e as duas servindo ao sonho de eu
não estar aqui, mas outro homem com caneta escrevendo
a vida desse deus que podia ter cabido em meu lugar
só para sonhar homens de mais serventia para o alto.
Se o destino escrevesse direito, como o crer dos crentes, nas
linhas vesgas que hoje me desfiguram as mãos com rios
imperfeitos ou erros da gramática, fingindo a cura das almas
renitentes e de todas as faltas de sentido com palavras como
sol, destino, deus, rios, palavras, então eu abriria as mãos
para te mostrar
como rouba a vida tudo quanto fica escrito.



Rui Costa

17/06/2008 (originalmente publicado: aqui)


quarta-feira, 21 de março de 2018

"Seis poetas escolhem seis poemas para quem não gosta de poesia (mas também para quem a ama)"

A ESCOLHA DE RAQUEL NOBRE GUERRA

Rui Costa, “Clássico nada original” (retirado de “Mike Tyson para Principiantes”, Assírio & Alvim, 2017)

 

A voz dos Joy Division no carro
que por azar é novo
saber que o mundo é a continuação
de Vila Nova de Gaia
há mulheres com pólvora entre os dentes
para lá das montanhas e montanhas
para lá das montanhas.
o sofá era atanómico.
o gato comi-o. foi a melhor maneira
que encontrei para o levar comigo.
alguma roupa, dois ou três objectos.
as recordações pões numa caixa de
madeira com desenhos de cavalos. Depois,
vais ao café por volta das onze horas
e contas o dia no escritório as
pernas da nova secretária. Ris muito e pensas
que quem ama a luz não pode ter medo
da escuridão

A JUSTIFICAÇÃO DE RAQUEL NOBRE GUERRA PARA A SUA ESCOLHA

Estas poucas linhas conservam a medida encantatória do que se quer de um poema: legitimar a intimidade entre autor e leitor, dizer no lugar de querer dizer. Rui Costa não presta contas à impossibilidade colocada diante da linguagem, maçando o leitor com oscilações de temperatura e febres maneiristas, antes atribui significado às coisas e ao quotidiano pelo modo como estes o afectam, elevando-os a uma respiração colectiva de sentido — “(…) saber que o mundo é a continuação de Vila Nova de Gaia”. O trabalho da linguagem não se fica pelo relato e representação de uma interioridade estetizada, mas pela mediação de um segredo partilhado no património comum dos afectos: subjugar a escuridão e suas assembleias de culto - “quem ama a luz não pode ter medo”. O canto do homem lúcido às sereias.


Jornal Expresso: aqui.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

MIKE TYSON ENTRE OS MELHORES

No jornal on-line Observador, Nuno Costa Santos elege Mike Tyson Para Principiantes, de Rui Costa, como um dos melhores livros do ano:

“Mike Tyson para Principiantes”, de Rui Costa (Assírio & Alvim)


Em entrevista a Fernando Esteves Pinto, Rui Costa (1972 – 2012) apresentou o seu programa: “Tratar a metáfora de uma forma metabólica, como se fosse um bicho, e as coisas mais concretas (como os limões e as pataniscas de bacalhau) como se fossem carburadores universais”. A intenção é encontrada, de um modo quase sempre surpreendente, numa antologia poética feita por uma comissão de amigos e cúmplices, apostada numa selecção a partir dos livros editados em vida do autor, de dispersos e de inéditos. Entre a metáfora e a ironia, entre o surrealismo e a reserva face ao sentimentalismo, um poeta que se desenhava assim no cartão do cidadão: “(…) Não são poemas o que eu escrevo/ São casas onde os pássaros esperam (…)”.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

LER, N.º147, OUTONO DE 2017


Clique na imagem para ver melhor.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

L-E-T-R-A-S PARA SIGUR RÓS

para J

é dágua
de-água
o meu vestido
o teu
soprado am-ar
líquido
um gás azul
o ponho aos pés
os teus pés e
os teus tornozelos
(teu-o fantasma
predilecto)

são sem
nada
não incomodam ar
não pressionam
(onde a cabeça
insiste, e então)
e respira
rente ao
ar
ao amor
de-o-ar a inspira-
te a expirar
e assim…- e
tu?


Rui Costa
(Insónia, 17 de Abril de 2006)

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

VEM NA ANTOLOGIA


A MINHA GERAÇÃO


Não é preciso fazerem nada.
As coisas fazem-se sozinhas, as pessoas falam e as construções
acontecem. O filho do político também é político. Trata-se de
mera coincidência: foi convidado enquanto esperava o pai junto
à máquina de fotocópias. Por certo levava consigo o documento
de identificação — preparava-se para tirar uma fotocópia da sua
certidão de doutoramento — e aproveitou para tirar uma fotocópia
de tudo o que tinha no bolso, incluindo do próprio bolso, vazio,
porque o filho de um político deve ser exemplo de pobreza.

Foi então que o sol veio, em raio, montado por coriscos sibelinos.
Todos viram nisto um sinal — uma anunciação — e uma lágrima aflorou
ao canto de um olho. Um discurso foi feito, e vegetais distribuídos — uma
cenoura por cada advérbio, duas beringelas por cada palavra correctamente
pronunciada — e no fim a música foi chamada a abrilhantar o prodígio.
Falou-se um pouco dos indicadores económicos — a situação do país
ainda não é perfeita, mas com esta nova geração de homens a coisa
vai lá. É importante que o filho do político tenha participado em 
vindimas, ainda adolescente, para saber o que custa a vida dos outros.

Falta falarmos das vacas, stressadas e com menos leite por causa
do barulho das auto-estradas a caminho da excelência. Afinal o milagre acima
referido foi contratado a uma empresa de eventos, e ligeiramente sobrefacturada,
o que em nada diminuiu o seu valor de fenómeno existencialista, como disse
o pai do filho do político, que leu Heidegger e tem dentes de rola. Vamos
dançar, como Nietzsche propôs, já não me lembro em que livro, porque
quando a gente lê muito depois não tem tempo para estas coisas (o céu
desce a sua brisa sobre a nossa fronte e as andorinhas espadanejam).

E se fôssemos todos convidar-nos uns aos outros para aquários com
écrã filho da puta e aumentássemos os nossos salários cem por cento,
como fazem os políticos brasileiros? Não seria boa ideia?

Na verdade, as montanhas e os vigilantes dos mares não sabem
que estamos aqui, esperando por eles e com vontade de fazer a
primeira revolução a sério da história. É preciso informá-los, para
que eles saibam, porque se não o fizermos alguém vai ter a mesma
ideia e convida os artistas todos primeiro. Usem os recursos com
inteligência, porra!

Conheço pessoas que trabalham muitas horas por dia.
Mais de oito, e mesmo mais de doze horas por dia.
São pessoas muito importantes para as economias de algumas
famílias, o que infelizmente não serve para evitar a chegada da crise
aos nossos fodidos corações agoniados. Há máquinas doces,
calma aí, nem todas são desesperadas. Abrem-se as torneiras e saem
estratégias musicais e pacientes malhas de conversas que podemos
despencar nas redes sociais. Se não for por mal não há problema.
Somos inocentes, ainda, porque é saboroso ser confrontado com
a desgraça de uma vez só e em dose moral. Vejamos o que quero dizer:
não, é melhor não. Ainda é muito cedo, e podemos lavar as cortinas
em vez de ficarmos a queixar-nos do cheiro das casas de banho nas
artérias mais movimentadas do nosso glamouroso corpo brilhante.

Um homem passa e nunca mais desaparece.


Rui Costa, in Mike Tyson Para Principiantes - antologia poética, org. André Corrêa de Sá (coordenador da edição), António Aguiar Costa, Cláudia Souto, Margarida Vale de Gato, Assírio & Alvim, Setembro de 2017, pp. 118-119.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

POEMA A TODOS OS SERES QUE USAM NICKS E ABREVIAGENS E SÃO ANÓNIMOS

Vão prá
p. q. v. p.
diriam
vocês,
aliás,
vocês não
dizem
nada
porque
não existem
são sombras
acabrunhadas
de flores
de papel
tristes
de embrulhar
medo
merda
por isso
vos digo
à minha maneira
encolham-se
ainda
um pouco mais
e voltem
ao sítio de onde
não deviam ter
saído
assim: a
puta
que vos
pariu


Rui Costa

24/10/2005 (aqui)

domingo, 22 de outubro de 2017

SONETO DO SONETO

Catorze versos o soneto este é o primeiro
e ainda não disse nada (este é o segundo)
Mas quem diz que em três versos cabe o mundo?
Em três não cabe, só no soneto inteiro...

E eis mais uma quadra começada
que ao fim deste verso chega ao meio
Daqui a pouco está o soneto cheio
e eu ainda não disse - quase nada?!

Mas felizmente chega um terceto
e neste estou eu bem inspirado
Pena é que já acabou. Ó que chatice!

Mas vou salvar as honras do soneto
num verso belo de final dourado
que diga tudo o que atrás não disse

Rui Costa


28/07/2005 (aqui)

sábado, 21 de outubro de 2017

PARÊNTESIS

(...) [— Claro que estes eram os políticos.
As suas bocas começaram a crescer e de cada vez que
as tentavam abrir uma parte do seu corpo desaparecia.
(Um dia o presidente convidou-os para jantar
e comeu-os a todos, acabando por asfixiar numa esmeralda
tépida.)] (...)



Rui Costa, in Mike Tyson Para Principiantes - antologia poética, org. André Corrêa de Sá (coordenador da edição), António Aguiar Costa, Cláudia Souto, Margarida Vale de Gato, Assírio & Alvim, Setembro de 2017, p. 145. Do poema Faca de Incêndio, que pode ser lido integralmente aqui.

HOJE, NO PORTO


UM SONETO DE RUI COSTA

EM QUE POEMA TE VI NÉVOA OU BRUMA

Em que poema te vi névoa ou bruma
anémona agonizante cama ausente?
Em que recanto de meu medo te pressente
o desejo de seres todas. Ou nenhuma.

Em que silêncio poisas uma a uma
as luzes que vestiste? De repente
lamber-te o sexo querer o aroma quente
das laranjas e dizer-te que alguma

vez acabarias de nascer. Nascer.
Moscas de fogo. Em ti eu me deponho.
No teu pescoço de terra calcinada.

Acalantos. Água. Saber ou não saber
que nos faróis da noite vem o sonho
e depois do sonho não vem nada


Rui Costa, in Mike Tyson Para Principiantes - antologia poética, org. André Corrêa de Sá (coordenador da edição), António Aguiar Costa, Cláudia Souto, Margarida Vale de Gato, Assírio & Alvim, Setembro de 2017, p. 89.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

SMSs DE LONDRES

O meu primeiro contacto com o Rui Costa ocorreu algures entre 2004 e 2005, antes da publicação de A Nuvem Prateada das Pessoas Graves (Quasi, 2005). Eu tinha um weblog intitulado Universos Desfeitos, assinava com o pseudónimo de Juraan Vink textos de que sobram alguns exemplos aqui, aqui ou aqui. O Rui encontrava-se então em Inglaterra, onde estudou e trabalhou. Pediu-me opinião sobre alguns dos seus poemas e questionou-me sobre a possibilidade de os divulgar no Universos Desfeitos. A empatia com os poemas que me apresentou foi imediata, tendo sido precisamente por aí que a nossa amizade se iniciou. Quando o livro de estreia foi premiado, eu já conhecia alguns daqueles poemas. À época, o Rui colaborava comigo num outro weblog. O Insónia surgiu da cessação do Universos Desfeitos e da minha vontade de então gerir algo colectivo, tendo sido o Rui Costa uma das primeiras pessoas que convidei para esse gozo conjunto. O primeiro post do Rui Costa no Insónia foi publicado a 25/Julho/2017, ainda não nos conhecíamos pessoalmente: «Só as loucas é que sonham com os príncipes encantados. Ou seja: altos, fortes, esbeltos, além de corajosos, gentis, amorosos, enfim, perfeitos. Isto é: chatos como a potassa posta em sossego no tubo de ensaio com uma boa meia-dose de pó de talco». Era assim o Rui, as suas palavras tinham uma força que tanto nos seduziam pela dança, como nos colocavam de atalaia pela provocação. Há um outro post dele no Insónia de que gosto muito. Não sei explicar porquê. É um post simples, que de algum modo antecipa a era Twitter e nos diz qualquer coisa sobre a distância entre o poder e as populações. Apetece-me partilhá-lo hoje aqui:

SMSs DE LONDRES

LONDRES I
Subitamente, pela primeira vez: as pessoas olhando umas para as outras.

LONDRES II
O senhor polícia veio tirar-me a lata de cerveja da mão: é proibido (disse) beber na rua em toda a área de Westminster.

LONDRES III
Dizia o António Aleixo (cito de memória mas acho que é assim), desconhecendo a cidade e os novos verbos:

Como um só não é bastante
nós vamos ter, certamente,
Um guarda por habitante
Pra que não roubem a gente.

Em muitos sítios públicos de Londres (pronto, reparei mais nos bares) pode ver-se um cartaz com o desenho de dois olhos e a frase: "A melhor arma contra o terrorismo".

LONDRES IV
Quando o blow job é ultrapassado pelo blow up job.

LONDRES V
O melhor presunto português comi-o em Londres (shame on me).

Rui Costa


30/Julho/2005

sábado, 30 de setembro de 2017

UM ORIGINAL

FACEBOOK LOVE

Meu amor: sempre que entro no Facebook
lembro-me de ti
e no entanto
eu sei
que digo coisas muito incompreensíveis
e não sou deste tempo.

Estou sozinho na frente deste écran onde alguém
comentou a tua última fotografia e não consigo
lembrar-me de uma frase normal e simpática
sozinho
apesar de fazer hoje um ano que nos conhecemos.
Não te culpo por não estarmos juntos neste momento
porque sei que a culpa não é tua, que vives noutra cidade
e que nem sequer o dinheiro sobra (apenas as saudades).

Escolhi um caminho errado para a minha vida,
porque todos os caminhos certos me pareceram
ainda mais errados. Assim, fiz tudo o que tinha a fazer,
ou seja, pensei e senti. Não preciso que compreendam as
minhas ideias mas do ser humano ocasional espero ainda
um pedaço de tempo para uma conversa sem pressa,
uma vez por mês, com um café ao alcance da mão.
À janela do estabelecimento, espreitando sempre,
há os pais dos outros e os filhos dos outros
e as casas
e contra ou a favor da história natural eu posso
nada.

Talvez viaje no próximo mês e a distância se
altere. Apetecia-me ir a pé de uma cidade a outra,
como dantes faziam os artistas e outras pessoas normais;
mas nas estradas grandes é proibido andar a pé e os
caminhos pequenos agora servem para amontoar
os habitantes da cidade que não encontraram ninguém
a quem entregar o seu amor. Enquanto decido,
a tua ausência sempre me vai fazendo alguma companhia.

Por favor cuida de ti,
tem cuidado a atravessar as ruas:

Deves saber que nunca tratei bem os mortos.


Rui Costa, in Mike Tyson Para Principiantes - antologia poética, Assírio & Alvim, Setembro de 2017, pp. 48-49.

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

UM POEMA

Aqui.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

CAPA E CONTRACAPA


O livro do ano chegou às livrarias. Amanhã é colocado à venda.

BIÓTICA

Eu mexo-me por contágio —
no rasto que sobe dos teus passos
quando a manhã desgovernada chega
ao fim. Cravado, sigo pelos dedos da mão
que se alimenta e entro nos buracos — ouvidos,
nariz, boca — e recolho-me no linho que se estende
até ao cérebro. Outras vezes, é nos olhos que aterro
e despoleto as visões: ele ainda vê a minha imagem até
que se alinhava por trás da sua consciência. Então
pode ser que balouce como um vegan ou que se
tome de um súbito amor pelas camélias. Mais
água-de-fogo — dirá — e o peito a responder-lhe
com um mar do tamanho de um coração a
que lhe falte o fuso. Pedaços de animais,
digo, coisas parecidas com artérias e
pequenas combustões de carne ve-
getal em pedra pura: o mundo é a
mais exacta forma do amor.


Rui Costa, in Mike Tyson Para Principiantes — antologia poética, org. André Corrêa de Sá (coordenador da edição), António Aguiar Costa, Cláudia Souto, Margarida Vale de Gato, intr. André Corrêa de Sá, apresentação de Margarida Vale de Gato — Actos Possíveis, Combates Futuros, Amor de Pugilista: a poesia de Rui Costa —, Assírio & Alvim, Setembro de 2017, p. 167 (poema reproduzido na contracapa). 

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

28 DE SETEMBRO DE 2017


Em Pré-lançamento: aqui.

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

REENTRÉE, DIZEM ELES

Ainda durante este mês, sai, na Assírio & Alvim, uma importante antologia de Rui Costa, Mike Tyson para Principiantes. O poeta, que morreu em 2012, aos 40 anos, em circunstâncias trágicas, é agora antologiado numa edição coordenada por André Corrêa de Sá e com organização de António Aguiar Costa, Cláudia Souto e Margarida Vale de Gato