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terça-feira, 28 de junho de 2011

O RADIALISTA

imagem google
O avô do L.M. tinha tanta convicção de seu legado que seu primogênito veio a se chamar Edil. Foi vereador muitas vezes e outras tantas, prefeito daquela cidadezinha outrora a glória do ouro nacional com inúmeras minas e garimpos à beira do Rio Poranga, agora completamente assoreado e poluído.  No seu tempo era o coronel sem patente, o delegado sem direito no diploma e o divino sem teologia (porque o bispo lhe prestava reverências e obediência diante das gordas doações para a igreja). Criara o pai de L. M. para ser o continuador de sua obra política e social, o que significava a família perpetuar-se como dona da cidade.

Eu cheguei a conhecer apenas o seu Edil e já na condição de edil. Parecia-me que ele herdou a eloqüência do pai, mas não a sagacidade. Foi eleito e reeleito enquanto ele ainda era vivo numa espécie de agradecimento da população quase serva do coronel. Tanto que depois de sua morte, o fim do Sr. Edil foi o ostracismo político. Na câmara seu apelido era Edil Sono. Sempre dormia durante as sessões e tudo o que se tem nos anais da câmara é um único projeto de sua autoria em 3 mandatos e 12 anos de vereança. Dizem inclusive que o mesmo votou contra o próprio projeto, uma vez que no momento da manifestação solicitada pelo presidente da casa ele acordou assustado com o rebuliço da discussão em torno do projeto e levantou as duas mãos para dizer que votava contra. O projeto quase ia à unanimidade não fosse essa gafe. E era para implantar o tratamento da água potável para a população.

Mas o caso aqui é a respeito de L.M., o terceiro da geração, menos afeito ao autoritarismo de seu avô e meio envergonhado do pai, embora lhe guardasse um profundo respeito (ou seria medo?). Do caráter atávico restou-lhe apenas o destemor diante de qualquer coisa na vida. LM tornou-se radialista. Sua voz era tão bela e grave, de uma sonoridade tão aveludada que despertava a curiosidade de todos, inclusive das mulheres que suspiravam pelas madrugadas ouvindo um de seus programas de músicas românticas e recadinhos de enamorados e a leitura emocionada de cartas de amor, desamor e confusões. Eu mesmo me enchi de suspense desde a primeira vez que o ouvi.

A impressão que se tem quando ouvimos a voz de um locutor feito esta que descrevi é a de um homenzarrão, cabelos repartidos de lado, lisos e assentados à cabeça, com o penteado parecendo coberto de gel fixador e o inconfundível olhar fulminante, sedutor, enfim. Qual não foi a minha surpresa ao me deparar um dia com aquela voz  familiar numa roda de conversas em frente à lanchonete da universidade. Fui correndo lá para atestar e para meu maior espanto vejo uma figura esquálida, de uma brancura quase translúcida e uns óculos grossos como fundo de garrafa de vidro tamanho família (como se dizia antigamente). Era tão magro que dava a sensação de que se a voz possuísse peso seria capaz de derrubá-lo ao chão. Como há roupas de tamanho especial para pessoas obesas, as deles eram especiais ao contrário. Um alfaiate da cidade tinha que confecciona-las, já que se recusava a comprar roupas de crianças de até 12 anos.

LM era um contestador e isso nos aproximou numa amizade fraterna. Não participava de nenhuma organização ou movimento comunitário, de classe, nem nada. Sua militância se dava ali ao microfone da rádio mesmo. Ele dizia surtir mais efeitos do que intermináveis reuniões e disputas de egos. No que eu concordava totalmente. Falava mal de tudo e de todos, políticos, igrejas, comerciantes mal intencionados e senhoras mexeriqueiras da cidade. Só não falava mal do próprio pai, a fim de não manchar ainda mais a reputação do avô, que se vivo ainda estivesse ia ficar se perguntando a respeito de seu legado: “onde foi que eu errei?”.

A audiência da rádio era absoluta na cidade. A sua única concorrente tinha apenas os horários de outras programações para disputar espaço. LM era unanimidade na audição dos moradores. O dono da rádio, com o sucesso do empreendimento, começou a receber muitas propostas de “incrementar” seu negócio. Uma delas era o conhecido jabá* para desespero e revolta de LM. E ele não deixava por menos. Manifestava ao vivo a sua indignação. Principalmente quando as músicas eram demasiadamente ruins. Dizia assim: “ e eles ainda tem a coragem de me oferecer jabá para tocar uma coisa dessas!”. O seu patrão lhe fazia pequenas reprimendas e também uma certa vista grossa, já que LM era muito mais lucrativo do que qualquer  suborno de gravadoras.

O problema foi quando começaram a chover propostas para comerciais de produtos que ele considerava obscenos para sua ética. Dava a hora do intervalo e vinha alguém divulgando produto para emagrecer 5 quilos em um mês. Terminava e entrava ele com sua voz gravíssima: “bem minha gente, há quem acredite nisso.” Hora de comercial novamente e vinha outra propaganda de remédios milagrosos para impotência masculina., queda de cabelos, fortalecer a memória, parar de fumar. LM voltava à carga: “minha gente, muito cuidado com propagandas enganosas que há por aí”.

Mas não foi esse o motivo da sua saída rápida da cidade, lá pros lados do Espírito Santo. Os anunciantes não reclamavam. Acho que as propagandas eram enganosas mesmo, eles sabiam, muitos ouvintes acreditavam e a rádio era um sucesso. Sinal de que não atrapalhou as vendas.

LM apaixonou-se pela misteriosa e fogosa das quatro da manhã. No princípio ela ligava para o programa ao vivo. Aos poucos as conversas passaram a ser em off. Depois que entabularam um romance telefônico foram se conhecer. Ele se decepcionou às lágrimas porque ela era casada com o irmão do dono da rádio. E ela se decepcionou com o aspecto que não trazia nenhuma relação da voz de LM com seu porte físico. Acho que por medo de definhar ainda mais e não resistir à pele e osso, quase sem recheio, ele pediu as contas e foi-se.


* (jabá = comissão que as gravadoras pagavam a locutores e donos de emissoras de rádio para tocarem repetidas vezes músicas de seus cantores preferidos para alavancar vendas de discos)

sábado, 21 de maio de 2011

NOSSO LOUCO AMOR

“Palavras são palavras e a gente nem percebe
o que disse sem querer e o que deixou pra depois
Mas o importante é perceber que a nossa vida em comum
 depende só e unicamente de nós dois.”
(da música Um Jeito Estúpido de Amar, cantada por Roberto Carlos).



Gleicineide me diz ouvindo o radio que todas as vezes que vem fazer faxina aqui em casa, sua cabeça fica fervendo com pensamentos. Eu pergunto se é por causa do noticiário cheio de sangue, sensacionalismo e as enfadonhas notícias do mundo da economia e ela me responde que  é por causa das músicas românticas da emissora que eu gosto de ouvir.

- É cada lembrança, seu moço que eu nem te conto!

- Antigos romances, paixão recolhida, Gleicineide?

-Seu moço, se não lhe incomoda eu vou contar. Antes de me mudar para cá, tinha um rapaz na minha cidade chamado Celinho, feio, seu moço, de dar dó. Mas eu era apaixonada por ele de um tal jeito que o senhor nem vai acreditar. Na época eu tinha 17 anos e ele 28. Era o motoqueiro da cidade. Um homem especial de bom. Namorava escondida de meu pai; como já lhe disse, eu tinha muito medo dele, de suas violências com a gente lá em casa. A minha paixão pelo Celinho era além desse negócio de beleza física, seu moço. Ele me tratava como uma princesa, como uma rainha, melhor dizendo. Um dia, seu moço, meu pai flagrou a gente juntos e eu tremi. Mas ele não falou nada até eu voltar pra casa. Ele ficou sabendo que o Celinho era filho de um homem de muitas posses, muita terra, muito gado e começou a fazer um gosto danado pelo namoro. Aí me falou que eu teria que casar de qualquer maneira. Mandou chama-lo lá em casa e falou sem rodeios que fazia muito gosto de um casamento; que éramos pobres mas que ele faria questão de fazer todas as despesas. Ainda usou uma expressão que me envergonhou demais: “nem que seja um arroz com feijão simples, eu quero dar uma festa.”. Foi um apego só, dele com o Celinho. Eu continuei o namoro com um entusiasmo maior ainda, seu moço. Meu sonho era casar com o Celinho. Todas as vezes que eu ouço Se A Casa Cair, do Teodoro e Sampaio até arrepio, seu moço.

- Péra lá, Gleicineide, eu não ouço esses caras, não! São as músicas que eu gosto de ouvir  que lhe trazem lembranças ou não?

- É, seu moço, mas quando o senhor não tá aqui eu mudo pras emissoras que tocam. Gosto de outras também, mas essa me faz lembrar ele dançando em volta de mim toda vez que a gente ouvia e me dá uma saudade danada daquele homem. Vou falar um negócio pro senhor: se o Celinho aparecesse aqui agora, eu acho que largava o Juninho na mesma hora. Apesar de já fazer 11 anos que isso aconteceu, eu não esqueci dele até hoje.



- Mas então foi uma paixão mal resolvida?

- Pois é. Minha mãe tinha adoecido de depressão profunda e eu acho que foi por culpa do meu pai que maltratava ela demais. Veio para a capital se tratar e meu pai veio atrás. Só que a minha mãe não contou onde estava ficando nem onde se tratava e nunca mais quis saber de meu pai. Passado um tempo ela voltou à cidade, mandou a gente (eu e meus irmãos) arrumarmos tudo correndo e nos trouxe. Não deu tempo nem de despedir do Celinho. Liguei para ele depois e ele me disse que ia dar um jeito de vir pra cá também. Não sei o que aconteceu mas não veio e eu não o vi nunca mais. Comecei um tempo depois a namorar o Juninho e seus ciúmes não me deixam muito solta por aí. Uma única vez que voltei na minha terra ele foi lá atrás de mim. Acho que é intuição de homem, né seu moço? Porque intuição de mulher não falha de jeito nenhum. O senhor tem intuição?

- Hum, hum! (interessado mais em ouvir do que estender essa parte)



- Eu tenho uma vontade, sabe do quê? Um dia voltar lá, ir a um salão, me produzir toda e chegar perto dele e dizer assim: “mas como você tá feio, hein, Celinho”?

Hoje ele já deve estar chegando nos seus quarenta anos, imagine que bagaço não virou! (interrompendo a divagação):

- Olha aqui nos meus braços, seu moço, eu fico arrepiada só de pensar nesse homem.

- É, Gleicineide, acho que ainda tem um sentimento meio enraizado aí dentro, não é?

- Acho que tem sim, seu moço. Apesar de ele nunca ter me feito nada (nada daquelas coisas, o Sr. sabe, né?) eu arrepio desse jeito, imagina se tivesse feito? Já falei pra minha mãe que eu não vou me casar nunca mais.

- Então é sério mesmo?

Uai, seu moço já se passaram mais de 10 anos e eu não consigo esquecer dele, como é que eu vou fazer? Me diga o senhor aí que deve de ter mais experiência: como é que eu faço, seu moço?

Desconversar nessas horas é o melhor conselho, mesmo sem sair do assunto. – Olha, Gleicineide, eu também tenho muitas lembranças de música que me remetem para momentos inesquecíveis que já tive na vida. Ah, que saudade quando ouço certas músicas! Elas estão presentes na memória afetiva da gente para sempre.



Gleicineide saiu para a área de serviço cantarolando

“...Foge de mim quando eu quero um abraço
Fazer amor, ela não quer nem saber,
Já não agüento essa falta de carinho
Hoje eu quero uma mulher pra me amar
Custe o preço que custar...”


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