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O avô do L.M. tinha tanta convicção de seu legado que seu primogênito veio a se chamar Edil. Foi vereador muitas vezes e outras tantas, prefeito daquela cidadezinha outrora a glória do ouro nacional com inúmeras minas e garimpos à beira do Rio Poranga, agora completamente assoreado e poluído. No seu tempo era o coronel sem patente, o delegado sem direito no diploma e o divino sem teologia (porque o bispo lhe prestava reverências e obediência diante das gordas doações para a igreja). Criara o pai de L. M. para ser o continuador de sua obra política e social, o que significava a família perpetuar-se como dona da cidade.
Eu cheguei a conhecer apenas o seu Edil e já na condição de edil. Parecia-me que ele herdou a eloqüência do pai, mas não a sagacidade. Foi eleito e reeleito enquanto ele ainda era vivo numa espécie de agradecimento da população quase serva do coronel. Tanto que depois de sua morte, o fim do Sr. Edil foi o ostracismo político. Na câmara seu apelido era Edil Sono. Sempre dormia durante as sessões e tudo o que se tem nos anais da câmara é um único projeto de sua autoria em 3 mandatos e 12 anos de vereança. Dizem inclusive que o mesmo votou contra o próprio projeto, uma vez que no momento da manifestação solicitada pelo presidente da casa ele acordou assustado com o rebuliço da discussão em torno do projeto e levantou as duas mãos para dizer que votava contra. O projeto quase ia à unanimidade não fosse essa gafe. E era para implantar o tratamento da água potável para a população.
Mas o caso aqui é a respeito de L.M., o terceiro da geração, menos afeito ao autoritarismo de seu avô e meio envergonhado do pai, embora lhe guardasse um profundo respeito (ou seria medo?). Do caráter atávico restou-lhe apenas o destemor diante de qualquer coisa na vida. LM tornou-se radialista. Sua voz era tão bela e grave, de uma sonoridade tão aveludada que despertava a curiosidade de todos, inclusive das mulheres que suspiravam pelas madrugadas ouvindo um de seus programas de músicas românticas e recadinhos de enamorados e a leitura emocionada de cartas de amor, desamor e confusões. Eu mesmo me enchi de suspense desde a primeira vez que o ouvi.
A impressão que se tem quando ouvimos a voz de um locutor feito esta que descrevi é a de um homenzarrão, cabelos repartidos de lado, lisos e assentados à cabeça, com o penteado parecendo coberto de gel fixador e o inconfundível olhar fulminante, sedutor, enfim. Qual não foi a minha surpresa ao me deparar um dia com aquela voz familiar numa roda de conversas em frente à lanchonete da universidade. Fui correndo lá para atestar e para meu maior espanto vejo uma figura esquálida, de uma brancura quase translúcida e uns óculos grossos como fundo de garrafa de vidro tamanho família (como se dizia antigamente). Era tão magro que dava a sensação de que se a voz possuísse peso seria capaz de derrubá-lo ao chão. Como há roupas de tamanho especial para pessoas obesas, as deles eram especiais ao contrário. Um alfaiate da cidade tinha que confecciona-las, já que se recusava a comprar roupas de crianças de até 12 anos.
LM era um contestador e isso nos aproximou numa amizade fraterna. Não participava de nenhuma organização ou movimento comunitário, de classe, nem nada. Sua militância se dava ali ao microfone da rádio mesmo. Ele dizia surtir mais efeitos do que intermináveis reuniões e disputas de egos. No que eu concordava totalmente. Falava mal de tudo e de todos, políticos, igrejas, comerciantes mal intencionados e senhoras mexeriqueiras da cidade. Só não falava mal do próprio pai, a fim de não manchar ainda mais a reputação do avô, que se vivo ainda estivesse ia ficar se perguntando a respeito de seu legado: “onde foi que eu errei?”.
A audiência da rádio era absoluta na cidade. A sua única concorrente tinha apenas os horários de outras programações para disputar espaço. LM era unanimidade na audição dos moradores. O dono da rádio, com o sucesso do empreendimento, começou a receber muitas propostas de “incrementar” seu negócio. Uma delas era o conhecido jabá* para desespero e revolta de LM. E ele não deixava por menos. Manifestava ao vivo a sua indignação. Principalmente quando as músicas eram demasiadamente ruins. Dizia assim: “ e eles ainda tem a coragem de me oferecer jabá para tocar uma coisa dessas!”. O seu patrão lhe fazia pequenas reprimendas e também uma certa vista grossa, já que LM era muito mais lucrativo do que qualquer suborno de gravadoras.
O problema foi quando começaram a chover propostas para comerciais de produtos que ele considerava obscenos para sua ética. Dava a hora do intervalo e vinha alguém divulgando produto para emagrecer 5 quilos em um mês. Terminava e entrava ele com sua voz gravíssima: “bem minha gente, há quem acredite nisso.” Hora de comercial novamente e vinha outra propaganda de remédios milagrosos para impotência masculina., queda de cabelos, fortalecer a memória, parar de fumar. LM voltava à carga: “minha gente, muito cuidado com propagandas enganosas que há por aí”.
Mas não foi esse o motivo da sua saída rápida da cidade, lá pros lados do Espírito Santo. Os anunciantes não reclamavam. Acho que as propagandas eram enganosas mesmo, eles sabiam, muitos ouvintes acreditavam e a rádio era um sucesso. Sinal de que não atrapalhou as vendas.
LM apaixonou-se pela misteriosa e fogosa das quatro da manhã. No princípio ela ligava para o programa ao vivo. Aos poucos as conversas passaram a ser em off. Depois que entabularam um romance telefônico foram se conhecer. Ele se decepcionou às lágrimas porque ela era casada com o irmão do dono da rádio. E ela se decepcionou com o aspecto que não trazia nenhuma relação da voz de LM com seu porte físico. Acho que por medo de definhar ainda mais e não resistir à pele e osso, quase sem recheio, ele pediu as contas e foi-se.
* (jabá = comissão que as gravadoras pagavam a locutores e donos de emissoras de rádio para tocarem repetidas vezes músicas de seus cantores preferidos para alavancar vendas de discos)