Todos os sábados, ainda o alvorecer tardava, já Engrácia e Reinaldo tinha largado a cama. Enchiam as canastras com as frutas e legumes da época, e partiam, a pé, na companhia de outros camponeses, rumo ao mercado de Loriga. A dureza do caminho seria compensada no regresso, já aliviados da carga, mas com as algibeiras recheadas de notas e os sacos de pano a rebentarem com o peso das moedas.
Naquele sábado, Engrácia deixara o aconchego da cama com o coração algo pesado. O seu Reinaldo não poderia acompanhá-la. Uma dor que se lhe ferrara nas costas, já ia para três dias, e que mal o deixava mexer, obrigava-o a guardar o leito.
Engrácia já deixara de véspera a canastra forrada com folhas de figueira, mas agora era preciso enchê-la com a fruta. A Ermelinda da ti Rosa, não estava com aqueles cuidados, e deixava tudo pronto na noite anterior, mas Engrácia sabia que aqueles preparativos feitos antes de sair, eram o segredo para que as clientes habituais a procurassem, não havendo em todo o mercado quem tivesse fruta mais bonita, mais fresca, mais cheirosa, mais tentadora. E os seus pêssegos redondos e aveludados, os figos roxos e verdes, os tomates duros e rubicundos, as uvas douradas e negras, os pimentos verdes e suculentos, as ameixas e os abrunhos carnudos e brilhantes, os melões de casca verde, e de polpa alaranjada, os pepinos rijos e luzidios, as cebolas doces ou picantes, eram a garantia de uma bolsa cheia. Em nenhuma outra feira, as vendas corriam tão bem! Os loriguenses acorriam à praça, e trocavam os géneros pelo dinheiro, sem grandes regateios. Ela sabia que naquela aldeia a fruta escasseava. Os camponeses preferiam comprá-la a quem vinha das aldeias próximas, a verem os campos pilhados e vandalizados, o renovo calcado, as colheitas comprometidas pelos assaltos da garotada da aldeia às árvores de fruto. Mas a ela, quem a procurava, eram sobretudo as senhoras ricas, que gostavam do que era bom, e podiam pagar bem pela sua fruta.
Estava a Engrácia a colocar o farnel na amieira, e a Almira do ferreiro a gritar-lhe à porta, para que se despachasse. Foi apressadamente despedir-se do seu Reinaldo. Antes já o havia acomodado com o mata-bicho, e deixara-lhe numa mesita oval que empurrara para junto da cama, resguardados por um alvo pano de linho, pão, queijo, chouriço e uma garrafa de vinho. Dobrou a rodilha que colocou sobre a cabeça, vergou-se pelos quadris, e, como não lograsse elevar a canastra, gritou:
— Ó Almira! Ó Almira! Dá-me aqui uma mão, pelas almas!
Colocada a canastra à cabeça, vacilou com o peso da fruta, mas respirou fundo, fez força nas pernas, e lá se recompôs.
Cá fora, o Alberto da senhora, o Ramiro, a Leontina e o Zé da Ponte.
— Então o ti António? — perguntou Engrácia.
— Foi andando com o Tó Sêmeas — esclareceu Alberto.
— E o Reinaldo está melhor?
— Passou melhor a noite, se queres saber…Mas ainda se queixa muito.
Todos exibiam fruta e legumes de qualidade. Os pêssegos do Zé da Ponte eram mais pequenos, mas iam encontrar também clientela certa para eles. Naquela praça, era raro algum deles voltar para casa sem vender o que levava. Vendia-se tudo, com a graça de Deus. A fruta mais fraca era vendida mais barata, a quem não podia pagar tanto.
Na aldeia, correu tudo como esperavam. Muito dinheiro havia naquela terra! As fábricas de lanifícios e a metalúrgica, as pequenas empresas artesanais de manufatura de queijos e enchidos, asseguravam o dinheiro certo nas algibeiras dos fregueses.
De regresso, Engrácia pediu aos companheiros que fossem andando.
— Já vos alcanço! Vou levar estes pêssegos à senhora do senhor doutor, que mos apalavrou na semana passada. Ó Almira, podias levar-me a amieira.
— Dá cá! Hoje apanhaste-me bem-disposta!
Os companheiros de Engrácia foram seguindo caminho. Depois de entregar a encomenda e receber o dinheiro, foi direita à loja do sr. Manuel. Olhou a resma de cortes de tecido que estavam empilhados à porta, e lançou os olhares cobiçosos a um tecido adamascado, com um lavrado de grandes rosas acetinadas, que ela já namorava há que tempos. Ficou-se ainda um bocado à porta, antes de entrar, antecipando o momento em que chamaria seu àquele belo corte. Pediu para ver os tecidos, fingindo não saber ainda o que queria. Depois de tocar vários, virou-se então para o objeto dos seus desejos. Passou a mão ao longo da fazenda, e um frémito de prazer percorreu-lhe o corpo. Mostrou-se indecisa, apenas para prolongar aquele momento. Quando saiu da loja, apercebeu-se que se demorara bastante mais tempo do que tencionara. Iria fazer o percurso sozinha, a menos que os companheiros tivessem parado para esperar por ela. Colocou a canastra vazia debaixo do braço, junto aos quadris e o embrulho de papel pardo na taleiga de pano, junto do maço de notas presas com um elástico. Chegou-se a um recanto, olhou em volta, e, não vendo ninguém, ajeitou rapidamente debaixo do avental e da saia a algibeira que lhe pendia da cintura, onde guardava as moedas envoltas num lenço, e lá foi caminhando. Iria mandar fazê-lo à Alice costureira, e estreá-lo na festa da padroeira da terra. Aquele tom de azul iria realçar ainda mais a cor dos seus olhos. Tinha que se despachar, senão chegaria a casa de noite.
A aldeia foi ficando para trás, e a o sol já esmorecia no horizonte. Ia tão entretida nos seus devaneios, que se sobressaltou quando ouviu aquela voz:
— Então a feira foi boa?
Engrácia levantou os olhos, e o coração não lhe adivinhou nada de bom. Aqueles dois maltrapilhos encardidos que assim se lhe atravessavam ao caminho, estavam a preparar-se para lhe roubar o dinheiro, ou ainda pior. Nas roupas surradas e cobertas de poeira, era impossível descortinar a cor original que elas haviam tido. O mais alto trazia à volta da cintura, presa por um cordel, uma galinha com o gargalo decepado, por onde ainda escorriam uns pingos de sangue. Seria pateta o sorriso constante na cara do outro, não fora a gruta em que assomavam os poucos dentes tortos e cariados a torná-lo patético. Na mão uma fisga, com a qual brincava, baixando-se a espaços para apanhar uma pedra que depois atirava para o ar. Tinha que pensar rápido:
— Não foi má, não! Mas que boga! Aquele bebedolas do meu homem vai estoirar tudo na taberna! Estou-lhe cá com uma raiva!
— Então mas porquê, senhora?
Quem falava era o mais alto. O outro limitava-se a pontuar a conversa com uns esgares ruidosos que só vagamente lembravam gargalhadas.
— Ora, porque havia de ser? Entrámos na taberna do ti Aleixo a comer umas sardinhas, vai o meu homem pegou-se numa aposta com uns bêbados como ele, e agora vai estoirar o dinheiro todo!
— Todo, menos o que traz consigo!
— Pois isso é que me dá mais raiva! Vossemecê é que não conhece o meu homem! Mas eu, que já sei como ele é, bem que queria ser eu a trazer o dinheiro, mas qual o quê! Não me deixou ficar nem um tostão para amostra! Cabrão! Pus-me a mexer dali para fora! Agora há de ser tarde que me chegue a casa.
E, antes que ele perguntasse o que levava na taleiga de pano, pegou nela, e mostrou-a, enquanto explicava:
.— Vi-me negra para lhe arrancar uns míseros escudos para comprar uma chita para uma bata!
.— Na taberna do ti Aleixo, foi? A gente vamos lá buscá-lo!
.— Cá por mim bem pode levá-lo o inferno! Se lhe dá uma veneta, ainda me mói o corpo com pancada!
Os dois facínoras riram-se um para o outro, e continuaram o caminho na galhofa, um a dar pontapés nas pedras, o outro a brincar com a funda.
Engrácia respirou fundo. O medo deixou-a coberta de suores frios. Não conseguia acreditar como escapara. Agradeceu mentalmente à senhora das Preces. Olhou para trás, e, vendo que os dois gandulos já se não viam, desviou-se do caminho e meteu-se pelo meio do pinhal, tendo cuidado para não calcar os fetos. O receio de que os dois homens voltassem para trás para se vingarem, quando descobrissem o engano em que caíram, dava-lhe energia suficiente para se embrenhar cada vez mais no interior do terreno. Procurou a nascente de granito onde tantas vezes se dessedentara, ela e os companheiros, que era costume estar seca naquela altura do ano. Se desse com ela, estava safa!...Os coirões, quando se apercebessem que ela os tinha enganado, bem podiam voltar por ela…Nossa Senhora das Preces o não permitisse! Quase às apalpadelas, lá encontrou a tão desejada nascente. Tentou acalmar-se, mas os temores escorriam-lhe pelas pernas, pelos braços, pelo corpo todo… Atirou a canastra e a taleiga para o chão, e deixou-se cair logo a seguir. Arrastou-se, sem forças, para dentro da ombreira de granito. Depois de algum tempo, já mais calma, tirou o avental, com o qual tapou as pernas, e tentou aninhar-se debaixo da canastra, para se proteger do arrefecimento da noite. Porém, apesar de manter as pálpebras fechadas, o sono não veio ajudá-la a passar o tempo. Ouviu todos os ruídos que acompanham a noite, aterrorizada. Pensou nos cuidados em que ficaria o seu Reinaldo, e a sogra, quando fosse saber deles. Coitado do seu homem, tão seu amigo, e tão negro que ela fora obrigada a pintá-lo. E ela, às vezes, tão ríspida… E, claro, o pai, a mãe, os irmãos…Ao saberem que ela não tinha voltado, iriam afligir-se tanto… Ainda bem que não tinham filhos (iria tê-los alguma vez? Eles já tardavam…), não teria de se preocupar com a preocupação deles…Depois rezou, rezou, e prometeu à Senhora das Preces, que, se chegasse sã e salva a casa, lhe mandaria fazer um manto para estrear na próxima procissão. O tecido já ela o comprara na venda do ti Manuel. Pensando bem, não precisava de vestido nenhum. E prometeu também nunca mais fazer o caminho sozinha. E ser mais meiga para o seu Reinaldo. E mais amiga da sogra. E dos irmãos. E… Ainda a aurora não rendera a noite, e já ela se punha de pé, sacudia a roupa, ajeitava o cabelo, decidida a novos recomeços. Resolveu, porém, esperar mais um pouco, até o dia estar completamente claro. Quando chegou ao caminho de onde se desviara no dia anterior, sentia-se ainda temerosa. E foi esse temor que a fez esconder-se numa berma, ao avistar ao longe um grupo de homens que se aproximava, a passo lento e cauteloso, com cajados com que varavam a vereda. Só quando ouviu gritar o seu nome, reconheceu o pai, os irmãos e outros homens da aldeia. Saiu então do esconderijo, e caiu nos braços do pai e dos irmãos, sacudida pelos soluços.